Szachna Eliasz Cynamon (1955-2007), um dos maiores sanitaristas e pesquisadores da Fiocruz, em 1990 afirmou que “solidariedade à saúde tem de ser para todos. É um aforisma tecnicamente provado que ‘sem a saúde do vizinho, a tua corre risco'”.

Temos visto muitas recomendações e indicações de cuidados próprios. Lavar as mãos o mais frequente possível, não passar a mão no rosto (boca, nariz, olhos…), tapar boca e nariz ao espirrar, passar álcool gel nas mãos, dentre outras prescrições.

#fiqueemcasa

A recomendação mais contundente de todas têm sido, entretanto, o “fique em casa”. Prescrição difícil de seguir em um país como o Brasil, aquele clássico clichê (não menos verdade por isso), “um país de dimensão continental”. Um país com o povo acostumado à rua, ao sol, às lidas diárias no campo, aos transportes públicos abarrotados nos centros urbanos, às praias no litoral, aos bares ao fim de tarde, o chimarrão na calçada com vizinhos, almoços coletivos aos finais de semana, conversas aleatórias com desconhecidos em filas de bancos e padarias… Em suma, uma vida de intensa interação social, com muitos trabalhos que não podem deixar de serem feitos… E agora? Como se cumpre isso em um país como o nosso?

São tempos de solidariedade, como nos disse Cynamon. Há quem, realmente, não possa parar de transitar. Há quem não tenha sabão para se limpar. Também há quem não tenha acesso e condições de aferir informações… Vamos pensar juntos sobre isso?

Sobre as informações e nossas ações…

Temos publicado aqui no blogs, assim como temos visto em diversos outros espaços de jornalismo científico e divulgação científica, inúmeros materiais sobre cuidado de si e informações que nos possibilitam compreender melhor o que é o vírus e como ele se dissemina. 

Uma das grandes dificuldades em tempos de pandemia é filtrarmos informações, não cairmos na tentação de nos agarrarmos em promessas de curas rápidas e discursos sedutores de que tudo vai melhorar ali, logo após a curva. 

São montantes de informações que vocês (e nós), leitores e consumidores de notícias, recebem diariamente. E são vários e vários artigos e relatórios científicos publicados também apressadamente para ampliarmos a rede de debate e compreensão da doença e de como combatê-la.

Veja, a informação deve ser filtrada (seja nos grupos de whatsapp, lives com especialistas, jornais televisionados, em rádios, seja de youtubers e, até, dos blogs de ciência, óbvio!) de modo a gerar uma eficiência em nossa vida. Como assim? Que eu compreenda a doença e os cuidados necessários para mim e quem está próximo, mas que não potencialize a ansiedade de cada um de nós (para saber mais sobre excesso de informações, pode ler aqui). 

E as implicações sobre as informações não se restringem à “biologia” da doença. Cada fala nossa diz respeito a vidas humanas, com complexidades que, quando em nosso âmbito privado, falam de todos e de ninguém ao mesmo tempo. Dizemos isto pois números, definitivamente, não são e não representam as pessoas. Mas falam das suas vidas, seus adoecimentos e suas mortes.

Sobre a solidariedade…

Ser solidário é, dentre outras coisas, compreender que não somos nós, individualmente, que a doença atinge. Cuidar da saúde dos outros é cuidar da nossa, como disse Cynamon em 1990. Ademais, a máxima “conhecer para governar” nunca fez tanto sentido. Não é possível governar com base em opiniões pessoais. É preciso debate com decisões rápidas sim, com corpo técnico, com grupos e redes de consultas e conhecimento acumulado também, para uma decisão que vise ao bem de todos e não de pequenas parcelas.

O isolamento social, por exemplo, é historicamente uma ação prática e efetiva em doenças em que o contágio se dá pelo toque entre pessoas (já falamos disso aqui). É, à primeira vista, prejudicial socialmente e economicamente, mas salva vidas na prática imediata. Viabiliza que contenhamos o espalhamento da doença, enquanto ganhamos tempo para compreendê-la melhor e aprimoremos os modelos epidemiológicos já existentes para pandemias e epidemias anteriores.

Há exemplos de silenciamento dos casos e de não disponibilizar informações seguras à população que pioraram, e muito, o quadro de adoecimento em epidemias que poderiam ter matado menos pessoas (como o caso da epidemia de meningite no Brasil, entre 1971 e 1975). Há modelos sendo pensados, a partir de negligências e acertos sobre a pandemia da gripe espanhola, em 1918.

Nenhum destes modelos fará com que vidas parem de serem exterminadas pelo SARS-Covid-2, causador da Covid-19. Mas nos possibilita olhar comportamentos que potencializaram ou minimizaram perdas. Semana passada, por exemplo, tivemos a notícia do auxílio emergencial (aprovado hoje, dia 30/03, no Senado Federal). Também emergem no país diversas ações solidárias para bairros e populações com menor condição financeira para manterem-se neste período de isolamento.

E aí? O que fazer de tudo isto?

Ao fim e ao cabo, nossa fala não diz respeito a tirar esperança das pessoas com números mais ou menos assustadores. Mas mostrar que não há milagre, fora a teimosia cotidiana de seguirmos vivos.

Nesta semana que passou, ouvimos relatos de São Paulo – a maior capital brasileira e o maior epicentro do coronavírus, esvaziar e encher – mesmo sem lotar – de gente novamente (como nas fotos abaixo da rua São Bento, destacando para o dia 27/03, após discurso público minimizando a importância da quarentena). 

Fotos de arquivo pessoal de alguém que (ainda) não foi liberado de seu trabalho, tiradas no mesmo ponto da rua São Bento (Centro Histórico, São Paulo/SP), entre os dias 23 e 30 de Março de 2020.

Reiteramos, aqui, nossa crítica a qualquer fala que amenize a gravidade da situação e proporcione um aumento da circulação de pessoas às ruas. Afirmamos, assim, que a solidariedade, a que nos remete Cynamon, se faz debatendo ciência – questionando-a também (visto que é com questionamento que avançamos e este é o pressuposto mais básico e fundamental da ciência). Solidariedade se faz combatendo “milagres que curam” (mas não curam nada) e vãs esperanças, notícias falsas e opiniões fraudulentas. Solidariedade se faz, por fim, ficando em casa também, batalhando para poder ficar e cobrando (inclusive de órgãos competentes e do poder público) para que possamos ficar, possibilitando uma diminuição do contágio.

Leia também neste blog

Alguns questionamentos sobre governo, um vírus e a fome

Para saber mais:

CYNAMON, Szachna Eliasz. (1990). Saúde Pública, qualidade de vida. Cadernos de Saúde Pública, 6(3), 243-246. https://doi.org/10.1590/S0102-311X1990000300001.

FOUCAULT, Michel. (2002). Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes.

___. (2008). Segurança, Território e População. São Paulo: Martins Fontes.

GENSINI, Gian Franco; YACOUB, Magdi H.; CONTI, Andrea A. (2004). The concept of quarantine in history: from plague to SARS. Journal of Infection. 49(4), 257-261. https://doi.org/10.1016/j.jinf.2004.03.002

Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.