A aventura de Atalia – uma narrativa de RPG sincera – parte 1

Em meio a uma sensação confusa de frio, calor, perda dos sentidos e da noção temporal, Atalia sentiu a sombra da morte pairando ao seu redor. Era como se fosse um cavalo preto, mas mais escuro do que a noite, que galopava ao seu encontro, chegando até ela, conseguia sentir a respiração gelada e confortante daquele animal, foi então que acordou.

Não sabia quanto tempo havia passado, nem onde estava, com imensa fraqueza e com fortes dores, olhava aos arredores e se via numa cama, no que parecia ser uma casa comum, tentou se levantar mas estava sem forças e ficou a observar o que podia, até que algum tempo depois surge uma senhora idosa com uma bacia que aparentemente estaria cuidando dela. Ela se apresenta para Atalia como Rute, esposa de Gesiel, um dos cocheiros que após ouvir a agitação dos cavalos foi lá ver o que ocorria, quando a encontrou ferida e desmaiada na estalagem, prontamente a socorreu trazendo-a para casa, pois embora nunca tenha falado com Atalia, a conhecia desde criança trabalhando naquele lugar. Rute então ajuda Atalia a se lavar e troca seus curativos, aproveitando para perguntar se lembrava do ocorrido.

  • Momento do teste! Atalia diante dessa pergunta, retoma suas memórias sobre o que testemunhou e no que resultou aquela informação, sentia que pelo bem da família do cocheiro, deveria guardar para si aquela informação, então se esforça para mentir para a Rute. Como Atalia nunca teve muito contato com adultos, mentir não é algo simples, ainda mais na situação debilitada em que se encontra. Vamos dizer que de 0.01 – 0.10 Atalia conta uma mentira convincente, de 0.11 – 0.20 conta uma mentira com furos, de 0.21 – 0.40 conta uma péssima mentira, de 0.41 – 1.00 não resiste à pressão e conta a verdade (agora vou lançar o teste): 0.02 (finalmente um resultado bom para ela).
  • Resultado: Atalia conta que se surpreendeu um homem tentando selar um cavalo, mas o animal estranhamente resistia, ela foi ver o que ocorria, quando ele a atacou.

Rute ouve a história e parece não se surpreender, dizendo que realmente faltava segurança naqueles estábulos e que Atalia teve sorte de sobreviver. Rute conta que Atalia ficou inconsciente por quase 10 dias, que ainda deveria descansar por mais algum tempo até que pudesse voltar para seu trabalho, e seu marido Gesiel estava preocupado com sua recuperação. Atalia seguiu descansando, de noite Gesiel, um cocheiro idoso veio ver como estava, ele ficou feliz em vê-la consciente e ela o reconheceu de vista, como um dos cocheiros que via entrando e saindo do estábulo a vários anos. Gesiel diz para Atalia descansar bem naquela noite, que a levará para o estábulo amanhã, mas ela deverá ficar em repouso até dar a hora da carroça passar e então ela poderá seguir para sua casa. Atalia agradece a hospitalidade e se põe a deitar, porém estava preocupada em retornar para aquele lugar, pois se o guarda-costas ou a Duquesa soubessem que ela continua viva, poderiam tentar matá-la.

  • Momento do teste! Durante aquela noite Atalia começou a imaginar vários cenários possíveis, desde retornar à sua antiga vida, até mesmo fugir para sempre. Começou a pensar na dificuldade e consequência de cada decisão, dentre elas, as consequências indiretas que poderia trazer à família do cocheiro. Ela nunca havia feito nada parecido, e sua saúde estava debilitada, de 0.01 – 0.10 ela decide ir embora antes do amanhecer, de 0.11 – 0.30 ela decide contar ao cocheiro o que ocorreu e pedir para ele um conselho sobre o que fazer, de 0.31 – 1.00 ela decide não fazer nada: 0.53.
  • Resultado: Atalia dorme naquela noite, e na manhã seguinte com a ajuda de Rute se arruma para ir com Gesiel até o estábulo. Suas feridas doíam, mas os curativos ajudavam bastante. Rute deixou algumas ataduras com Atalia para que ela pudesse trocá-los até de noite.

Atalia foi com Gesiel até seu local de trabalho, contudo estava com receio de que alguém a visse e a Duquesa ou seu guarda-costas viesse a saber que ela continuava viva. Atalia tentou se cobrir com um pano de modo a dificultar sua identidade.

  • Momento do teste! Atalia não tem experiência com disfarces e também dispunha poucos materiais para o objetivo de ocultar sua identidade, que para dificultar ainda mais, ela tem traços mestiços de indiana, o que fazia com que ela fosse facilmente identificável. Assim, de 0.01 – 0.10 ela faz um disfarce eficaz, de 0.11 – 0.20 ela faz um disfarce ruim, de 0.21 – 1.00 seu disfarce não oculta em nada sua identidade: 0.14.
  • Resultado: Atalia cobre seu cabelo com um pano como se fosse um véu, isso impedia que alguém de longe a reconhecesse, porém mesmo longe, olhando-a com atenção daria para reconhecer quem ela é.

Durante o percurso passaram pelo cemitério, uma paisagem incomum para ela, pois não ficava no trajeto que passava de carroça. Aquele lugar sombrio que contrastava com a luz do amanhecer, lhe trouxe uma sensação de aconchego e lembrança daquele cavalo preto que viu quando estava à beira da morte. Após chegarem no destino, Atalia agradeceu a Gesiel e disse que esperaria até dar o horário da carroça.

  • Momento do teste! Atalia estava indecisa sobre onde poderia esperar durante aquele dia. Como cresceu no estábulo, conhecia bem aquele lugar, poderia esperar ali, mas sentia medo de voltar para onde quase foi morta, pensava também em aguardar perto do alojamento dos serviçais, mas o risco de ser reconhecida ali seria alto, por outro lado, pensava no cemitério como um lugar mais distante e diferente de onde já esteve. Assim, de 0.01 – 0.25 Atalia decide encarar seu trauma recente e aguardar no estábulo onde já conhecia muito bem, de 0.26 – 0.50 Atalia decide esperar próximo dos outros serviçais, de 0.51 – 1.00 Atalia decide ir até o cemitério: 0.73.
  • Resultado: Atalia caminhou lentamente até o cemitério, e chegando lá sentiu novamente aquela aura confortante, haviam poucas pessoas ali, orando pelos mortos, assim decidiu fazer o mesmo.

Atalia não sabia ler e nunca teve contato com religião, não sabia ao certo o que as pessoas diziam em suas orações aos mortos, mas pensava na saudade que tinha de seu pai e como desejava vê-lo de novo.

  • Momento do teste! Atalia começou a escolher lápides aleatórias e a falar com a pessoa que foi enterrada ali como se estivesse falando com seu falecido pai, dizendo como sentia sua falta e desejava vê-lo novamente. Apesar de já fazer mais de 10 anos desde sua morte, ela nunca tinha falado sobre o que sentia e isso deu início a um despertar de emoções latentes. De 0.01 – 0.20 Atalia desmorona em lágrimas e se perde na dor da perda, de 0.21 – 0.60 Atalia se emotiva bastante mas consegue conter a dor e segurar as lágrimas, de 0.61 – 1.00 Atalia consegue deter o despertar dessas emoções afastando-se da ideia de que estaria de fato falando com seu falecido pai: 0.02.
  • Resultado: Atalia começou a chorar e a questionar sobre porque seu pai tinha partido, que ela sentia sua falta, que queria tê-lo de volta, tê-lo por perto. Em uma miscelânea de amor, ódio, seus sentimentos sinceros saiam ela primeira vez para aquelas lápides de quem ela não conhecia e sem que Atalia percebesse, ela começou a falar em uma outra língua (Habilidade adquirida: língua dos mortos).

Atalia passou a manhã toda ali quando começou a sentir fome, e voltou ao alojamento dos serviçais para comer.

  • Momento do teste! Atalia estava com medo de ser reconhecida, tentou ajeitar seu disfarce e se aproximar de forma discreta sem cruzar olhares com ninguém. Como Atalia nunca interagia com ninguém, principalmente pelo forte odor que ela tinha, de 0.01 – 0.30 ela entra e sai sem chamar a atenção de ninguém, de 0.31 – 0.60 ela é reconhecida por uma pessoa, de 0.61 – 1.00 ela é reconhecia por mais pessoas: 0.43.
  • Resultado: Atalia passou pelo refeitório e um dos serviçais se surpreende ao vê-la, ela desvia o olhar, come rapidamente e sai.

Atalia estava preocupada que a Duquesa ou seu guarda-costas viessem a saber da sua presença ali e viessem a surpreendê-la.

  • Momento do teste! Atalia estava indecisa, insegura e com medo do que poderia acontecer, havia pensado naquilo o dia todo e agora precisava decidir para onde ir. De 0.01 – 0.20 descobre um jeito seguro de voltar para casa, de 0.21 – 0.50 escolhe uma alternativa de risco baixo, de 0.51 – 0.90 escolhe uma alternativa de risco moderado, de 0.91 – 1.00 escolhe uma alternativa de risco alto: 0.19.
  • Resultado: Atalia decidiu esperar na estrada, pelo caminho que a carroça passaria. Sentia-se cansada para caminhar, sua saúde estava debilitada porém sentia que era mais seguro afastar-se dali.

Após algum tempo caminhando, se sentou para descansar e esperar a carroça. Quando a carroça passou, acenou e pegou carona. As pessoas na carroça se surpreenderam em encontrá-la ali, e disseram que alguns guardas vieram perguntar por ela. Chegando em casa, Atalia foi recebida pela sua mãe, tio e irmãos preocupados com seu sumiço, Atalia contou a versão que contou para Rute, sobre ter presenciado um ladrão de cavalos, a mesma versão que contou às pessoas na carroça para explicar o que os guardas poderiam querer com ela. Após comer, Atalia se lavou, trocou as ataduras e foi deitar pensando sobre o que faria daqui pra frente, pois mesmo que não voltasse para aquele lugar, as pessoas da carroça viriam a contar que a viram, e consequentemente a Duquesa mandaria alguém atrás dela.

STATUS

Nome: Atalia, filha de Galieu da região de Farhes
Aparência: Mestiça indiana/europeia
Idade: 16 anos
Profissão: Limpadora de estábulos
Equipamentos:
Roupa do corpo
Situação:
Saúde debilitada
Características:
Forte odor
Não sente nojo
Não se incomoda com odores
Pouco comunicativa
Gosta de ficar sozinha
Saúde forte
Afinidade com animais
Ágil e flexível
Língua dos mortos
Inimigos:
Duquesa de Mancini


RPG e “a inserção forçada de matemática”

No post anterior (A aventura de Atalia, parte 0) falamos sobre probabilidade condicional e distribuição de probabilidade, contudo, no texto de hoje desejo contar um pouco sobre minhas primeiras experiências com RPG na Educação Matemática. Durante a graduação, fui bolsista do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), e como parte destas atividades levava jogos de matemática para os alunos de Ensino Fundamental Anos Finais de uma escola de período integral, no intervalo do almoço. Por uma questão de orgulho, me coloquei junto com uma amiga a não repetirmos jogos em nenhuma semana, assim por uma limitação dos jogos existentes no Laboratório de Educação Matemática do qual a maioria dos bolsistas retirava os jogos para levá-los, precisamos começar a desenvolver novos jogos semanalmente. Esse trabalho nos levava a várias vertentes do que poderíamos fazer (e até mesmo chamar de jogo), e uma delas foi a de levar um RPG para os alunos.

Pegamos um mapa do jogo da Nintendo Zelda, reunimos personagens estilo Chibi de vários contextos para formar personagens jogáveis e monstros para criar as instâncias de combate. Criamos poderes, sistemas de danos, restrições para uso das habilidades e condições de sucesso (procedimentos básicos para RPG’s), porém ao concluir estas etapas, começamos a buscar “onde poderíamos inserir a Matemática neste jogo”. Então procuramos fazer quests que envolvessem resolver enigmas que poderiam render recompensas ou facilitar os contextos de combate caso fossem resolvidas corretamente. Essas quests com os desafios matemáticos propostos estão listadas no resumo expandido que escrevemos juntos posteriormente falando dessa experiência, chamado RPG NA ESCOLA, E AGORA?.

Nessa época eu ainda tinha uma visão bastante limitada sobre essa necessidade de “inserir a matemática no jogo”. Ao meu ver, a experiência com esse RPG (digo esse, pois houveram outros que virei a tratar neste blog ainda) foi bastante fraca, pois apesar do layout semelhante à jogos digitais e o uso de cores vivas, não acompanhou a dinâmica com que os eventos e a interação ocorriam. A situação de resolver os enigmas era puramente resolver problemas de matemática, com pouca ou nenhuma relação àqueles personagens que os jogadores assumiram. Mesmo os momentos de combate foram ruins, pois como os desafios levariam a benefícios de combate (como a redução de monstros), errar os desafios levava a quantidades de monstros e condições de combate desfavoráveis. De certo modo, acabamos ajustando de última hora as características dos monstros para que os personagens dos jogadores pudessem dar conta do combate.

Apesar de considerar que não atingimos a interação desejada para o jogo, essa experiência trouxe muitas reflexões que aparecem sobretudo na Aventura de Atalia parte 1, como na questão de quem resolve um desafio mental dentro do jogo? Podemos pensar que se jogamos com um personagem como Adrian Veidt (Ozymandias da série Watchman e considerado o ser humano mais inteligente do mundo), em situações de raciocínio e decisões técnicas, não faria sentido o jogador decidir, e sim o personagem. Ahhhh, mas ai podemos pensar que se nosso personagem é tão inteligente, então não estaremos de fato jogando com ele, e sim assistindo-o jogar? Também não, essa é de fato uma questão que já discuti muito com amigos sobre RPG, no sentido do que é o jogar RPG. A decisão cabe ao jogador, o raciocínio do personagem cabe ao personagem, Veidt por exemplo em Watchman pensa em uma solução para interromper o conflito armamentista da Rússia com os EUA durante a Guerra Fria (isso é um mérito do personagem, não se espera que o jogador pense em uma solução de alto nível), porém essa solução envolve a morte de milhões de pessoas inocentes (isso é uma decisão que cabe ao jogador). De maneira análoga, um jogador muito inteligente controlando um personagem de inteligencia bastante limitada não poderia sobrepor seus pensamentos avançados sobre as ações do personagem. Seria como se Adrian Veidt controlando o personagem Rorschach convencesse cientistas do mundo todo a desenvolverem um sistema que impedisse o Dr. Manhattan de ver o futuro que estaria por vim.

No contexto da Aventura de Atalia parte 1, vemos uma situação parecida, quando Atalia estava preocupada que a Duquesa ou seu guarda-costas viessem a saber da sua presença ali e viessem a surpreendê-la. Nesse momento fui descrever o teste, sem especificar o que ela faria exatamente, apenas o risco que envolvia a decisão que ela tomaria. Esse foi um momento em que a inteligência a ser testada era a da personagem, ela precisava pensar em uma maneira de voltar para casa em segurança, não adiantaria eu esperar que o jogador “pensasse” em uma alternativa, como por exemplo, se esconder em um barril, esperar no cemitério, permanecer no estábulo… a partir do resultado do teste, eu como narrador saberia dizer o quão seguro foi a escolha que ela tomou, independente da escolha. Esse é um aspecto que infelizmente vejo muitas vezes em RPG’s associado ao jogador, levando a uma situação em que o jogador diz “segui na estrada” e o narrador pensa “nossa, como ele descobriu que essa era a única alternativa segura?”. Esse é um exemplo em que a inteligência do jogador se sobrepôs à do personagem, e o evento em si parece independente de suas escolhas.

A mesma situação ocorre quando Atalia decide mentir para Rute sobre o que aconteceu, não bastaria o jogador inventar uma mentira satisfatória, pois assim jogadores com excelente retórica teriam personagens automaticamente com excelente retórica. Essa lógica não deveria fazer sentido, pois jogadores halterofilistas não teriam automaticamente seus músculos transpostos aos personagens que controlam.

Dito isso, retomo para o que estava contando sobre a experiência de levar um RPG para a escola e associar as habilidades de resolver desafios dentro do jogo aos jogadores, como uma forma de “inserir a matemática no jogo”. Pelo que vimos dessa aventura de Atalia, há muitas tomadas de decisões e raciocínios envolvendo a avaliar o contexto e calcular o risco de uma ação. Assim, existe tanto do raciocínio matemático para resolver problemas nestas situações “reais”, do que em resolver problemas matemáticos “artificiais” inseridos de modo um tanto forçado dentro do jogo.

Essa é uma compreensão que precisou de bastante tempo, experiência e conversas com outros jogadores para amadurecer. Mas é o início de uma visão de como trabalhar a matemática dentro dos jogos sem que ela seja um elemento de punição ou recompensa 🙂

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A aventura de Atalia – uma narrativa de RPG sincera
parte 0: https://www.blogs.unicamp.br/zero/3826/
parte 1: https://www.blogs.unicamp.br/zero/3832/
parte 2: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4247/
parte 3: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4283/
parte 4: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4579/
parte 5: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4700/
parte 6: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4703/
parte 7: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4708/
parte 8: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4716/

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Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. A aventura de Atalia – uma narrativa de RPG sincera – parte 1. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 7. Ed. 1. 1º semestre de 2022. Campinas, 18 maio 2022. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/3832/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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