As cores, os truques e o (complexo) genoma da “serragem marinha”

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Quando começaram a sequenciar genomas no século passado, os cientistas descobriram que nem todas as letrinhas do DNA viram proteína. De fato, em muitos organismos superiores, a maior parte do material genético aparentemente não servia pra nada e acabou sendo chamada de “DNA lixo”. Só recentemente começamos a entender que essa lixeira genética guarda muitas funções importantes — como as instruções para organização embrionária dos animais. Bactérias não têm embriões, mas um gênero de cianobactérias peludinhas que dá cor a diversos mares tem uma boa dose de material não-codificante.

A Trichodesmium é uma cianobactéria filamentosa bastante básica. Tipo, realmente básica para toda a cadeia alimentar: sendo um organismo oligótrofo, ela é capaz de sobreviver em regiões bastante áridas de mares tropicais e subtropicais. A Trichodesmium se dá tão bem nesse tipo de ambiente que forma colônias gigantes (florescências ou blooms), que podem ser vistas a olho nu e que os antigos marujos chamavam de “serragem marinha”. Uma espécie em particular, T. erythraeum, forma grandes aglomerações avermelhadas no Mar Vermelho (donde o nome do mar). Alguns blooms são até visíveis do espaço.

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“Trichodesmium bloom, between Vanuatu and New Caledonia, SW Pacific” by NASA Moderate Resolution Imaging Spectroradiometer (MODIS) on NASA’s Aqua satellite. Licensed under Public Domain via Wikimedia Commons

Além de formar gigantescas manchas coloridas no mar, o que a Trichodesmium mais faz na vida é fixar nitrogênio (diazotrofismo). Ao transformar o nitrogênio gasoso da atmosfera em amônia (solúvel em água), as Trichodesmium tornam mais habitáveis os lugares onde vivem. Na prática, a serragem do mar é uma verdadeira fábrica de fertilizantes (estima-se que produzem de 60 a 80 milhões de toneladas de nitrogênio solúvel por ano). Assim, é sobre elas que se cria toda uma cadeia alimentar.

Surpreendentemente, não há estruturas internas que separam a produção de nitrogênio da respiração de oxigênio. Aparentemente, isso só é possível graças à redução da produção de O2 no fotossistema II. Outro truque da Trichodesmium é sua alta mobilidade. Seu interior tem muitos vacúolos, o que lhe permite descer a até 200m de profundidade em busca de nutrientes.

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Trichodesmium: fonte de nitrogênio em ambientes marinhos. [créditos na imagem]

Seu colorido, sua oligotrofia e sua diazotrofia já seriam o bastante para chamar a atenção dos cientistas. Que tal dar uma olhada em seu código genético?

Em outros microorganismos oligótrofos, quanto mais simples o DNA, melhor. Com um ambiente pobre em nutrientes, não dá pra desperdiçar muita energia acumulando mutações que não servem para produzir proteínas. Além disso, como as bactérias se reproduzem por meio de clonagem, uma mutação errada traz um risco muito grande de dizimar uma colônia inteira. Era um genoma simples que os cientistas esperavam encontrar na Trichodesmium.

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Parece serragem mas é um mundo de Trichodesmium

Sob orientação de Nathan Walworth, doutorando da University of Southern California, um grupo de geneticistas fez o sequenciamento do genoma da T. erythraeum. O que eles descobriram é que o genoma da Trichodesmium tem muito material não-codificante. Enquanto outros seres oligotróficos têm no máximo uns 15% de genes não-codificantes, a Trichodesmium tem 37% (dessa fatia, 86% são expressos).

Para a equipe, esse DNA rico em não-codificantes é causado por uma combinação de fatores. Um desses possíveis fatores é a forma como a serragem marinha se espalha em imensas colônias (ou blooms). Os blooms podem ter centenas de quilômetros de comprimento e formam-se sobre áreas de águas quentes (27ºC ou mais) e calmas por períodos que podem durar vários meses.

“No entanto,” — alerta Eric Webb, um dos coautores do paper publicado na edição de março da PNAS — “como há muitas outras cianobactérias formadoras de colônias que não têm expansões não-codificantes, a ecologia da multiplicação não é tudo. Por enquanto especulamos que interações com outros organismos não-identificados podem ser importantes”.

Portanto, ainda ficam as perguntas sobre a origem e a utilidade desse tipo de código genético para as Trichodesmium. É possível que esse “junk DNA” seja utilizado para regular suas complexas atividades de fixação de nitrogênio e formação de colônias. Dada sua importância ecológica, não faltam motivos para novas pesquisas sobre a serragem marinha.

Referência

rb2_large_gray25Nathan Walworth, Ulrike Pfreundt, William C. Nelson, Tracy Mincer, John F. Heidelberg, Feixue Fu, John B. Waterbury, Tijana Glavina del Rio, Lynne Goodwin, Nikos C. Kyrpides, Miriam L. Land, Tanja Woyke, David A. Hutchins, Wolfgang R. Hess e Eric A. Webb. Trichodesmium genome maintains abundant, widespread noncoding DNA in situ, despite oligotrophic lifestyle. PNAS April 7, 2015 vol. 112 no. 14 pp. 4251-4256. Published online before print March 23, 2015, doi: 10.1073/pnas.1422332112

[via Phys.org]

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