A aventura de Atalia – uma narrativa de RPG sincera – parte 3

De volta à estrada, Atalia segue caminhando sem saber direito para onde estava indo. Seu ritmo era lento e sua aparência era pálida, seus curativos não eram trocados a mais de um dia, dormiu sentada na floresta (e na noite anterior sequer dormiu), estava se alimentando de coisas que encontrava no caminho e não sabia o quanto seu corpo resistiria daquela maneira, mas pelo menos os raios de sol davam-lhe uma revitalizada. Após algum tempo caminhando, ouve ao longe uma carroça se aproximando na direção contrária da qual caminhava. Tinha receio de acabar voltando para onde veio, mas seu estado era complicado demais para ignorar aquela oportunidade. Quando a carroça se aproximou, Atalia acenou e eles pararam.

  • Momento do teste! Atalia aparentava uma andarilha em uma situação lamentável, bastante fraca e pálida, perguntou se poderiam lhe dar uma carona para qualquer destino que estivessem indo. De 0.01 – 0.20 convence as pessoas na carroça a ajudá-la, dando-lhe inclusive algo para comer, de 0.21 – 0.40, as pessoas da carroça aceitam levá-la sem oferecer mais assistência, de 0.41 – 0.60 eles questionam o que ela poderia dar-lhes em troca da carona, de 0.61 – 1.00 eles simplesmente recusam ajudá-la: 0.56.
  • Resultado: As pessoas na carroça hesitam em ajudá-la, questionando-a sobre como ela poderia retribuir a da carona que pedia.
  • Momento do teste! Atalia estava não sabia como responder, ela carregava somente sua roupa do corpo e aquele cobertor, mas sabia que se o entregasse, viria a sucumbir de frio. Tentou então oferecer sua força de trabalho, dizendo que tinha sido por anos limpadora de estábulo, que se dispunha a ajudá-los em quaisquer que fossem as atividades que viriam a desempenhar. Como ela estava bastante fraca, sua aparência não inspirava segurança, assim, de 0.01 – 0.15 ela os convence que pode trabalhar para pagar sua carona, de 0.16 – 1.00 eles recusam a oferta: 0.27.
  • Resultado: Atalia não os inspira confiança o bastante, e eles acham que ela possa vir a causar mais problemas do que ajudá-los, assim, recusam sua oferta e seguem o caminho.

Atalia sabia que não podia fazer nada, então segue seu curso na estrada, andando com dificuldade e procurando sempre algo que pudesse ser comestível em seu caminho. Após mais algum tempo vê outra carroça passar, dessa vez no mesmo sentido que ela seguia, dessa vez quando se aproximam ela, ela acena e eles param.

  • Momento do teste! Atalia se esforça para que mostrar uma aparência forte mesmo diante de todo aquele cansaço, dessa vez tendo em mente a rejeição da última carroça que passou, já propõe que possam lhe dar uma carona em troca dela ajudá-los em quaisquer que fossem as atividades que viriam a desempenhar. Assim, de 0.01 – 0.25 ela os convence que pode trabalhar para pagar sua carona, de 0.16 – 1.00 eles recusam a oferta: 0.66.
  • Resultado: Atalia não os inspira confiança o bastante, e eles acham que ela possa vir a causar mais problemas do que ajudá-los, assim, recusam sua oferta e seguem o caminho.

O desespero começava a bater no coração de Atalia, se sentia péssima pela situação, com muito medo de sucumbir ali naquela tentativa infantil de fuga. Suas mãos geladas, com vertigem ela caminhava com muita dificuldade, já era de tarde quando começa a avisar outra carroça. Quando a carroça se aproximou, Atalia acenou e eles pararam.

  • Momento do teste! Atalia estava exausta, mesmo tentando se esforçar para mostrar uma aparência forte, seu cansaço ficava nítido, ela então implora que possam lhe dar uma carona em troca dela ajudá-los em quaisquer que fossem as atividades que viriam a desempenhar. Assim, de 0.01 – 0.15 ela os convence que pode trabalhar para pagar sua carona, de 0.16 – 1.00 eles recusam a oferta: 0.62.
  • Resultado: Atalia não os inspira confiança o bastante, e eles acham que ela possa vir a causar mais problemas do que ajudá-los, assim, recusam sua oferta e seguem o caminho.

Atalia sentia que era o fim, não tinha mais o que fazer e nem mesmo lágrimas para chorar, somente um suspiro seco de quem sentia a morte se aproximando. Após caminhar mais um pouco, encontrou o que aparentava ser uma casa queimada e se aproximou para ver melhor. O teto da casa já havia desabado, a maioria da madeira tinha virado carvão, mas ainda havia uma parte da parede que resistiu parcialmente ao fogo, aquilo não era de longe nenhum abrigo, mas pelo menos seria melhor do que dormir na floresta. Se escorou e cobriu-se por completo, sentia-se muito fraca e triste, quando a escuridão chegou, novamente aquela sensação de breu completo e solidão que acompanhava um medo horripilante. Desolada no escuro, lembrou-se do seu vaga-lume, e tirou-o do envelope, desejando veemente ver um pouco de luz tal como ocorreu na noite anterior e lhe trouxe paz.

  • Momento do teste! A exaustão física e mental era extrema, Atalia se sentia a beira de um colapso emocional, o que lhe mantinha firme no seu objetivo já estava se perdendo por completo, pois parecia tão melhor ter morrido de pressa ao fio daquela espada, do que esta falsa esperança que criou ao tentar fugir. De 0.01 – 0.70 o desespero se apodera de Atalia, e seu coração desmorona em lágrimas, de 0.71 – 0.90 ela se enche de lágrimas mas consegue manter-se firme de que tomou a decisão correta, de 0.91 – 1.00 ela resiste ao desespero e encontra forças para resistir àquela situação: 0.07.
  • Resultado: Atalia começa a chorar seco, pois não tinha lágrimas, estava com muita sede, medo e sentia um vazio sem fim no peito, sua cabeça roda e o medo lhe domina por completo, sentindo toda sua energia esvaindo do seu corpo até que não soubesse se continuava acordada ou não, quando dentro daquela coberta, surge uma luz verde (Habilidade adquirida: reanimar coleópteros).

Atalia sem entender, mal conseguia enxugar suas lágrimas para olhar com nitidez, mas aquele brilho começou a preencher o vazio de seu coração. Ela se alegrou, pois parece que seu vaga-lume não tinha morrido, ele devia estar somente dormindo e havia acordado. Isso lhe deu paz, agradecendo-o por sua existência, contudo seu cansaço rapidamente a fez cair em profundo sono.

STATUS

Nome: Atalia, filha de Galieu da região de Farhes
Aparência: Mestiça indiana/europeia
Idade: 16 anos
Profissão: Limpadora de estábulos
Equipamentos:
Roupa do corpo
Cajado (galho)
Cobertor
Situação:
Saúde muito debilitada
Características:
Forte odor
Não sente nojo
Não se incomoda com odores
Pouco comunicativa
Gosta de ficar sozinha
Saúde forte
Afinidade com animais
Ágil e flexível
Língua dos mortos
Reanimar coleópteros
Inimigos:
Duquesa de Mancini


RPG e habilidades genéricas

Realmente eu não fazia ideia de como as coisas sucederiam na aventura de hoje. Pensei primeiro que a carona poderia ser uma boa forma de Atalia conhecer pessoas, vir a se envolver em outro trabalho, avançar em uma jornada coletiva… porém foram três oportunidades perdidas, deixando-a novamente naquela situação trevosa. Já tinha pensado que a próxima habilidade dela ligada à magias necromantes seria ligada a reanimar o vaga-lume, mas achava que isso não ocorreria, afinal embora não pareça, tinha cerca de 25% de chances disso ocorrer e não 70% como parece na hora do teste. Para entender isso, vamos lembrar de probabilidade condicional, a chance dela não conseguir uma carona é dada pelo produto da falha nas 3 oportunidades que apareceram:

(0.40 + 0.20*0.85)*(0.75)*(0.85) = 0.44

Nesse mesmo sentido, a chance dela adquirir a habilidade para reanimar seu vaga-lume dependia dela não conseguir carona.

(0.40 + 0.20*0.85)*(0.75)*(0.85)*(0.70) = 0.25

Contudo, até o momento do teste, tinha claro na minha mente que a habilidade seria “reanimar inseto”. Porém, isso começou a me parecer um tanto genérico demais, algo que muitas vezes ocorre em RPG’s e de certo modo gera um desbalanceamento no jogo, que será o tema da discussão deste post.

Para começar, coleópteros é a ordem de insetos que inclui os besouros, um grupo que ao meu ver é bastante útil a um aventureiro, afinal, temos besouros de funções muito variadas e que permitem usos bem criativos (como espero ter a oportunidade de explorar nas próximas aventuras). A decisão sobre essa habilidade em vez da habilidade reanimar “insetos” se deu ao entender melhor o que seria a habilidade reanimar. Em discussão com um amigo que gosta de RPG, estávamos tentando compreender se uma criatura simples como um inseto mereceria ser considerado morto-vivo ou simplesmente voltaria a vida plena. A questão em si nos levou a perceber que a habilidade necromante não deveria estar ligada à curar o inseto, mas sim, em fazê-lo funcionar à força. Seria como se houvesse uma corrente de energia mágica que compensasse o organismo da criatura fazendo-o funcionar. Analogamente seria como se fossem substituídas as partes danificadas, permitindo a máquina mover-se, mas essas partes substitutas só existem enquanto a energia mágica existir. Quando as partes forem retiradas, o corpo volta a ser inanimado, pois precisava daquelas partes substitutas para funcionar. Enfim, a questão nisso tudo, é que existem diferenças fisiológicas entre insetos, tais como existem diferenças mecânicas entre carros. Uma peça de uma marca específica pode não funcionar em outra (as vezes na própria marca pode não funcionar variando o modelo). Assim, reanimar uma estrutura de inseto como besouro, não é o mesmo que reanimar uma estrutura como louva-deus.

Temos isso muito claro por exemplo na Universidade. Pesquisadores de mesmas áreas, colegas de turma de pós-graduação, pessoas que basicamente tem formações bem parecidas, se deparam com os trabalhos uma das outras, e sentem que não compreendem boa parte do que foi feito. Não por uma falta de estudo, interesse ou capacidade, mas porque os campos de especialização são muito específicos, e vão se afunilando a medida que avançamos mais em uma direção (seja qual for). Contudo, nos RPG’s costumamos ver um desenvolvimento genérico de habilidades que indica a “tendência” do sistema.

Por exemplo, em um sistema cujo foco sejam os combates, se esperam que a maioria dos conflitos sejam resolvidos no calor da batalha. Seria até mesmo mal visto pelo grupo, um jogador que tente resolver as coisas a partir de outros métodos. Digo isso por experiência própria, pois em alguns sistemas que já joguei em vários grupos, esse tipo de situação se repetia. Por mais que estratégias e ideias criativas fossem utilizadas para evitar ou até mesmo encerrar o problema sem sangue, o contexto geral pedia que isso fosse levado à batalha. Nesses casos, víamos que o sistema tinha regras e métricas bastante desenvolvidas e técnicas para definir quem acertou o golpe, quanto de dano cada golpe gerou, qual a iniciativa durante a luta, se haveria direito a contragolpes… também víamos que havia um refinamento elevado nas habilidades de combate, como por exemplo, lutar com espada curta, lutar com espada larga, esquivar, usar escudo, usar duas espadas, lutar com a mão oposta, lutar com espada longa, lutar no cavalo… assim, o jogador investia quase todos os seus pontos iniciais nestas habilidades para ser alguém mediano.

Por outro lado, algumas habilidades que teriam menor importância naquele contexto eram meio genéricas, por exemplo, “Primeiros socorros”. Basicamente o personagem tinha a habilidade e saia “curando” todo mundo, seja lá o que tivessem e com o que tivesse ao alcance. Faziam-se as gambiarras e opa, curamos o sujeito, ou pelo menos minimizamos o dano sofrido.

Mas se a habilidade não tivesse importância alguma naquele contexto, ela era totalmente genérica, por exemplo, “Moda”. Um personagem com essa habilidade, mesmo que investisse poucos pontos, viria a ser um especialista em todas as situações envolvendo todas as épocas, contextos, grupos, estilos… algo que simplesmente não condiz com a realidade de alguém que estuda esse assunto.

É nessa perspectiva que afirmo ser possível identificar o perfil do sistema a partir daquilo que é mais “denso” no desenvolvimento das suas regras. No sistema Daemon por exemplo, com o qual tive muita afinidade na adolescência e juventude, o foco é claramente combate e magia. Há pilhas e pilhas de regras, detalhes, condições e observações para definir como funcionará as magias (principalmente ligadas à combate). Enquanto em outros sistemas vemos que as magias (mesmo de combate) são bem mais simples, sendo o foco propriamente no combate sem magias. Temos inclusive alguns sistemas que o diálogo e inteligência do personagem é atribuído ao jogador, sendo de certo modo ignorados os pontos investidos nesses atributos (falamos um pouco disso no post anterior).

Então, porque não fazemos tudo de maneira bastante específica? Isso seria mais parecido com a vida real. Essa certamente não é uma ideia nova, mas o problema que enxergo nisso, é o tamanho das ramificações e intersecções que existem na própria vida real que extrapolariam uma descrição curta para qualquer personagem.

Por exemplo, pratiquei por algum tempo Kung Fu, mas para quem conhece um pouco mais dessa arte marcial me perguntaria, ok, mas era do Norte ou do Sul? Então respondo que era do Norte. Mas a conversa não termina ai, a pessoa pode então perguntar, qual era o estilo? Então respondo que era Garra de Águia. Mas a conversa não termina ai, a pessoa pode perguntar qual é a ramificação do Garra de Águia que eu treinei? Ai eu respondo que era a da grã-mestre Lily Lau.

Percebe como mesmo uma habilidade descrita simplesmente numa ficha, pode apresentar ramificações bastante distintas. Isso porque não pensamos ainda nas intersecções, por exemplo, treinei também Capoeira, Karatê, Judô, Kendô, Jiu Jitsu, Boxe Chinês, Judô Chinês. Cada uma com suas ramificações específicas mas todas elas com intersecções que de certo modo contribuiriam para uma habilidade relacionada à combate corpo-a-corpo. Vê como é difícil dizer que existam habilidades genéricas e tampouco descrevê-las de forma específica?

Uma regra que considero a “solução” para estes conflitos é dar um grau de liberdade ao personagem do jogador, deixando-o definir estes detalhes a medida que os eventos ocorrem. Por exemplo, o personagem tem alguma experiência com lutas desarmadas, então em determinado contexto ele se encontra com um grupo de Capoeiristas, e diz que o personagem tenha bastante experiência com Capoeira. Ok, ele tem! A única condição é que no futuro ele não poderá encontrar-se com um grupo de Caratecas e dizer que também tem bastante experiência com Karatê.

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A aventura de Atalia – uma narrativa de RPG sincera
parte 0: https://www.blogs.unicamp.br/zero/3826/
parte 1: https://www.blogs.unicamp.br/zero/3832/
parte 2: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4247/
parte 3: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4283/
parte 4: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4579/
parte 5: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4700/
parte 6: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4703/
parte 7: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4708/
parte 8: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4716/

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Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. A aventura de Atalia – uma narrativa de RPG sincera – parte 3. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 7. Ed. 1. 1º semestre de 2022. Campinas, 20 jun. 2022. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4283/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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