Fala de criança: Extratos de um Diário (II)

Que pais não ficam maravilhados com as primeiras palavras dos filhos? Ou quando estes inventam palavras aparentemente do nada? Como entender de onde vieram? Estas questões são caras à Linguística e colocam a questão da coleta de dados. Em cena, os diaristas, como foram chamados aqueles que se ocuparam em registrar as falas da criança, considerados hoje os precursores do método longitudinal naturalístico.

Rosa Attié Figueira – DL/IEL-UNICAMP; GPAL; CNPq

                        Numa contribuição anterior ao blog do IEL, sob o título Extratos de um Diário I, apresentei episódios do diário de uma menina, colhidos por sua mãe Daniela.

Dando sequência a este mergulho apaixonante nas novidades linguísticas do dia-a-dia desta menina, selecionei outras de suas instigantes produções, registradas por volta de seus 3 anos de idade:

(a) bebeçálio  (por berçário; lugar da escola onde ficam os bebês);

  (b) cabeceiro  (por travesseiro).

Exibindo uma entrada “original” sobre a massa fônica, as nomeações (a) e (b) tornam visível a relação (semântica) que encontra inesperadamente outro pouso: a) bebê e não berço; b) cabeça e não qualquer outra coisa.1

Seria esta “outra coisa” para nós, falantes adultos, no caso de travesseiro: (a)travessar ou travessa ? A indagação toca um ponto importante de nossa relação com a língua: o uso efetivo não requer um retorno à origem das nomeações, ou ainda, citando Saussure, a sucessão dos fatos de língua no tempo não existe para o falante.De minha parte, posso assegurar que pratico há muito o termo travesseiro sem me dar conta de sua base derivante; disso não necessito para usá-lo.

Quanto à menina, 3 anos de idade, na sua particular trajetória com a língua, sua produção desenhou naquele ponto da massa sonora (no ambiente -eiro) um vínculo que se cumpre na (diriam alguns) bem resolvida nomeação : cabeceiro para aquele objeto que conhecemos como travesseiro. Engraçado, desconcertante?  Não para a garotinha, que permanece alheia ao efeito produzido por sua inovação.

Assim, é oportuno assinalar que em (a) e (b), a menina não “usufrui” do jogo que se instala em suas produções. Surpresa, espanto (ou prazer) restam a quem escuta o dado… de graça ! Em tal caso a graça é um subproduto fortuito de um movimento que afeta sua expressão linguística; e que não toca à menina desfrutar, “saboreado” apenas por quem a ouve, no caso, o adulto.

Considerações acerca de quem ri e do que se ri ocuparam-me numa publicação sobre dados anedóticos (Figueira 2001).3 Assim, ao interessado por tais questões é possível sugerir uma ampliação do material, de tal maneira que seja possível explorar os efeitos da fala divergente sobre o adulto interlocutor na cena enunciativa. Interessa também surpreender aquele momento em que a criança se mostra sensível aos efeitos (engraçados) de sua própria fala.

Desenho: Melissa Alachev

A pequena passagem pelo dado acima não tem, neste espaço, outra pretensão senão a de chamar a atenção para um ponto, já abordado brevemente em Extratos de um Diário I : ditos curiosos na infância estão ao alcance de qualquer observador casual da criança, sendo que alguns deles chegam a assumir um tom mais poético, conduzindo ouvidos sensíveis a declarar, como faz Manoel de Barros, que “a criança erra na gramática, mas acerta na poesia”. Ou, como Mia Couto, que: “as crianças estreiam na língua fazendo outro matrimônio entre as coisas e os nomes”. Não é bem esta a impressão que nos causa a nomeação “uma cortina do olho” (fr. un rideau d´oeil), para “uma pálpebra”, achado memorável que nos chega de Sully ?4

——–

Agradecemos a Daniela Marini-Iwamoto pela preciosa colaboração, ao disponibilizar os dados que recolheu. Agradecemos também a Melissa Alachev que desenhou os quadrinhos, nos quais acrescentamos o diálogo entre a criança e a mãe.

  1. A última permite uma aproximação (e uma discussão aprofundada em outro lugar) com a nomeação dos franceses para a peça que recobre o travesseiro: tête d´oreiller por taie d´oreiller, “faute” constatada por Henri Frei (2011 [1929]: p. 61), no livro La Grammaire des Fautes, entre as chamadas etimologias populares. Ver para tal, nossa contribuição à mesa redonda “A Produtividade dos Conceitos do Curso de Linguística Geral” ( III Jornada de Estudos Saussurianos, IEL/Unicamp).
  2. Deixamos ao leitor a tarefa de buscar tais referências em Saussure, Curso de Linguística Geral.
  3. Figueira, Rosa Attié. 2001. Dados Anedóticos: quando a fala da criança provoca o riso… Humor e aquisição da linguagem. Linguas e Instrumentos Linguísticos, 6. Campinas. p. 27-61.
  4. James Sully, psicólogo inglês, autor de Studies of Childhood (1985), apreciava registros colhidos em diários por pais ou professores, durante os 5, 6 primeiros anos de vida, que lhe fornecessem “fatos que testemunhassem as características da mente infantil” (Pereira de Castro e Figueira 2006: 76).

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*