De facas enfezadas à terceirização de assassinatos e sobrancelhas narcísicas, o IgNobel deste ano manteve a tradição de congratular os pesquisadores mais esquisitos do mundo
TRADIÇÃO É UMA FACA DE DOIS LEGUMES: por um lado, é legal levar adiante os hábitos e costumes das gerações anteriores; por outro, uma tradição pode facilmente se tornar uma amarra, uma força paralisante, pronta a nos prender num passado que já não existe ou sequer existiu. Pessoas criativas, como cientistas e artistas, costumam ter pouca reverência diante das tradições estabelecidas. Isso não quer dizer que não existam tradições nessas áreas.
Uma tradição irreverente da comunidade científica, por exemplo, é o Prêmio IgNobel. Dedicado a divulgar as pesquisas que primeiro fazem rir, depois pensar, o IgNobel é tradicionalmente realizado em meados de Setembro desde 1990. A 30a. primeira edição, portanto, seria um bom motivo para lotar o palco, o auditório e as galerias do Sanders Theater, em Harvard, na última quinta-feira (17/09). Entretanto, pela primeira vez, essa tradicional locação não pôde ser o cenário da cerimônia mais sem-cerimônia da comunidade científica.
O comitê do IgNobel pode ser engraçadinho, mas não é burro. Dadas as condições extraordinárias de um ano tão bugado quanto 2020, seria impossível reunir cerca de mil fãs e cientistas num ambiente fechado e sem distanciamento social como um teatro. Assim, o IgNobel deixou de lado uma tradição e recorreu a outra: a transmissão ao vivo, realizada via YouTube há vários anos — antes das lives virarem modinha.
Como sempre, 1) o evento foi apresentado por Marc Abrahams, editor da Improbable Research, revista responsável pela escolha dos agraciados; 2) a cerimônia foi unificada por um tema e o deste ano foi bugs, em seus vários sentidos, do etimológico ao tecnológico; 3) os dilúvios de aviõezinhos de papel foram realizados três vezes, mesmo que remotamente e D) a mini-ópera, montada em quatro atos, teve uma narrativa contra-kafkiana, de um inseto que acorda em corpo humano e de humanos que se consideram insetos.
Sem mais delongas e listas inconsistentes, vamos às premiações deste ano tão absurdo:
1) Acústica
É uma brincadeira tradicional nos laboratórios de química em todo mundo: crianças de todas as idades engolem um pouco de gás hélio e se divertem com a voz esganiçada resultante desse gole. Jacaré no hélio desafina? Digna da curiosidade infantil, essa pergunta levou a uma pesquisa conduzida por Stephan Reber, Takeshi Nishimura, Judith Janisch, Mark Robertson e Tecumseh Fitch. Ao confinar um aligátor chinês num ambiente rico em hélio, os cientistas da Áustria, Suécia, Japão, EUA e Suíça descobriram que sim, um jacaré desafina quando inala o gás que nos deixa com voz engraçadinha. Todos os autores da pesquisa compareceram — por videoconferência, claro.
2) Psicologia
Sobrancelha, aquela pilosidade acumulada sobre os olhos, pode ser um negócio muito expressivo. Por ela podemos reconhecer um olhar surpreso, irritado ou apaixonado. Miranda Giacomin e Nicholas Rule foram além dessa tradição e buscaram nessa área peluda da cara um meio de identificar narcisismo. Pela descoberta de que as sobrancelhas também podem transmitir a mania de grandeza de um narcisista, os pesquisadores do Canadá e dos EUA foram recompensados com o IgNobel de Psicologia — que Rule recebeu, virtualmente, escondendo bem as próprias sobrancelhas. Será que ele é (narcisista)?
III) Paz
Desde que se separaram e ficaram de mal logo após a independência, em 1947, Índia e Paquistão mantém viva a tradição de trocar insultos e ameaças—- inclusive nucleares. Recentemente, a escaramuça diplomática entre os dois países sul-asiáticos escalou até chegar ao nível da criancice. Diplomatas dos dois indianos e paquistaneses foram à residência um do outro — apenas para tocar a campainha e sair correndo antes que alguém atendesse. Como uma molecagem dessa é preferível a uma troca de bombas atômicas, a diplomacia indo-paquistanesa levou o IgNobel da Paz deste ano. Curiosamente, apesar da brincadeira, os embaixadores se levam tão a sério que não compareceram à entrega do prêmio.
Δ) Física
Não é nem uma tradição e sim um instinto: minhocas vivas vibram e debatem-se quando estão na nossa mão. Uma minhoquinha poderia vibrar mais ainda, em alta frequência? Ivan Maksymov e Andriy Pototsky submeteram as criaturas aneladas a impulsos de alta frequência e notaram que, nesse caso, a vibração das minhocas tem um padrão muito semelhante à da superfície da água nas mesmas condições. Ligados a instituições da Austrália, França, Ucrânia, Itália, Alemanha, Reino Unido e África do Sul, Maksymov e Pototsky deram uma pequena demonstração em vídeo de seus experimentos.
$) Economia
O brasileiro beija bastante mas não tem boa distribuição de renda. O escandinavo é o oposto, beijando pouco mas com uma riqueza distruibuída mais igualmente. Pode parecer um clichê bem tradicional, mas foi cientificamente provado por uma equipe multidisciplinar do Reino Unido, Polônia, França, Brasil, Chile, Colômbia, Austrália, Noruega e Itália.
Em artigo publicado na Scientific Reports, Christopher Watkins, Juan David Leongómez, Jeanne Bovet, Agnieszka Żelaźniewicz, Max Korbmacher, Marco Antônio Corrêa Varella, Ana Maria Fernandez, Danielle Wagstaff e Samuela Bolgan estudaram a relação quantitativa entre a desigualdade de renda e média de beijo-na-boca de diferentes países. O grupo foi representado apenas por Christopher Watkins — o que é uma pena, pois assim não houve nenhuma demonstração de beijo. Nem um pobre selinho sequer!
½) Administração
Administração nada mais é do que a aplicação de princípios econômicos na prática. A terceirização de atividades, por exemplo, vem sendo pregada por economistas como uma maneira de melhorar a geração de emprego. Os chineses 奚广安 (Xi Guang-An), 莫天祥 (Mo Tian-Xiang), 杨康生 (Yang Kang-Sheng), 杨广生 (Yang Guang-Sheng) e 凌显四 (Ling Xian Si) demonstraram empiricamente que a terceiração também tem potencial de facilitar a segurança pública.
Ao receber uma encomenda de assassinato, Xi Guang-An repassou o trabalho para Mo Tiang Xiang, que subcontratou Yang Kang-Sheng, que transferiu o serviço para outro Yang, o Guang Sheng; este, por sua vez, recorreu a outro matador de aluguel, Ling Xian Si. Cada assassino recebeu uma fração do preço inicialmente combinado e o assassinato nem chegou a ser cometido. Capturado enquanto convencia a vítima a forjar a própria morte, Xian Si acabou denunciando o esquema de terceirzação criminal. Preso, o quinteto de empreendedores não pôde receber o IgNobel nem à distância.
√49) Entomologia
Aranhas são, segundo a tradição popular, insetos (ou inseptos, segundo a Chiquinha). Talvez seja uma classificação instintiva: ambos os bichos costumam ser perigosos e têm aparência asquerosa para a maioria. Acontece que as aranhas não têm parentescos com insetos e os entomologistas e aracnologistas poderiam listar várias razões para isso. Mas bastam exatamente duas: as duas pernas extras que os aracnídeos têm em relação ao insetos. Para o leigo, essa pequena diferença é indiferente e o medo é o mesmo.
Entomólogos, claro, não têm medo de insetos. Será que têm aracnofobia? Richard Vetter, aracnólogo que estuda as relações entre as criaturas oitopáticas e os bípedes sem plumas, entrevistou seus colegas da comunidade entomológica e descobriu que a resposta é geralmente positiva: muitos especialistas em insetos temem as aranhas. Por descobrir que os entomologistas são gente como a gente quando se trata de aranhas, o americano levou o IgNobel — de entomologia, não aracnologia, o que não deixa de ser irônico.
∞) Medicina
O CRONCH da maçã de incomoda profundamente? A crocância das fritas do cara na mesa ao lado te tira do sério? Ou será o barulho de quem sorve com gosto uma sopa tradicional? Não estamos aqui para dar um diagnóstico (nem para discutir seus gostos alimentares), mas é possível que o problema seja não o barulho de alimentos em mastigação, mas o seu cérebro.
Talvez você sofra de um transtorno psiquiátrico identificado por Nienke Vulink, Damiaan Denys e Arnoud van Loon: misofonia. Além de propor os critérios de diagnóstico, os pesquisadores belgo-neerlandeses também notaram que a terapia cognitivo-comportamental funciona como tratamento deste problema. Os três receberam seu IgNobel direto do hospital onde desenvolvem suas pesquisas e agradeceram os pacientes.
33) Educação Médica
Esta categoria não existiria sem a COVID-19 e conta com uma lista de agraciados desgraçados: Jair Bolsonaro (Brasil), Boris Johnson (Reino Unido), Narendra Modi (Índia), Andrés Manuel López Obrador (México), Alexander Lukashenko (Belarus), Donald Trump (EUA), Recep Tayyip Erdogan (Turquia), Vladimir Putin (Rússia) e Gurbanguly Berdimuhamedow (Turcomenistão). Como já deve estar claro pelos nomes listados, esse grupo — que poderíamos chamar de coronaclube — foi recompensado por ensinar ao mundo que os políticos podem ter um efeito mais imediato sobre a vida e a morte da população do que os cientistas e os médicos.
Para o líder bielorrusso, o IgNobel não é novidade: junto com a polícia de seu país, ele já havia recebido o IgNobel da Paz em 2013 por proibir aplausos em público — e mandar a polícia prender um homem de um braço só por aplaudir. Donald Trump também teria recebido um IgNobel em 2017, por um suposto paper intitulado “Prova da Hipótese de Riemann utilizando a teoria dos fatos alternativos”.
Tradicionalmente avessos tanto às críticas quanto à comunidade científica e ao bom-humor (e ainda mais às críticas bem-humoradas da comunidade científica), nenhum dos “líderes” citados compareceu à cerimônia virtual do IgNobel. Talvez tenha sido melhor assim, por evitar esse tipo de companhia.
10) Ciência dos Materiais
Se os nomeados para a categoria anterior parecem uma merda, nessa é o objeto de pesquisa que é uma bosta. Mas não qualquer bosta, claro. Estamos falando fezes humanas congeladas e moldadas em forma de faca. Alguém no ramo arqueológico deve ter tido a brilhante ideia de propor a teoria de que os homens da era do gelo poderiam fabricar ferramentas com seus próprios resíduos solidificados. Pois bem, como qualquer hipótese precisa ser provada, uma equipe de pesquisadores americanos e britânicos pôs a mão na massa escatológica.
O artigo publicado por Metin Eren, Michelle Bebber, James Norris, Alyssa Perrone, Ashley Rutkoski, Michael Wilson e Mary Ann Raghanti não faz rodeios e responde à pergunta da pesquisa já no título: “Replicação experimental demonstra que facas manufaturadas com fezes humanas congeladas não funcionam”. Como dizem os programadores, garbage in, garbage out. Se você não quer que sua teoria acabe ridicularizada, não proponha uma teoria ridícula. Ao menos Eren et. al. tiveram sabedoria o bastante para rir de si mesmos e aceitar o que deve ter sido o IgNobel mais nojento dos últimos anos.
Como era de se esperar, algumas tradições da cerimônia do IgNobel tiveram que ser quebradas. O troféu desse ano era um legítimo cubo de papel sulfite — bem mais simples que o habitual, mas com a vantagem de poder ser entregue à distância e render montagens toscas. A nota de 10 trilhões de dólares zimbabuanos também teve que ser adaptada — não é mais uma cédula oficial, o que no fim das contas não faz muita diferença em termos monetários.
Por outro lado, algumas soluções têm potencial de virar novas tradições do IgNobel. O dilúvio de aviõezinhos de papel, ainda que pré-gravado, teve a participação de gente do mundo todo. As animações de inspiração montypythonescas entre uma parte e outra do evento não ficariam mal nos telões do palco usado normalmente. Se a pequena Sweetie Poo não pôde cortar os discursos mais longos ao expressar seu tédio, não faltaram momentos fofos com crianças (e gatos).
Enfim, este texto já está ficando longo demais e eu demorei bem mais do que gostaria para terminá-lo. Se você veio aqui só pelo vídeo da premiação (em inglês), ei-lo:
As referências diretas para os estudos de cada pesquisa contemplada com o IgNobel podem ser verificadas na página oficial do evento.