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Lugar de puta é na política: identidade e participação significativa
Semana passada comemoramos, na quinta, o Dia Internacional da Mulher. Entre tantos temas urgentes, necessários e pertinentes, discuto neste momento a prática feminista universitária que se diz aliada à luta da classe trabalhadora. Faço isto não mais interpelando minhas companheiras imperativamente como outrora. Mas, dessa vez, atravessada por outra forma de fazer a política feminista.
Faço isto principalmente como forma explícita de reconhecimento à magnitude dos conhecimentos organizativos coletivos que estou tendo contato agora, como membra da Associação Mulheres Guerreiras. Isto tem se dado sobretudo por conta da execução do Projeto de Extensão Comunitária “Fortalecimento da articulação sudeste com a Rede Brasileira de Prostitutas: Difusão do VI Encontro Nacional e 30 anos de movimento organizado” coordenado por Adriana Piscitelli.
Este projeto, em vigência desde novembro do ano passado, tem como objetivo principal fortalecer as unidades auto representativas de homens e mulheres profissionais do sexo regionalmente visando uma articulação a nível nacional de fato. Como forma de ação direta está a difusão das discussões e encaminhamentos tirados no VI Encontro Nacional das Prostitutas, realizado em setembro de 2017.
Entre as cidades de Campinas, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Ribeirão Preto iremos reforçar as alianças estratégicas da associação com diferentes setores da sociedade (tanto específicos da categoria como também composto por demais apoiadores) a fim de trabalhar especificamente em duas frentes: na valorização da identidade da profissional do sexo e na potencialização das alianças em prol da defesa dos direitos humanos. Nas palavras do GEMPAC1, no projeto Zona Legal, identidade e participação significativa.
A preocupação central desse projeto são os futuros feministas em relação aos direitos das trabalhadoras sexuais brasileiras, como anuncia em seu subtítulo. O projeto prioriza o estabelecimento de parcerias a fim de atenuar o quadro de vulnerabilidade social que as prostitutas atualmente se encontram. Ou seja, visa atuar conjuntamente com outras entidades (não exclusivas de profissionais do sexo) visando o efetivo acesso e garantia à educação, à justiça e à saúde.
Isso, aos olhos da entidade proponente, implica diretamente em um trabalho de formação de agentes, ou seja, de sensibilização e de contextualização mínima da organização local e das especificidades do trabalho (dos poderes executivos, militantes feministas, profissionais técnicos das áreas específicas, entre outros). Dessa forma, unificante (e não conciliatória), assume abrangência nacional. Assim, apesar da singularidade construtiva da história das mulheres prostitutas, busca-se constituir alianças para enfrentamento e acesso aos serviços de direitos e justiça em sua diversidade, integrada com outras categorias de luta por direitos.
Mas aos olhos jovens revolucionários (sonhadores mas impacientes) poderia até mesmo parecer impossível, contraditório ou inadmissível. No entanto, o que venho me deparando é com uma organização em rede não só efetiva como extremamente produtiva. Dentro das condições materiais imediatas, da história que é possível fazer, diversas mulheres cis e trans tecem redes internacionais de resistência reinventando a hierárquica esquerda brasileira: tanto reconhecem a importância das veteranas como abrem espaços para as recém-chegadas. Esse movimento, inédito para mim, divergiu radicalmente da prática desarticuladora dos movimentos universitários que protagonizam ao menos nos últimos cinco anos os feminismos jovens.
Nesses contextos, em muitas enunciações que não se abriam para a reflexão, acompanhei o amadurecimento das noções de lugar de fala. Por outro lado, tive contato com o debate acerca de outra noção: posição no discurso2. De forma muito resumida, ao meu ver, houve um forte embate nesses últimos anos nos feminismos mobilizando esses dois conceitos. O primeiro assentado na experiência da opressão (identidade) e o segundo em estabelecer diretrizes discursivas para um projeto conjunto que transponha apenas o grupo dos indivíduos afetados assegurando seu protagonismo (participação significativa).
Essa articulação de um “nós” com um “eles” são medidas sobretudo práticas que visam principalmente conter o esfarelamento interno das luta anticapitalista em nível de extensão universitária, pesquisa conjunta, produção de conhecimento e divulgação desse conhecimento sempre por meio de viés um ético e político, assumindo as responsabilidades intrínsecas no dizer sobre o outro e pelo outro.
Esta (auto)crítica se faz necessária especificamente a partir do lugar de feminista jovem, atravessados pelas redes sociais de funcionamento expressivamente espetacular e monofônico. Esses feminismos identitários, obcecados com performatizar uma coerência e uma certeza que figurem como vitrine, não raro, é adepta do escracho como linguagem única de discordância. Ao meu ver, principalmente em relação às questões raciais em contexto brasileiro, assumir essa postura desentala um grito da garganta e segue rumo a alguma vingança possível, mas ainda assim a partir de uma violência massacrante, como a de quem espanca uma criança3.
Por conta disto, tento desde minhas práticas tecer essas considerações de forma diferente. No entanto, como fazer isto não me bastando pela enunciação de uma coleção de pronunciamentos individuais e pessoalizados4? Para esboçar horizontes a serem perseguidos, assumo quatro compromissos ancoradas em reflexões de Mariana Cestari5.
O primeiro deles é referente ao diálogo da Análise de Discurso com outros gestos de leitura, comumente caracterizados como políticos e que reivindicam tal lugar de dizer próprio no putafeminismo. Ou seja, é me colocando como responsável pela mediação (difusão) das discussões e pautas dentro de sua heterogeneidade e assegurando seu protagonismo, a partir do lugar de apoiadora que inicio minha reflexividade em primeira pessoa.
O segundo deles é de não tomar como objeto de análise apenas materialidades discursivas que dicotomizam e hierarquizam oralidade e escrita (verbal e não-verbal, teoria e prática, político e cultural). Que também considerem a limitação de circulação de determinados sentidos, seja em seus temas ou argumentos. Faço isto por ora me referindo neste texto de forma ampla ao conjunto divergente de experiências que tive nesses últimos meses como associada e que tenho nesses últimos cinco anos como apoiadora externa.
Em terceiro lugar, assumindo as reflexões sobre o meu processo de constituição subjetiva na práxis feministas dos anos de 2012 a 2018, assumo meu lugar de universitária e resgato a historicidade desse lugar de fala. Afinal, isto se faz imprescindível quando resgatamos o contexto relativamente recente de organizações feministas universitárias da UNICAMP como o SOS Mulher6, que inclusive gozou do apoio e legitimidade da própria administração pública da cidade oferecendo como contrapartida prestação de serviços voluntários.
Suas ações de acolhimento a vítimas de violência doméstica, de encaminhamento a outros serviços de atendimento público e de orientação jurídica pontual, dá corpo a um programa municipal ainda maior que data da década de 1960. De Pastoral da Mulher Marginalizada, católica e doutrinatória, ao trabalho dessa organização universitária, tivemos poucos deslocamentos quanto notamos suas práticas assistencialistas, conscientizadoras e disciplinadoras. Isto, claro, para além do partidarismo instrumentalizante e insignificante a nível eleitoral do movimento estudantil.
Por fim, em quarto lugar, busco formular teoricamente o processo de constituição do sujeito no/do discurso e as lutas de deslocamento ideológico em formações sociais específicas da sociedade brasileira urbana, tomando por tema a articulação política dos profissionais do sexo em rede internacional. Para tanto, assumo em meus projetos próximos de pesquisa tanto a investigação dos efeitos específicos na prostituição de rua do histórico de expropriação colonial quanto de séculos de escravidão. Torna-se, portanto, indispensável a interligação não só entre gênero e exploração de classe nos processos de constituição subjetiva, mas de raça. Sobretudo em uma nação que realizou e realiza diversos empreendimentos assentados na eugenia – de forma mascarada, velada e dissimulada pelo mito da democracia racial.
É desta maneira que como extensionista universitária e divulgadora científica, para além de aliada na luta dos profissionais do sexo, neste espaço, letrado e informatizado, faço os primeiros gestos expositivos da reflexividade da primeira pessoa7 encarado como processo discursivo constitutivo dos sentidos dos meus dizeres.
Me valendo do potencial de circulação dessa postagem e de minha posição como autora, dialogo aqui sobretudo com militantes de outros tantos movimentos feministas que construíram na cidade de Campinas as manifestações conjuntas para o 8M. Afinal são elas que se inserem no mesmo campo de ação que eu, universitário e jovem. Sobre os embates surgidos, para concluir o post, reitero: nem sempre estabelecemos alianças apenas com grupos que admiramos, que efetivamente e integralmente nos representa.
Às vezes (muitas delas, inclusive) é necessário fazer concessões e assumir como potenciais aliados antigas figuras antagônicas. É mais ou menos isso que eu compreendo quando me deparo com análises discursivas como as de J. J. Courtine em Discurso comunista endereçado aos cristãos; título que por si já espantaria tantos e tantos ativistas que nunca se viram sujeitos de pressões econômicas e sociais que exigiam uma postura (aos olhos de quem busca sempre algo espetacular) “conciliatória”.
Finalizando a autocritica, ressalto a importância primeira de se estabelecer (inclusive por meio de parcerias internacionais) condições de se manter fundos autônomos de financiamento para as próximas ações de movimentos populares organizados. Afinal, para além do corte no repasse de verbas para entidades de resistência institucional, acredito que teremos a infelicidade de enfrentar em muito breve mais retrocessos galopantes que trabalham para criminalizar (novamente) organizações, protagonistas e apoiadoras, como as nossas.
1O GEMPAC é o Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará. É umas das entidades autorrepresentativas de profissionais e articula-se desde 1987. Como organização civil sem fins lucrativos, de âmbito estadual, assume representação a nível regional e nacional da categoria. É membro e fundador da Rede Brasileira de Prostitutas – RBP e da Global Network of Sex Work Projects-NSWP. É não abolicionista, coordena e unifica a luta das trabalhadoras sexuais na defesa de seus direitos e emancipação política, social, econômica e cultural no estado do Pará e tem por objetivo central fomentar a auto-organização das prostitutas; bem como potencializar o empoderamento das mulheres para a superação dos preconceitos e tabus que impedem o exercício cidadão.
2Sobre este tema, vale a leitura do artigo Do lugar social ao lugar discursivo: o imbricamento de diferentes posições-sujeito de Evandra Grigoletto.
3Tomando de empréstimo a expressão de Freud (1919) em Uma criança é espancada – uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais, faço referência ao estudo do autor de seis casos neuróticos. Em suma, este movimento de repúdio, ao qual associo a prática do escracho, para Sigmund realiza-se sempre mascarando em si uma grande experiência inconsciente de identificação. Portanto, racionalmente inacessível: afinal, “’este fantasma se caracteriza por só poder ser articulado pelo sujeito no decorrer da análise com as maiores dificuldades, e isso no maior sentimento de culpa. É essa carga de culpa que permite a Freud relacioná-lo com aquilo a que chama de uma cicatriz do Édipo. Ao mesmo tempo, o sujeito confessa aí, com vergonha e repugnância, que a evocação desse fantasma (fora de qualquer cena real, da qual ele se desvia, enojado, se for sua testemunha)’ e em que é regularmente investida de intenso prazer e culmina num ato de satisfação auto-erótica voluptuosa” compactuada por todos os que participam de tal coro” (VALLAS, 2016, p. 1).
4Que, nas palavras da autora , “mais do que isso, leva ao centro da produção teórica questões sobre a produção de conhecimento no campo das humanidades e o comprometimento político com seu objeto/sujeito, explicitem-se ou não a posição a partir da qual se enuncia, as redes de filiações teóricas e epistemológicas, o projeto empreendido e o percurso metodológico”.
5Neste artigo a autora nas páginas 190 e 191 propõe quatro questões para guiar uma empreitada deste tipo (de tomada de posição feminista e antirracista). Para compreender a dimensão de sua proposta teórica e política, vale a leitura do artigo todo e de seus outros escritos no blog de nosso grupo de pesquisa.
6Outro trabalho que se propõe a fazer a autorreflexão sobre suas próprias práticas feministas militantes universitárias está o trabalho de Maria Filomena Gregori, Cenas e Queixas (1993). Nele a autora reconhece as dinâmicas próprias do estabelecimento de um “nós” e um “elas” nos espaços de resistência que procuramos construir. Quanto a isto, vale também a leitura de um trabalho que sistematiza as práticas de resistência no putafeminismo europeu Nothing About Us Without Us! Ten Years of Sex Workers’ Rights Activism and Advocacy in Europe, disponível em https://www.researchgate.net/publication/289245278_Nothing_About_Us_Without_Us_Ten_Years_of_Sex_Workers%27_Rights_Activism_and_Advocacy_in_Europe. Acessado em 4 de março de 2018.
7Este movimento teórico proposto pela autora, resumidamente, significa assumir o compromisso ético e político de se falar sobre e de falar por, considerando as diferentes legitimidades sociais dos dizeres e inscrição dos sentidos em memórias discursivas.
Referências Bibliográficas
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CESTARI, Mariana. Por uma tomada de posição feminista e antirracista na Análise de discurso. In: FERRARI, Ana Josefina; ZOPPI-FONTANA, Mónica (orgs). Mulheres em discurso: identificação de gênero e práticas de resistência : volume 2. Campinas, SP: Pontes, 2017.
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GREGORI, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Paz e Terra: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, [1993].
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GRIGOLETTO, Evandra. Do lugar social ao lugar discursivo: o imbricamento de diferentes posições-sujeito. In: INDURSKY, Freda (org.). Análise do discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007.
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VALAS, Patrick, Freud e a Perversão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994
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