Escrito com Maurício Oliveira
Desde o final do século XX se inscreveram na memória social outros sentidos possíveis para prostituição. Ressignificações trabalhistas, feministas e de luta coletiva dos trabalhadores organizados abalaram antigas certezas vitimistas e resgatistas por meio da enunciação das próprias pessoas que se prostituem, realizadas no singular ou no plural.
Com uma longa trajetória de alianças que inclusive tutelavam suas ações políticas de mobilização coletiva a autonomia foi uma conquista trabalhosa e cativa. Passaram com bastante custo, embate e jeitinho a protagonizar sua própria história; a não mais figurar em uma narrativa construída e contada por outros grupos de pessoas, sem suas intervenções diretas e fundamentais.
É um pouco isso que o lema “nada sobre nós sem nós” traz consigo. Referenciando os acúmulos do texto “Da integração à inclusão”, texto alusivo à luta coletiva de deficientes por direitos, publicado em site em Novembro de 2011, retomo:
NADA quer dizer “Nenhum resultado”: lei, política pública, programa, serviço, projeto, campanha, financiamento, edificação, aparelho, equipamento, utensílio, sistema, estratégia, benefício etc. […]
SOBRE NÓS,ou seja, “a respeito das pessoas com deficiência”. Estas pessoas são de qualquer etnia, raça, gênero, idade, nacionalidade, naturalidade etc., e a deficiência pode ser física, intelectual, visual, auditiva, psicossocial ou múltipla. Segue-se uma vírgula (com função de elipse, uma figura de linguagem que substitui uma locução verbal) que, neste caso, substitui a expressão “haverá de ser gerado”.
SEM NÓS, ou seja, “sem a plena participação das próprias pessoas com deficiência”. Esta participação, individual ou coletiva, mediante qualquer meio de comunicação, deverá ocorrer em todas as etapas do processo de geração dos resultados acima referidos. As principais etapas são: a elaboração, o refinamento, o acabamento, a implementação, o monitoramento, a avaliação e o contínuo aperfeiçoamento (SASSAKI, 2011, grifos meus).
Nesse recorte interseccionamos com outro movimento (o de deficientes intelectuais, físicos e sensoriais) que também luta contra a discriminação. Essa empreitada, como podemos notar com o trecho acima, não é específico da luta dos trabalhadores sexuais. Mas é nesse ensejo do movimento afirmativo de protagonismo que temos resumidamente uma síntese: nenhum resultado a respeito da luta das pessoas que são o foco do movimento organizado, sobre as quais efetivamente incidirão as políticas traçadas, haverá de ser gerado sem a plena participação dessas próprias pessoas. Não só gerado, acrescentamos, mas – parafraseando o último recorte – sem PARTICIPAÇÃO PLENA, que é elaborar, refinar, acabar, implementar, monitorar, avaliar e continuamente aperfeiçoar.
Nesse viés não me deixo levar pelo neoliberalismo parco que afirmaria, contra-argumentando então que qualquer pessoa que possa a vir assumir publicamente a condição de trabalhador sexual (seja qual for suas propostas e possíveis atuações governamentais) que não se comprometam publicamente com as demandas centrais do movimento internacional de trabalhadores dessa categoria. Ou seja, que não se opõem à criminalização e não se posicionam em prol da revogação de todas as leis e regulamentações punitivas relativas e relacionadas ao trabalho a fim de garantir que os governos defendam os direitos humanos dos profissionais do sexo.
Afinal, com o acúmulo gerado nesses anos de construção e do qual aos poucos me filio, partimos do pressuposto de que enquanto o trabalho sexual for criminalizado – direta ou indiretamente através de leis e práticas de coerção seja dos profissionais do sexo, dos clientes ou ainda de terceiros haverá sempre um risco maior de violência (incluindo a policial), de detenções, de chantagens, de deportações e outras violações de direitos que precisam ser combatidas.
Isto tem um peso significativo enorme quando retomamos toda a criminalização e marginalização empreendida por diversos setores da sociedade contra os sujeitos e suas práticas e, por extensão, ao trabalho sexual como um todo.
Por isso, na véspera da eleição de 2018, destacaremos nessa blogagem coletiva da edição especial do Blogs de Ciência da Unicamp de Ciência e Política as candidaturas políticas de prostitutas no Brasil. Destacando as atuais e retomando algumas das anteriores, convidamos a todos conhecer um pouco mais de perto as propostas de cada representante.
- Cida Vieira , em 2004, 14 anos atrás, já disputava o cargo de vereadora de Belo Horizonte. Com uma trajetória de campanha mais longa que de suas companheiras, concorreu mais quatro vezes também para deputada estadual e deputada federal, todas por Minas Gerais: 2006, 2008, 2014 e 2018. Se filiou inicialmente ao Partido Trabalhista Nacional e hoje faz parte do Partido Comunista do Brasil. Esse ano novamente se empenha em gritar por você!
- Célia Gomes, por sua vez, marinheira de primeira viagem, concorre neste ano a deputada estadual pelo Partido de Trabalhista Cristão e representa o estado do Piauí.
3. Se lançando neste mar bravo, nem sempre piedoso, Ana Santos pelo Partido de Mobilização Nacional concorre também a deputada estadual mas por Amazonas.
Essas integrantes e protagonistas do movimento, no entanto não foram as primeiras a se lançarem na carreira política se juntando a outras companheiras que também ousaram traçar esse caminho espinhoso que nem sempre nos admite sequer na arquibancada.
E foi assim que, como sempre vanguarda, uma das personalidades mais consolidadas na defesa do direito dos profissionais do sexo:
- há 16 anos Lourdes Barreto já se lançava como candidata a deputada estadual concorrendo em 2002 pelo Partido dos Trabalhadores.
- Posteriormente Gabriela Leite, também fundadora do movimento, concorreu a deputada federal pelo Partido Verde nas eleições de 2010, há oito anos.
2016, ineditamente, foi o ano de representações travestis e transgêneras:
- Indianara Siqueira em 2016 concorreu ao cargo de vereadora do Rio de Janeiro em 2016 pelo Partido Socialismo e Liberdade e
- Amara Moira que concorre para o mesmo cargo, mas na cidade de Campinas.
Para finalizar, destaco ainda o inestimável valor dessas parcerias na estrutura do movimento sólido que temos hoje. Jovem, robusto e sólido. E, ao mesmo tempo, realçar que por mais aderência que os apoiadores aliados possam ter ao discurso dos grupos de trabalhadores sexuais organizados, ainda não estarão na mesma posição que uma prostituta, um michê, uma travesti profissional do sexo. Até porque, mesmo que a nível verbal haja semelhanças, pontos de convergência e sintonia, o lugar não só social como também de fala é outro. A posição social é outra. Inclusive, a relação de forças entre essas duas posições são de sustentação, apoio, e não de equivalência.
Neste outro momento, bastante diferente dos fundadores, do final dos anos 1980 e das décadas que se seguiram (1990, 2000 e 2010) corro o risco de dizer (parafraseando a noção de porta-voz de Pêcheux (1990)) que conseguimos a duras penas constituir um nós discursivo que passe a sustentar enunciações e demandas políticas em nome próprio, sem a necessidade de um técnico apoiador no papel de mediador discursivo.
Digo isto porque costurando a chamada “função social” da ciência atualmente, que sofre tantos ataques via cortes orçamentários e desqualificação enquanto produtor de conhecimentos, viemos tecer conexões levando ao nosso público leitor mais informações sobre nosso papel na sociedade encadeando com reflexões teóricas que fundamentam essa parceria de extensão universitária com as três redes de articulação do movimento nacional de profissionais do sexo.
E é por isso que reforço que essa posição de porta-voz, conceituada por Pêcheux em 1990, noção de caráter contraditório e paradoxal, é extremamente privilegiada para ser ocupada apenas por colegas que simpatizam com nossas pautas. Essa posição, a de representação política no governo, é tão valiosa que, nas palavras deste autor com o qual eu tanto me identifico, permite não só a narração do presente que vivemos como também delineia os contornos do futuro que estamos hoje construindo.
Quando aqui falo desse movimento duplo que representantes legítimos podem ocupar falo da possibilidade de narrar acontecimentos quanto de propor ações. Em outras palavras, retomo as duas posições visíveis na qual se desdobra o porta-voz: uma de ator, “aquele que se expõe ao olhar do poder que ele afronta”; outra a de agente que resiste e fala “em nome daqueles que ele representa, sob o seu olhar” (p.17).
Esse porta-voz se trata de uma figura discursiva que, em termos de como funciona na prática, em suas palavras, circula entre as posições de profeta, de dirigente e de homem de Estado. Se constitui como o agente de contradições e deslocamentos, porque atua entre o mundo existente e a possibilidade de um outro mundo. É o corpo (tão desejado) talvez impulsionado pela semente da resistência que perturba o campo do político, que pode vir a promover mudanças, rupturas – ou, em tempos sombrios e temerosos, estagnações, retrocessos.
Além disso, em acúmulos consolidados no grupo de pesquisa que faço parte (o Mulheres em Discurso) consideramos que iniciativas como essas na qual sujeitos que não pertencem ao grupo do qual falam em nome de, recusando-se a ceder o protagonismo a quem efetivamente o detém, funcionam mais de modo a interceder por do que lutar com. Em outras palavras, operam o silenciamento condicional quando há a elaboração e enunciação de demandas coletivas através de mecanismos nos quais se é falado por (INDURSKY, 2000) a partir do discurso sobre (ORLANDI, 1990). Ou seja, algo que, por mais que estejam “na melhor das intenções” pode vir a ser extremamente nocivo para os acúmulos gerados pelo movimento nacional de prostitutas.
Como pudemos acompanhar, segurando o boi pelo chifre e batendo o pé no chão, as protagonistas desde a virada do século mais do que nunca na história deste país tiveram condições de não depender de mediadores facilitadores. Mas de representantes, de sujeitos legitimados pelo movimento que falam por e em nome de uma coletividade da qual pertencem.
Rumo à Câmara dos Vereadores e ao Congresso Nacional:
TODO PODER ÀS PUTAS
***
Agradeço ainda a todas as lideranças das três redes do movimento brasileiro de prostitutas na revisão e escrita conjunta desse texto: Rede Brasileira de Prostitutas, Central Única de Trabalhadoras Sexuais e Articulação Nacional de Profissionais do Sexo. Meus agradecimentos mais carinhosos se estendem a Vânia Rezende (Pernambuco), Cida Vieira (Minas Gerais), Célia Gomes (Piauí), Indianara Siqueira (Rio de Janeiro), Ana Santos (Amazonas) e Diana Soares (Rio Grande do Norte).
Referências Bibliográficas
- BEIJO DA RUA. Rio de Janeiro: Coletivo Davida. Ano 28, número 2, Dezembro de 2017.
- DIVULGACANDCONTAS – Detalhes de Candidaturas brasileiras atuais e anteriores. Disponível em <http://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#>. Acessado em 17 de Setembro de 2018.
- DZIUBAN, Agata; STEVENSON Luca et all. Nothing About Us Without Us!: Ten Years of Sex Workers’ Rights Activism and Advocacy in Europe. Amsterdam: International Comittee on the Rights of Sex Workers in Europe. Dezembro de 2015.
- INDURSKY, Freda. A função enunciativa do porta-voz do discurso sobre o MST. Rio de Janeiro, Alea, v.2, p.17-26, Do Programa de Pós Graduação em Letras Neolatinas, UFRJ, set. 2000.
- ORLANDI, Eni. Terra à vista. Discurso do confronto: Velho e Novo Mundo. Campinas: Ed, Unicamp, 2a ed., (1990), 2008.
- ORLANDI, Eni. Silêncio e Implícito (produzindo a monofonia). In: GUIMARÃES, E (org). História e sentido na linguagem, incluindo o texto de Michel Bréal. Campinas, 2ª edição aumentada, Editora RG, 2008. p.39-46
- PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões e deslocamentos. Tradução de José Horta Nunes. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v.19, p.7-24, 1990.
- SASSAKI, Romeu Kazumi. Nada sobre nós, sem nós: da integração à inclusão. Disponível em <https://www.researchgate.net/publication/289245278/download>, publicado em 22 de Junho de 2018 e acessado em 17 de Setembro de 2018.
- SKACKAUSKAS, Andreia. Prostituição, gênero e direitos: noções e tensões nas relações entre prostitutas e Pastoral da Mulher Marginalizada. 2014. 313 p.
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