Em meio à pandemia vivenciada e às inúmeras ações que foram estabelecidas para a proteção contra o corona vírus, um item relativamente comum, e outrora pouco utilizado em nosso dia-a-dia, ganhou grande atenção de todos: o álcool em gel.
Do dia para a noite, a procura e o preço deste produto tiveram seus índices absurdamente elevados. O preço em alguns estabelecimentos chegou a custar mais do que o grama do ouro!
De modo súbito, vimos também emergir inúmeras alternativas, receitas milagrosas e adaptações, que tiveram sua divulgação potencializada por nossa incrível rede de disseminação de notícias por meio dos aplicativos de comunicação, redes sociais, programas televisivos, entre outros. Desde o uso de produtos não adequados à aplicação na pele (como álcool de churrasqueira, de limpeza ou o combustível) passando por receitas de produção caseira e por estratégias adotadas por indústrias, como a cervejaria que decidiu usar o álcool retirado de suas bebidas para a fabricação do formato em gel, pudemos presenciar, nesses últimos dias, iniciativas adequadas, oportunismos e práticas pouco recomendadas as quais podem não apenas deixar de proteger o usuário como também gerar lesões na pele. Entre mortos e feridos, boas e más condutas, oportunismos e ingenuidades, o que disso tudo se mostra coerente? O que de fato pode ser recomendado?
Dois pontos parecem ser importantes de serem esclarecidos e englobam de modo geral esse sem número de informações disseminadas a respeito do álcool gel.
O primeiro, que aparece como uma questão frequente se refere ao porque do álcool 99% (99 partes de álcool e 1 parte de água – alguns álcoois de limpeza e álcool combustível) ser MENOS eficiente na assepsia do que o álcool 70% (70 partes de álcool e 30 parte de água – o álcool em gel).
Afinal, se o primeiro tem mais álcool, deveria funcionar melhor, certo? A resposta é NÃO! Para explicar podemos começar com um exemplo bastante simples e que você mesmo pode testar em casa (sem precisar ser químico autodidata).
Experimente tentar lavar uma louça suja com gordura apenas com o detergente. Isso, não utilize água. APENAS DETERGENTE (99% DE DETERGENTE). Faz ideia do que acontece? Pois bem, sua louça irá ficar mais suja do que antes uma vez que para a limpeza é necessário uma ação do componente do detergente e da água. Mas e o que isso tem a ver com o álcool?
A ação do produto é resultado da interação não apenas do álcool mas da mistura álcool e água numa proporção que foi testada por diversas pesquisas. Desta forma, para que o produto consiga de fato agir sobre as moléculas que compõem o vírus é necessário uma ação conjunta do álcool e da água. O álcool atua na membrana celular bacteriana, tornando-a permeável. Neste processo a eficácia é aumentada na presença de água. A ausência de água gera menor penetração da substância no organismo e portanto, menor eficiência. Outro efeito, talvez menos importante mas que vale ressaltar é que há estudos que apontam um tempo mínimo de contato necessário. O álcool 99% pode evaporar num tempo menor do que o adequado para a atuação. Assim, ao utilizarmos álcool praticamente puro, minimizamos esta ação o que gera menor desinfecção1,2.
O segundo ponto que abrange grande parte das principais divulgações feitas está relacionado à produção caseira de álcool gel a partir de outros produtos como álcool de limpeza ou mesmo álcool combustível. Além do fato de que talvez ninguém comumente tenha em casa produtos e materiais de medição precisa, nem ao menos tenha formação técnica para a produção de um produto em casa, podemos perguntar inicialmente se o álcool de limpeza ou o combustível são feitos para passar na pele? Será que a qualidade e/ou pureza dos produtos utilizados na fabricação destes componentes são as mesmas daquela usada na fabricação do álcool em gel para uso na pele?
Pensemos então em outro exemplo simples e novamente utilizando o detergente. Você usaria detergente de pia para lavar seu cabelo (em substituição ao xampu?) Acredito que sua resposta tenha sido não. Mas porque, uma vez que o componente ativo é o mesmo na maior parte dos detergentes e xampus? Dê uma olhadinha nos rótulos e procure por lauriléter sulfato de sódio (ou sodium laureth sulfate – em inglês). Há ainda alguns derivados de mesma função como o linear alquil benzeno sulfato de sódio. Aproveite e veja também a quantidade de outras substâncias existentes
Pois bem, usar qualquer outro tipo de produto para fabricar álcool em gel seria o mesmo que usar detergente como xampu. No entanto, os cuidados no preparo de um e outro produto são bastante distintos, bem como a pureza dos reagentes utilizados e as substâncias adicionadas com o intuito minimizar quaisquer efeitos sobre a pele. Portanto, o seu produto caseiro pode não apenas ser ineficiente (por medidas inadequadas nas quantidades) como causar problemas na pele. Por essa e outras razões não é recomendado que se faça álcool em gel a partir de nenhum outro produto que contenha álcool e que não tenha a finalidade de uso para a pele.
E então? Ficaremos reféns da indústria do álcool gel? Seremos contaminados pelo não uso do produto? A resposta também é não. Embora não tenha como substituir este produto, o hábito de lavar as mãos com água e sabão ou com água e o bom e velho detergente se mostra bastante eficiente no combate ao vírus. Portanto, quem não tem cão, caça com gato, e quem não tem álcool usa sabão. Uma atitude mais simples do que virar um alquimista autodidata com base nos “conselhos” de pessoas que nem ao menos se conhece.
O álcool em gel deve ser utilizado em situações em que não temos a possibilidade de lavar as mãos com água e sabão! Lavar com água e sabão é o melhor método. Mais ainda: é fundamental utilizar o álcool em gel em toda a superfície das mãos, em quantidade suficiente para senti-las molhadas inicialmente, até que esse efeito seja diminuído. Nunca se deve utilizar o álcool em gel em mãos sujas. Pois, se as mãos estão sujas, o álcool atua sobre a sujeira e pode não eliminar totalmente os vírus. (Ressalvas feitas pela professora Silvia Gatti, do Instituto de Biologia da Unicamp)
1. Kawagoe, JY, Graziano, KU, Valle Martino, MD, Siqueira, I, & Correa, L (2011) Bacterial reduction of alcohol-based liquid and gel products on hands soiled with blood. American Journal of Infection Control, 39(9), 785–787. doi:10.1016/j.ajic.2010.12.018
2. Tim Sandle Pharmaceutical Facility Sanitization: Best Practices Considered https://www.americanpharmaceuticalreview.com/Featured-Articles/184449-Pharmaceutical-Facility-Sanitization-Best-Practices-Considered/