O pensamento econômico da CEPAL: uma apresentação didática

Raúl Prebisch em 1954 (esquerda) e Celso Furtado em 1962 (direita). Fotos: Arquivo Nacional (com alterações).

Por Vítor Lopes de Souza Alves.

Introdução

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) é uma das cinco comissões econômicas regionais da Organização das Nações Unidas (ONU). Ela foi criada em 1948, com sede em Santiago, no Chile, tendo por objetivo promover o desenvolvimento econômico latino-americano e caribenho. É reconhecida sobretudo pela defesa de uma teoria particular do desenvolvimento econômico, que vai de encontro às teorias convencionais. Ao contrário destas, que recomendam o livre-mercado e a especialização produtiva nos setores que apresentam vantagens comparativas – no caso da região, os setores primários, como agricultura e mineração –, a teoria cepalina entende que o subdesenvolvimento apenas pode ser superado através da industrialização conduzida pela intervenção estatal. Entre os teóricos responsáveis pela elaboração do pensamento cepalino, destacam-se o argentino Raúl Prebisch (1901-1986) e o brasileiro Celso Furtado (1920-2004).

Este texto propõe-se a apresentar, de forma sucinta e objetiva, as ideias fundamentais que compõem o pensamento econômico da CEPAL. Pretende-se que ele possa servir como material didático de fácil compreensão tanto àqueles que desejam conhecer o pensamento cepalino como àqueles que o ensinam.

Tem-se por referência o capítulo I, A Concepção do Sistema Centro-Periferia, do livro Teoria do Subdesenvolvimento da CEPAL, de autoria do uruguaio Octavio Rodríguez (1933-2017). Essa obra, lançada em espanhol em 1980 e traduzida para o português em 1981, reúne de forma sistemática o conjunto de contribuições teóricas que constituem o pensamento da CEPAL. Ela se propõe a “passar em revista e sistematizar os diferentes componentes do pensamento cepalino e, sobre essa base, tentar criticá-lo” (Rodríguez, 1981, p. 15), tratando-se de um excelente material introdutório ao assunto. Seu primeiro capítulo, que apresenta os conceitos de centro e periferia, é de especial importância. Tal formulação, que veio a público por meio de dois documentos-chave datados de 1949 – El desarrollo económico de la América Latina y algunos de sus principales problemas e Estudio económico de América Latina, 1949 –, constitui o núcleo do pensamento cepalino, a noção geral a partir da qual foram elaborados e com a qual se articulam os diversos corpos teóricos e as diversas recomendações de política próprios da CEPAL. Pode-se entendê-la, portanto, como a ideia definidora de um novo paradigma em economia, o da teoria cepalina do subdesenvolvimento.

A ideia do desenvolvimento desigual

Nos escritos da CEPAL, o conceito de desenvolvimento econômico comporta as seguintes definições: aumento do bem-estar material, aumento do nível da renda real per capita, aumento da produtividade média do trabalho, adensamento do capital ou aumento da relação capital/trabalho, acumulação de capital, progresso técnico etc. Em linhas gerais, portanto, esse entendimento é similar ao que se faz presente nas teorias do crescimento econômico neoclássica e keynesiana, dada a ênfase na acumulação de capital e no progresso técnico, bem como a identificação entre desenvolvimento e crescimento. Entretanto, há que se ressaltar uma diferença notável: ao contrário desses modelos teóricos, a CEPAL não se propõe a estudar a acumulação de capital e o progresso técnico no interior de uma economia capitalista isolada, mas se preocupa sobretudo em compreender como se dá a sua difusão no âmbito de um sistema mundial composto por espaços econômicos diferenciados, denominados centro e periferia.

A CEPAL reconhece que historicamente o desenvolvimento econômico deu-se de forma desigual no centro e na periferia. O quadro 1 a seguir apresenta as características estruturais atribuídas a cada um desses espaços, as quais expressam em termos estáticos a sua diferenciação:

Quadro 1: Centro x Periferia

Centro

Periferia

Economias em que as técnicas capitalistas de produção penetraram primeiro (Inglaterra e EUA);

Economias que permanecem atrasadas do ponto de vista tecnológico e organizativo (América Latina);

Produz e exporta bens industriais;

Produz e exporta bens primários (alimentos e matérias-primas);

Estrutura produtiva diversificada;

Produção especializada em um ou poucos produtos de exportação;

Difusão homogênea do progresso técnico pela totalidade do aparelho produtivo;

Difusão heterogênea do progresso técnico e economia dual: setor exportador avançado tecnologicamente e de alta produtividade x restante da economia atrasado;

Desenvolvido.

Subdesenvolvida.

Fonte: elaboração própria do autor a partir de Rodríguez (1981, p. 37-38).

Em termos dinâmicos, a diferenciação entre centro e periferia expressa-se pela existência de uma tendência de distanciamento, ao longo do tempo, entre os seus respectivos níveis de renda per capita, fenômeno para o qual contribuem tanto a evolução desigual das produtividades médias do trabalho como a deterioração dos termos de intercâmbio (DTI). A partir da seguinte equação, pode-se compreender de maneira mais direta esse processo:

y = (Lp.Pp)/(Li.Pi)

y: relação entre as rendas per capita da periferia e do centro
Lp: produtividade física média do trabalho na produção de um bem primário
Pp: preço de um bem primário
Li e Pi: o correspondente para um bem industrial

Por um lado, reconhece-se que o progresso técnico é mais acelerado no centro do que na periferia, de modo que “os incrementos da produtividade do trabalho – consequência da incorporação do progresso técnico ao processo produtivo – são mais intensos na indústria do centro do que nos setores primário-exportadores da periferia, fato que, por sua vez, se reflete na disparidade dos ritmos de aumento das respectivas produtividades médias” (Rodríguez, 1981, p. 38). Tem-se assim que Lp cresce mais lentamente do que Li, o que contribui para a redução de y. Por outro lado, identifica-se um declínio dos preços dos bens primários exportados pela periferia relativamente aos preços dos bens industriais por ela importados, isto é, a imposição a ela da DTI, uma vez que os ganhos de produtividade decorrentes da incorporação do progresso técnico não se traduzem, na prática, na redução proporcional dos preços de cada um dos bens. “Por definição, a deterioração dos termos de intercâmbio implica que o poder de compra de bens industriais de uma unidade de bens primários de exportação se reduz com o transcorrer do tempo.” (Rodríguez, 1981, p. 39). Conforme os documentos da CEPAL, o que se verifica é que tanto Pp como Pi apresentam crescimento, sendo, no entanto, o crescimento de Pp mais lento do que o de Pi, o que também contribui para a queda de y.

Como se pode notar, em decorrência de ambas as tendências, a relação entre as rendas per capita da periferia e do centro tende se reduzir: a renda per capita da periferia (Lp.Pp) cresce menos rapidamente do que a renda per capita do centro (Li.Pi), passando a representar uma fração progressivamente menor desta. Há que se ressaltar, no entanto, o resultado particular produzido pela DTI: em razão dela, as rendas per capita da periferia e do centro diferenciam-se com maior intensidade do que as suas respectivas produtividades médias do trabalho, isto é, a renda per capita da periferia cresce a uma taxa menor do que a sua produtividade, o contrário ocorrendo no centro. Em outras palavras, a DTI faz com que a periferia perca parte dos frutos do seu próprio progresso técnico, transferindo-os para o centro. A esse respeito, Rodríguez é enfático:

Esse é o significado da deterioração dos termos de intercâmbio que realmente interessa do ponto de vista conceitual, e convém reiterá-lo. Ainda que esse fenômeno não se produza, só a desigualdade dos ritmos de aumento da produtividade do trabalho já supõe que as rendas médias se diferenciem. Se, além disso, a deterioração se produz, as rendas médias se diferenciarão em medida ainda maior. Expresso em nomenclatura cepalina: a deterioração implica no fato de que os frutos do progresso técnico se concentram nos centros industriais. (Rodríguez, 1981, p. 40).

Quanto às causas que produzem a DTI, estas são explicadas pela CEPAL por meio da teoria das elasticidades. À medida que a produtividade e a renda se elevam mundialmente, a demanda mundial cresce e se diversifica, modificando-se a sua composição. Admite-se que a demanda por bens industriais cresça com maior intensidade do que a demanda por bens primários, isto é, que para cada unidade monetária adicional gerada na economia mundial, uma fração maior da mesma seja gasta na compra de um bem industrial do que na compra de um bem primário, fato este que pode ser expresso pela seguinte inequação:

ERi > ERp

ERi: elasticidade-renda da demanda por bens industriais
ERp: elasticidade-renda da demanda por bens primários

A satisfação dessa demanda crescente e em diversificação requer uma mudança na composição setorial da produção e do emprego, devendo o produto e a ocupação crescerem a taxas mais elevadas no setor industrial do que no setor primário. Dada a escassa mobilidade internacional da força de trabalho, surge uma tendência a se produzirem excessos de mão-de-obra na periferia, configurando-se o desemprego estrutural. Por sua vez, esse excedente de trabalho pressiona para baixo os salários e, consequentemente, os preços dos bens primários. Paralelamente, também contribuem para a DTI: a maior capacidade da força de trabalho do centro para conseguir aumentos salariais, dada sua maior escassez relativa frente ao capital e sua maior organização sindical, e a maior capacidade do empresariado do centro para preservar seus lucros em momentos de recessão, dado o fato de a sua produção ocupar as etapas finais do processo produtivo, o que lhe permite pressionar o empresariado da periferia a reduzir os preços dos bens primários.

Em conclusão, sustenta-se que, como resultado das diferenças existentes entre centro e periferia, tanto em termos estáticos (características estruturais) como em termos dinâmicos (diferença das taxas de crescimento da produtividade média do trabalho, DTI e diferença das taxas de crescimento do nível de renda per capita), tem-se que a dinâmica do sistema capitalista, considerado a nível mundial, é a do desenvolvimento desigual. Observa-se que é a própria desigualdade estrutural que enseja a evolução desigual da produtividade, a DTI e o distanciamento entre os níveis de renda per capita, isto é, as diferenças existentes em termos estáticos entre ambos os espaços econômicos são tais que criam as diferenças existentes em termos dinâmicos. Estas, por sua vez, atuam no sentido de garantir a reprodução das primeiras. Nas palavras de Rodríguez,

Esse é o tipo de raciocínio mediante o qual se procura mostrar que existe uma tendência à desigualdade entre os dois pólos do sistema centro-periferia, e que esta é inerente à sua própria dinâmica. Argumenta-se, em síntese, que, por um lado, a desigualdade estrutural e, por outro, a diferenciação entre produtividades e rendas médias atuam uma sobre a outra e se reforçam reciprocamente. (Rodríguez, 1981, p. 42-43).

A fase do desenvolvimento para dentro

O panorama descrito na seção anterior diz respeito à fase do desenvolvimento para fora da periferia, compreendida entre a Revolução Industrial e o início do século XX. Posteriormente, algumas ocorrências da economia mundial, conjunturais e estruturais, vieram a implicar a sua industrialização espontânea, ingressando ela na fase do desenvolvimento para dentro.

Entre os acontecimentos conjunturais que provocaram essa mudança, constam as duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) e a grande depressão dos anos 1930. Em virtude dos mesmos, o centro, envolvido pelo esforço de guerra ou em recessão, reduziu as suas importações de bens primários da periferia, vindo esta a se defrontar com uma escassez de divisas e uma dificuldade para importar os bens industriais daquele. Dada a restrição externa, a periferia foi forçada a adotar medidas como a desvalorização cambial, a imposição de tarifas às importações e a proibição direta destas. Paralelamente, também foram tomadas medidas para evitar a queda dos níveis de renda e emprego, as quais mantiveram a demanda periférica ao nível corrente. Como resultado, surgiram, nos países da América Latina, forças impulsionadoras da industrialização substitutiva de importações.

Entre as transformações estruturais, verifica-se a substituição da Inglaterra pelos EUA como centro principal da economia mundial, concluída na década de 1920. Ao contrário da Inglaterra, que era bastante integrada ao mercado mundial, os EUA possuíam uma economia relativamente fechada, com um coeficiente de importações baixo e declinante. Desse modo, enquanto até 1920 houve uma tendência para o equilíbrio a longo prazo da balança comercial, a partir desta década surgiu uma tendência ao déficit externo da periferia. Esse desequilíbrio induziu as economias latino-americanas a adotarem medidas restritivas às importações, o que também estimulou a sua industrialização substitutiva.

Por fim, um argumento teórico e abstrato também dá conta da industrialização periférica espontânea. O crescimento da economia mundial associa-se às tendências da mudança da composição da demanda e do deslocamento setorial da força de trabalho, da produção primária para a produção industrial. Dada a imobilidade internacional da força de trabalho, a periferia deveria, a partir de algum momento, começar a industrializar-se em alguma medida. Caso contrário, ou ela produziria quantidades crescentemente não vendáveis de bens primários ou apresentaria uma taxa de desemprego crescente.

Qualquer que seja a importância relativa atribuída a cada uma dessas explicações, o fato é que a periferia passou, no início do século XX, por uma mudança espontânea do seu modelo de crescimento: do desenvolvimento para fora, baseado nas exportações e nos bens primários, para o desenvolvimento para dentro, baseado no investimento e nos bens industriais. Nas palavras de Rodríguez,

Na concepção do sistema centro-periferia, a industrialização é considerada um fato real e um fenômeno espontâneo, que indica a existência de uma mudança no modelo do crescimento periférico, uma transformação do desenvolvimento para fora, baseado na expansão das exportações, em desenvolvimento para dentro, baseado na ampliação da produção industrial. (Rodríguez, 1981, p. 43).

Por sua vez, essa industrialização periférica diferiu substancialmente da industrialização do centro e apresentou uma série de dificuldades e problemas próprios, em sua maioria relacionados à inadequação da tecnologia, isto é, à inconformidade entre as características estruturais da periferia e o padrão tecnológico da indústria do início do século XX. Entre eles, podem-se listar:

  • Ausência de uma indústria de bens de capital e necessidade de importação destes. Consequentemente, as importações passam a crescer a um ritmo maior que as exportações, ainda baseadas nos bens primários. Como resultado, tem-se uma tendência ao déficit externo;
  • Introdução de técnicas capital-intensivas num espaço econômico já caracterizado pela superabundância de mão-de-obra. Além disso, a demanda por bens de capital é atendida por meio das importações, gerando empregos no centro e não na periferia. Como resultado, tem-se uma tendência ao desemprego estrutural e, consequentemente, à DTI;
  • Produção em grande escala, típica da indústria do século XX x baixo nível de renda da periferia. Resultado: insuficiência de mercado (demanda) e subutilização do capital;
  • Produção com elevada densidade de capital (elevada relação K/L), também típica da indústria do século XX x baixo nível de renda per capita e, consequentemente, baixa capacidade de poupar da periferia. Resultado: lentidão do processo de acumulação;
  • Falta de adaptação da infraestrutura periférica, mais favorável à produção primário-exportadora;
  • Dificuldades relacionadas à estrutura da propriedade fundiária, que tendem a limitar a oferta agrícola, desincentivar o investimento no campo e gerar desemprego.

De acordo com Rodríguez,

Em síntese, durante o processo de industrialização: perdura deterioração dos termos do intercâmbio; manifestam-se problemas de balanço de pagamentos e absorção de mão-de-obra; produzem-se desajustamentos intersetoriais da produção (carências de infra-estrutura, de oferta agrícola, etc.) e persistem as dificuldades de utilização e acumulação de capital. (Rodríguez, 1981, p. 47).

Contrariamente, o processo de industrialização do centro, iniciado séculos antes, não teve de lidar com nenhum desses problemas, pois o padrão tecnológico da indústria, que era diverso, evoluiu de forma lenta e gradual e em paralelo com o seu nível de renda, a sua indústria de bens de capital e a sua infraestrutura.

Enfim, apesar de se industrializar, a periferia persiste em condições de subdesenvolvimento e atraso estrutural relativamente ao centro. Embora tenham diversificado a sua estrutura produtiva, as economias latino-americanas não eliminaram a falta de complementaridade entre os setores produtivos e se mantiveram primário-exportadoras e heterogêneas. Os aumentos da produtividade média do trabalho e da renda per capita por elas obtidos, apesar de consideráveis, não permitiram uma aproximação aos níveis dos países centrais. Em suma, “a estrutura produtiva se vai transformando durante a fase de desenvolvimento voltado para dentro, sem que se consiga eliminar as diferenças de estrutura com relação ao centro, que se reproduzem em novos níveis” (Rodríguez, 1981, p. 48).

Conclusão

Ao mesmo tempo que assume a indústria como uma condição necessária para o desenvolvimento econômico, a CEPAL reconhece que a industrialização experimentada pela periferia no início do século XX, mantendo o seu caráter espontâneo e permanecendo entregue às forças do livre-mercado, estaria fadada a ser lenta e a manifestar a série de dificuldades anteriormente mencionadas, sendo ineficaz para promover a superação da condição de subdesenvolvimento. Assim sendo, o pensamento cepalino entende ser necessária uma política deliberada de desenvolvimento, ordenada e racionalizada e com recurso à planificação/programação, reclamando a condução pelo Estado da industrialização substitutiva de importações nos países latino-americanos.

Referências

CEPAL. Estudio económico de América Latina, 1949.
Disponível em: https://repositorio.cepal.org/handle/11362/1003.

PREBISCH, Raúl. El desarrollo económico de la América Latina y algunos de sus principales problemas.
Disponível em: https://repositorio.cepal.org/handle/11362/2039.

RODRÍGUEZ, Octavio. Teoria do subdesenvolvimento da CEPAL. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

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