No mês do Dia da Toalha estive azarado feito um Arthur Dent. Ainda que a Terra não tenha sido destruída (por enquanto), meu carro me deixou na mão durante uma viagem e, como não tenho dinheiro para consertá-lo, me vi andando tanto que ganhei uma lesão no calcanhar direito. Também tive problemas com um grupo de trabalho na faculdade. Apesar de tudo, pude ver boas produções sobre o impacto de um massacre escolar numa comunidade americana, as lutas contra os preços abusivos de medicamentos contra a AIDS, os esforços para recuperar os veteranos traumatizados pela II Guerra, e observei as experiências de ficar cego, resgatar refugiados da Alemanha Nazista, ter filhos e conhecer o Japão.
Newtown (83min., 2016) — Um desfile de 4 de julho numa cidadezinha de um pequeno estado norte-americano parece algo banal demais para abrir um documentário. Só que aquela cidadezinha chama-se Newtown e ali, em 14 de dezembro de 2012, a vida de dezenas de famílias de alunos e funcionários da Escola Elementar Sandy Hook mudou para sempre. Para os noticiários foi apenas mais um dos tiroteios típicos da cultura americana, que endeusa o acesso irrestrito a qualquer tipo de arma. Os políticos fazem discurso num dia e esquecem o caso no outro. A escola é demolida mas não há como derrubar o luto de uma cidade inteira. No entanto, esse documentário dirigido por Kim A. Snyder é diferente e tem por principal objetivo o registro de memórias daquelas vidas tão curtas, executadas de maneira tão cruel quanto caótica. Nele três das 20 crianças assassinadas a tiros de AR-15 ganham nome — Dan, Ben, Dylan — e são apresentadas e lembradas por seus pais, irmãos e vizinhos. Também conhecemos a história de uma funcionária morta ao tentar se lançar contra o atirador e sabemos como ele é visto por uma vizinha dele. Ouvimos relatos de policiais e de médicos que responderam à ocorrência mais violenta já vista em Newtown e de um padre assombrado por ter que lidar com 26 sermões fúnebres e uma comunidade inteira chocada e desorientada. Os pais de alunos sobreviventes também são afetados e o relacionamento deles com os que perderam seus filhos é um assunto delicadamente difícil. É isso: Newtown é um documentário delicadamente difícil, porém necessário.
Fire in the Blood (Fogo nas Veias, 83 min., 2012) — Se 40 milhões de americanos sucumbissem a uma doença devastadora, porém curável, qual seria o preço do medicamento aceitável para tratá-los e evitar milhões de mortes? 15 mil ou 300 dólares por ano? Não demoraríamos a descobrir isso, mas no caso de milhões de africanos e indianos infectados pelo HIV, foram necessários vários anos para que o preço dos medicamentos antirretrovirais (ARVs) alcaçassem um patamar acessível. Neste documentário, o diretor Dylan Mohan Gray expõe os motivos por trás dos preços astronômicos do coquetel anti-AIDS: um sistema de patentes desvirtuado, uma indústria que investe mais em publicidade e pagamento de acionistas do que em pesquisa, a existência de monopólios de medicamentos em países subdesenvovidos, as pressões impostas por acordos comerciais e políticos injustos (quando não ameaçadores) e sobretudo o racismo. Até para os ativistas anti-AIDS dos EUA e da Europa, o tratamento de portadores em nações africanas seria indesejável porque eles, sendo analfabetos, não saberiam seguir as orientações ou a massificação do tratamento levaria inevitavelmente a um foco de resistência do HIV que se voltaria para todo o mundo. Nem todo mundo, porém, aceitou esse estado de coisas, que causou cerca de 10 milhões de mortes por soropositivos entre 1996 e 2003. Durante esse período, pessoas como Bill Haddad, ex-assessor de Kennedy que se tornou especialista em genéricos, James Love, ativista de propriedade intelectual americano, Yusuf Hamied, químico indiano pioneiro na produção de ARV genérico, além de médicos, ativistas e soropositivos africanos lutaram contra a indústria farmacêutica e seus governos para tornar os ARVs mais acessíveis. Participações especiais de Bill Clinton, do arcebispo emérito Desmond Tutu, de Joseph Stieglitz, ex-membro do Banco Mundial e de um ex-executivo da Pfizer.
Let there be light (57 min., 1946) — Quando a guerra acaba, a angústia começa. Depois de anos nos campos de batalha, sendo sujeitos a acontecimentos insuportáveis e fora de seu controle — bombardeios, mortes de colegas, soterramentos, ferimentos graves como um coração partido — os veteranos retornam à pátria. Alguns têm cicatrizes visíveis mas outros, aparentemente ilesos, continuam feridos por coisas do cotidiano (como ruídos súbitos e aviões) ou da vida interna como (pesadelos, transtorno de fala e dificuldades de locomoção). Produzido pelo diretor John Huston logo após a II Guerra Mundial, este documentário clássico acompanha os dois meses de tratamento de “soldados psiconeuróticos”, portadores do que hoje conhecemos como Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Embora alguns tratamentos sejam ultrapassados — como a hipnose e a aplicação de amobarbital — eles são bastante efetivos em casos extremos e abrem as portas para soluções mais convencionais como a terapia psiquiátrica (individual ou em grupo), a musicoterapia, a arteterapia, a terapia ocupacional e as atividades físicas. Junto a isso, há um processo de reedução dos veteranos para a vida civil e, em alguns casos, de sua família para recebê-los. Simples e direto, com cenas da rotina do Hospital Geral Mason intercaladas com narrações explicativas, este documentário deveria ser parte do esforço de educar a população sobre os problemas psicológicos enfrentados pelos veteranos. Embora tenha encomendado a produção, o Exército americano acabou considerando o filme sincero demais e impediu sua exibição às vésperas do seu lançamento. Let there be light só viria a público, após anos de insistência de Huston junto às autoridades, em 1981.
Notes on Blindness (86 min., 2016) — Como é a experiência de perder a visão? Pode-se perder a vista por diversos motivos e reagir de maneiras igualmente diversificadas. Dada a subjetividade inerente à cegueira, os diretores Peter Middleton e James Spinney recorreram ao formato de docudrama para apresentar a experiência vivida pelo teólogo anglo-australiano John Hull (1935-2015), que perdeu a visão no começo dos anos 1980 e documentou isso numa série de audiodiários. As gravações feitas por Hull foram transformadas no áudio desse filme, que retrata sua vida familiar e profissional, seus modos de adaptação, seus momentos de dúvida e solidão mas também de lenta aceitação mediada por suas reflexões intelectuais sobre sua nova condição. Mais que uma simples reconstituição, esse documentário pode ser visto como um bom drama baseado em fatos reais, com boas atuações de Dan Renton Skinner (Hull) e Simone Kirby (Elizabeth, a esposa de Hull). A fotografia, que alterna momentos de nitidez e embaçamento, obscuridade e clareza, ofuscamento e escuridão completa busca complementar, visualmente, as experiências relatadas em áudio, como os sonhos e pesadelos de Hull, o desvanecimento de sua memória visual, a apreciação de elementos sonoros como a chuva e a música, as frustrações de um natal triste e as conversas com seus filhos. Nos minutos finais são apresentados os verdadeiros John e Elizabeth mas apesar do esclarecimento breve falta um verdadeiro epílogo à obra, explicando as causas da cegueira do teólogo e mostrando cenas de seus últimos anos. Apesar disso, Notes… teve indicações ao BAFTA e foi eleito o melhor documentário do Festival de Cinema Independente Britânico.
Defying the Nazis: The Sharps’ War (79 min., 2016) — Antes mesmo do início da II Guerra Mundial o pastor unitarista americano Waitstill Sharp e sua esposa Martha declararam guerra à Alemanha nazista. Foi uma guerra bastante peculiar, cujo objetivo era salvar judeus e outros refugiados em países ocupados e invadidos por Hitler. Para isso, o casal Sharp teve que se afastar de seus três filhos pequenos. Eles começaram suas operações humanitárias em Praga, Tchecoslováquia, em 23 de fevereiro de 1939. Em poucas semanas o país estaria ocupado e, em poucos meses, o mundo estaria mergulhado na II Guerra. Dirigido por Ken Burns e Artemis Joukowski, este é um dos primeiros documentários da PBS (a TV pública americana) a ser disponibilizado no Netflix. Através de imagens de arquivo, reconstituições em um adequado estilo noir e cartas trocadas pelo casal (as de Waitstill são narradas por Tom Hanks) e depoimentos de estudiosos e pessoas salvas pelo casal, Defying… conta como esses dois americanos aparentemente comuns foram parar às portas do inferno e o que eles fizeram para salvar algumas milhares de pessoas por meio de auxílios financeiros, obtenção de vistos, distribuição de alimentos e sobretudo organização de viagens clandestinas de judeus ou seus filhos para os EUA, o Reino Unido, a França. Embora o fervor de Waitstill fosse maior a princípio, Martha acabou sendo profundamente influenciada por seu trabalho de organizar viagens de imigração de crianças e ao voltar para casa tentou se aventurar na política. Intensa, a experiência se revelou desgastante para a família: os Sharp se separaram após a guerra e seus filhos só foram entender a importância das longas ausências de seus pais depois de muitos anos. Nos minutos finais, um epílogo silencioso nos conta como cada foi a vida de cada personagem retratado pelo filme, que é dedicado a todos os indivíduos que não puderam ser resgatados.
Séries documentais
O Começo da Vida (1 temp., 2016) — Crianças: como nascem e como se desenvolvem em seus primeiros anos? Como transformam adultos em pais? Qual o papel da comunidade na criação delas? Qual o impacto do contexto social em seu desenvolvimento? Essas perguntas são respondidas em seis episódios (cerca de 40 min. cada) desta série documental brasileira produzida com apoio da UNICEF. Sob direção de Estela Renner, especialistas como médicos, pediatras, psicólogos, educadores, economistas e até artistas de diversos países apresentam suas explicações para as fases cruciais do surgimento de cada serumaninho. Por outro lado, pais e mães de diversas condições sociais — de favelados indianos à Gisele Bündchen — relatam suas experiências com bebês, tão similares e ao mesmo tempo tão distintas. Altamente recomendável para quem quer ser pai ou já está à espera de um filho, esta série exige algum cuidado para ser acompanhada: os personagens estrangeiros não são dublados, o que torna indispensável o uso de legendas. Para quem estiver apressado, existe uma versão condensada (porém mais superficial), de mesmo nome, com 96 min. de duração.
Japanese Style Originator (1 temporada) — Tudo é bem diferente no Japão: as roupas, as comidas, os castelos, a escrita. Produzida pela TV Osaka, esta série tem o objetivo de apresentar a cultura japonesa para todo mundo, dentro e fora da Terra do Sol Nascente. Nos primeiros episódios aprendemos como nos comportar num restaurante de tempurá, como é um jardim tipicamente japonês, como se colhe e se prepara o chá, quais são as variedades de tofu e como as mulheres usam yukata, um kimono de verão. No estúdio, convidados mais ou menos fixos tentam responder as perguntas que são feitas durante o programa, que também conta com um par de crianças para fazer algumas passagens. Apesar de interessante para quem — como eu — está interessado na cultura nipônica, essa série não deixa de ter alguns defeitos. Primeiro, nem todos os episódios estão disponíveis: começamos do ep. 2 e pulamos para o 4, o 5, o 8, etc. Segundo, a duração de cada programa é bastante variável, de 35 a 88 minutos. Embora tenha objetivo educativo, o game de perguntas e respostas não é muito divertido, pois não conta pontos e as respostas são sempre apresentadas primeiro ao telespectador, que dessa forma fica impossibilitado de participar. Por fim, a participação das crianças (uma das quais é um garotinho loiro bem ocidental) parece forçada a ponto delas soarem dubladas por adultos. Defeitos à parte, é um bom entretenimento e cumpre seu propósito de divulgação da cultura japonesa para um público pouco ou nada familiarizado com o tema.