Enraizar o porvir: (re)nomear a Améfrica Ladina – entrevista com Marilyn Machado Mosquera

Enraizar o porvir: (re)nomear a Améfrica Ladina – entrevista com Marilyn Machado Mosquera

Por Giulia Mendes Gambassi

Entender os processos exploratórios que se dão na América Latina é um desafio constante e, provavelmente, interminável. A contínua exploração dos recursos naturais e, consequentemente, dos povos que aqui habitam atualiza as feridas que herdamos do auge da colonização europeia em nossas terras.

No IV Congresso Latino-americano de Ecologia Política, sediado em Quito (Equador) em outubro de 2022, pesquisadores do CRIAB – mais especificamente do GT Educação e Sociedade –, pensaram e discutiram o tema geral desse evento, a saber: Ecología política y pensamiento crítico latinoamericano: raíces, trayectorias y miradas al futuro. A primeira plenária do congresso voltou-se às Luchas históricas en defensa de los pueblos y los territorios, em que pudemos ouvir Marilyn Machado Mosquera (Kuagro-ri Changaina), Nathalia Bonilla (Acción Ecológica)​, Pablo Fajardo (Unión de Afectados por la Texaco) e Joan Martínez-Alier​ (Universidad Autónoma de Barcelona), com a mediação de Ivonne Ramos (Acción Ecológica).

Nesse contexto, Ramos abre a mesa dando destaque à compreensão de nossas raízes “como projeção, origem e fortaleza a partir da qual fazemos caminho ao andar”, provocando um giro na compreensão dos processos políticos e históricos de nosso continente. Afinal, no sistema capitalista em que estamos inseridos, é sempre em nome do progresso e do desenvolvimento – muitas vezes desvinculados do que veio antes – que nos ensinam a pensar, a atuar e a fazer ciência. Ao enfatizar que, a partir dessa mesa, mas também do evento como um todo, podemos construir afirmações do porvir, Ramos nos provoca a assumir uma perspectiva outra em relação ao passado e ao lugar que aprendemos a dar a ele em uma organização ocidental da vida e do pensamento.

Marilyn Machado-Mosquera
Marilyn Machado-Mosquera
Fonte: https://www.uasb.edu.ec/entrevistas/aportes-de-las-mujeres-negras-de-colombia-a-la-ecologia-politica-emancipadora-y-decolonial/

Dentre os diversos destaques que podem ser feitos às falas que ouvimos nessa mesa, a potência da apresentação de Marilyn Machado Mosquera nos convoca a tatear e reconhecer a presença do véu do branqueamento – como aponta Lélia Gonzalez, filósofa e antropóloga brasileira citada na fala de Machado Mosquera – que impõe uma forma colonial de olharmos o mundo, o outro e até nós mesmos. Trazemos, então, neste texto, uma breve entrevista com essa potente pesquisadora. 

A Améfrica Ladina proposta por Gonzalez e retomada por Machado Mosquera, problematiza o fato de que não só aspectos geográficos, mas também inconscientes se imbricam na forma em que nos narramos enquanto ladinoamefricanos. O aprisionamento em uma língua(gem) racista inibe uma possível emancipação do destino subalterno ao qual os dispositivos coloniais nos fazem crer ser inevitável. Assim, (r)existir à imposição do desenvolvimento e do progresso, à morte sistêmica de corpos que nos fizeram acreditar ser dissidentes, mas são, em realidade, o que de mais singular habita nossas terras, é revolucionário.

É nesse cenário, tecido pelas palavras de Machado Mosquera, que fazemos perguntas voltadas à pretensa separação entre homem e natureza ao se pensar a América Latina, bem como à possibilidade de, a partir dos processos de nomeação, seguirmos transformando nossa relação com a terra, a água e, mais especificamente, no caso do nosso grupo, com as práticas extrativistas do nosso entorno.

A primeira pergunta que fizemos foi: é possível pensar a Améfrica Ladina, como propõe Lélia Gonzalez, deslocada da natureza?, à qual nossa entrevistada se coloca a responder em dois sentidos. 

O primeiro diz respeito, principalmente, à localização majoritária das comunidades negras inseridas na Colômbia e no Equador no espaço rural, compreendido junto à natureza. Considerar esse aspecto espacial é inescapável ao se propor qualquer visão de africanidade na América Latina, estando consequentemente vinculada à natureza. De todo modo, há aquelas e aqueles que nascem e vivem no meio urbano e que aprendem a separar os humanos dos demais seres, como rios, árvores, entre outros, mobilizando, a seu modo, outras formas de se compreender sua identidade e ancestralidade. Para esses grupos, haveria a possibilidade de se pensar Améfrica Ladina sem levar em conta a natureza, mas isso se basearia em um componente “antinatural” e fiado em uma perspectiva colonial, já que Machado Mosquera afirma que somos a natureza ou, como coloca a partir de Enrique Leff, todos os povos são da terra.

O segundo sentido que ela tece em relação à primeira pergunta, se volta ao que chama de sentipensar negro. Esse sentipensar, aponta, transcende os espaços geográficos, estando presente na culinária – que também tem influência de outros povos, inclusive indígenas –, na música, nos esportes, nos escritos e nos modos de ser dos povos ladinoamefricanos, o que nos levaria a perceber a amefricanidade para além do território. Entretanto, quando se pensa a partir dos processos de nomeação colonial que criam uma representação de América Latina desvinculada da terra, como se tivesse se erigido por outros que não os povos que já estavam aqui, deixa-se de fora as diversas comunidades que extrapolam uma construção europeia de territorialidade e subjetividade. 

Nesse ponto, Machado Mosquera afirma ser necessário perceber esse processo de construção a partir de uma proposição que é de amplo conhecimento dos povos negros e indígenas: “se não se nomeia, não existe”. Esse apontamento nos leva à segunda pergunta a ela direcionada: como poderíamos nos apropriar desses processos de nomeação buscando nos afastar da herança colonial que vivemos na América Latina?

A resposta a essa pergunta também se dá em duas frentes, que identificamos como “(re)conhecer para decolonizar” e “escutar para transformar”. A primeira frente parte do pressuposto de que conhecer os povos e os diversos atores que constituem os territórios em que vivemos, bem como reconhecer os processos de extrema opressão que experienciaram e ainda experienciam é requisito básico daqueles que clamam trabalhar com ecologia política. Porém, como observa nossa entrevistada, a prática decolonial que se propagandeia por aí, muitas vezes não se afasta efetivamente ou até mesmo ressignifica e problematiza nossa herança colonial. A pesquisadora afirma que isso seria contraprodutivo, já que sem se conhecer e reconhecer o ator que tenha sido profunda e historicamente oprimido, não é possível pensar em decolonialidade.

A segunda frente se volta a um processo de escuta e divulgação que parte da compreensão dos processos de nomeação ligados à América Latina. Estudiosos afirmam que o nome “América” se dá em homenagem a Américo Vespucio, que foi o primeiro a reconhecer, mas não a invadir, nossas terras como um novo continente e não as chamadas Índias. Já “Latina” se atribui por conta das línguas latinas faladas nessa região, diferente das germânicas, faladas no Norte. Reiterando o trabalho cuidadoso com a linguagem que é feito por Gonzalez, visando a colocar no centro as diversas comunidades, Machado Mosquera relatou uma experiência em uma das oficinas oferecidas no evento, em que, como participante, perguntou aos demais o que achavam de chamar nossas terras de Améfrica Ladina. As respostas que obteve poderiam ser organizadas em (i) não é importante pensar sobre o nome do nosso continente, (ii) deveria se levar em conta os nomes que já circulam em algumas comunidades indígenas, mobilizando outras palavras que não as do colonizadores, e (iii) deveria se pensar em uma forma mais abrangente de nomear esse território. Mais do que tentar apresentar uma resposta unificadora, Machado Mosquera aponta a importância de se questionar a nomeação, mesmo que não seja para encontrar um novo nome. 

Assim, lidar com o fato de que as comunidades negras e indígenas são vistas como parte de territórios de sacrifício (em nome do desenvolvimento neoliberal) exige que ela se coloque não desde um lugar de pesquisadora ou mestranda, mas, sim, de uma mulher negra que traz à tona dinâmicas ordinárias (comuns e não conhecidas amplamente por quem está fora das comunidades) e extraordinárias (manifestações, bloqueios de estradas – como tivemos nas recentes greves na Colômbia e no Equador –, participação em espaços acadêmicos com escrita de artigos  que aconteceram recentemente e que obtiveram êxito na proteção dos povos e das terras) em jogo com sua presença. Por esse motivo, Machado Mosquera afirma que se apropriar dos processos de nomeação, tentar transformá-los para além da herança colonial é escutar e ler as comunidades negras, gerar espaços de discussão em que sejam convidados a serem protagonistas e até mesmo fazer entrevistas como essa.

(Re)nomear a Améfrica Ladina, então, se dá a partir da percepção de que os pensamentos começam enraizados, como afirma nossa entrevistada, na natureza, no território, no passado e nos diferentes conhecimentos que nos constituem. Parece-nos, então, que enraizar um porvir ou ensaiar outros futuros parte do (re)conhecimento da história e da autonomia dos povos que aqui vivem e que nos fazem existir enquanto povo ladinoamefricano Construir um território e uma relação com a natureza que transcende os processos exploratórios sem esquecê-los, é fazer uma aposta pela vida, nos termos de Leff, é traçar um futuro tão potente quanto o sentipensar dos povos da terra e de mulheres como Marilyn Machado Mosquera.

 

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988a. 

LEFF, Enrique. A aposta pela vida: imaginação sociológica e imaginários sociais nos territórios ambientais do Sul. Petrópolis: Vozes. 2016. 510p.

MACHADO-MOSQUERA, M. Re-existencias de comunidades negras del Norte del Cauca-Colombia por la permanencia en el territorio, y haciéndole frente al extractivismo minero. Gestión y Ambiente, [S. l.], v. 24, n. supl1, p. 225–247, 2021. DOI: 10.15446/ga.v24nsupl1.93299. Disponível em: https://revistas.unal.edu.co/index.php/gestion/article/view/93299. Acesso em: 27 nov. 2022. 

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