“Eu tenho quase certeza que não vou morrer por causa desse vírus aí, mas se eu parar de trabalhar eu e toda a minha família vamos morrer de fome”.

“Eu tenho quase certeza que não vou morrer por causa desse vírus aí, mas se eu parar de trabalhar eu e toda a minha família vamos morrer de fome”.

Foi no dia 18 de março que ouvi pela primeira vez essa frase, dita por um motorista de Uber, e que logo depois se tornou tão popular na mídia conjuntamente à progressão da pandemia de COVID 19 no país. Naquele dia fui à São Paulo para participar em um programa de rádio sobre Fome e Direitos Humanos. A universidade na qual eu realizo minha pesquisa de doutorado, Unicamp, havia cancelado todas as atividades até o dia 14 de abril e eu já estava em uma quarentena auto imposta pois tinha participado de muitos eventos com pessoas recém chegadas da Europa.  Por esses e outros motivos, a ida para São Paulo me deixava um pouco ansiosa, principalmente ao saber que a cidade se configurava como o epicentro da doença no Brasil. Depois de confirmar com os organizadores do programa que a entrevista ia acontecer de qualquer maneira, me preparei para a viagem tentando seguir ao máximo as medidas de higiene recomendadas.

No entanto, ao entrar na cidade fui percebendo que a vida por ali estava beirando a normalidade. Pessoas estavam trabalhando em lojas, havia vendedores de água e salgadinhos nos semáforos, os restaurantes estavam cheios e os ônibus municipais estavam tão lotados como usual. Assim, temendo contaminar alguém com a doença que nem sabia se tinha, resolvi chamar um Uber e, no caminho, comecei uma conversa que resultou na frase com a qual iniciei este texto.

A afirmação do motorista ficou martelando na minha cabeça durante todo o dia. Mais do que isso, foi essencial para me fazer pensar na relação entre a fome, os direitos sociais básicos e a epidemia que estávamos por enfrentar – o que acabou sendo o principal tópico de discussão da entrevista naquela manhã.

A comida sempre foi boa para pensar, como afirmou Lévi-Strauss (1929). Mas em relação à pandemia do COVID-19, a comida é objeto essencial para entendermos melhor os efeitos desta doença, não apenas compreendendo-a como epifenômeno de relações sociais mais amplas. Principalmente, porque o novo coronavírus tem suposta origem no consumo de animais exóticos e porquê sua epidemia impôs quarentena e distanciamento social para um número massivo da população mundial. E isto acabou impedindo ou alterando o acesso a direitos sociais mais básicos, tais como alimentação, habitação e saúde, que a atenção ao tema da comida e à garantia de acesso a ela é de extrema relevância.

Estou certa, assim como diversos pesquisadores e cientistas das mais variadas áreas, que a atual pandemia pode ser compreendida como um momento crucial para repensarmos categorias  estruturais de nossa vida em sociedade como a economia, a política, o governo e o Estado. Assim, a discussão sobre o acesso à comida enquanto necessidade básica para a sobrevivência parece ser um bom ponto de partida.

Em 1948, com a criação das “Nações Unidas”, após o fim de uma das maiores crises globais até então vivida, foi assinado a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, na qual o artigo 24 afirma:

“Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle” (ONU, 1948).

Essa declaração, apesar de não constituir uma obrigação jurídica para os Estados, se propunha como uma resolução com o objetivo de evitar uma nova situação catastrófica como aquela experienciada durante a Segunda Guerra Mundial. 

No momento atual, ao prestarmos atenção nas implicações que a epidemia de COVID-19 pode trazer para a sociedade como um todo, somos incitados a questionar se esses direitos foram em algum momento realmente garantidos, pelo menos para parte da população mundial.

Retomando a afirmação do motorista de Uber, mas também considerando o que os trabalhadores das mais diversas áreas têm reivindicado nesse momento, podemos nos atentar para a precariedade de muitas vidas. Talvez, grande parte da população nunca teve garantido “o direito à segurança em caso de perda dos meios de subsistência fora de seu controle” (ONU, 1948).

Penso, então, que o que essa pandemia está nos ensinando reside precisamente nos efeitos do vírus para além do tempo da ‘declarada pandemia’, modificando ou questionando ideias acerca do próprio conceito de ‘vida’ e subsistência.

A comida que é usualmente um objeto renegado ao setor privado de nossas vidas, o domínio do oikos, vista como parte de uma esfera afastada da política, define agora, talvez mais do que nunca, aqueles que podem viver ou os que são deixados para morrer. E nesse processo, acaba por definir também o que é entendido por economia (oikos) e qual a sua importância na ‘feitura do Estado’ (Lima, 2012).

De acordo com o Ministro da Saúde, Luis Henrique Mandetta, “a vida não se resume a uma doença, a um vírus”. Essa afirmação pode sim ser um consenso, no entanto, podemos questionar, a que se resume a vida então? Quais são os mínimos vitais que precisam ser estabilizados para que algo possa ser definido como vida? Que vida é essa que seguiremos tendo após a resolução dessa pandemia (e aqui não penso uma resolução no sentido de fim ou cura do problema)?

Um dia após essa constatação do Ministro da Saúde, o presidente Jair Bolsonaro aprovou uma medida provisória (MP) que buscava soluções para a crise econômica decorrente do COVID-19. Um dos pontos mais polêmicos da medida permitia a suspensão de contratos de trabalho por até quatro meses durante o período de calamidade pública no país, desde que fossem disponibilizados cursos de formação online para os trabalhadores. Esse ponto foi rapidamente removido da MP após grande mobilização virtual da população, mas o poder executivo federal segue tentando barrar toda possibilidade de criação de medidas que garantam um padrão de vida adequado para todos os cidadãos, com a justificativa de que essas ações poderiam quebrar a economia do país. 

No entanto, se nos atentarmos aos dados sobre trabalho no país percebemos que a taxa de informalidade é de 41%, o que equivale à 38,8 milhões de trabalhadores sem carteira registrada. Esses números sugerem então um baixo impulso na economia, pois normalmente o trabalho informal está associado à baixos salários, além de não permitir a garantia de estabilidade e segurança no provimento familiar. Em um contexto de crise são esses trabalhadores e suas famílias que são colocados, de uma hora para outra, em condição de total precariedade.

Face a esse problema, no dia 24 de março, o presidente Jair Bolsonaro, fez um pronunciamento oficial televisionado em todo o país, mostrando sua preocupação com a atual situação econômica. Em sua fala, tentando minimizar os efeitos da crise, afirmou que o COVID-19 não passa de uma “gripezinha” e que por isso somente os idosos e os casos suspeitos deveriam ser mantidos em quarentena e o resto da população deveria continuar vivendo normalmente, isto é, produzindo e consumindo.

A oposição entre economia e vida parece ser elemento central na forma de gestão do atual governo, o que nos incentiva a questionar então, como garantir um padrão de subsistência adequado para toda a população se o Estado não está disposto a manter grande parte dos cidadãos protegidos do vírus?

Apesar de parecer um questionamento um tanto inocente, penso que o novo coronavírus pode trazer a possibilidade de repensarmos algumas oposições dadas como ‘naturais’ que operam em nossa vida em sociedade, sendo a principal delas a oposição entre a esfera da economia e a da política. Acredito que o direito à comida ou próprio fenômeno da fome podem nos ajudar a trazer luz aos aspectos mais materiais que informam esse dualismo.

Se pensamos a economia enquanto diretamente associada à manutenção da vida, isto é, como instrumento de produção e reprodução das condições materiais necessárias à existência humana digna, essa oposição entre economia e vida, ou entre economia e política se desmancha. Mas se seguirmos entendendo essas esferas como separadas continuaremos presos a uma ideia de vida totalmente desnuda de humanidade. O vírus terá então nos ensinado muito pouco sobre nós mesmos.

Leia também:

Solidariedade: saúde para todos

Para saber mais:

Lévi-Strauss, Claude.[1929] (1965) Le triangle culinaire. L’Arc.

Lima, Antonio Carlos de Souza, (2012). O estudo antropológico das ações governamentais como parte dos processos de formação estatal. In: Dossiê. Fazendo Estado. Revista de Antropologia. Vol. 55, N. 02 de 2012, São Paulo, USP.

ONU. (1948) Declaração Mundial dos Direitos Humanos. Paris: III Assembléia das Nações Unidas, 10/12/1948. Res. No 217 A. Disponível em: http://www.onu -brasil.org.br/documentos_direitos humanos.php.

Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.