Divulgação do conhecimento, discurso, mídia e autoria

Quais as relações entre divulgação do conhecimento, linguagem, discurso e autoria? Como a grande mídia produz sentidos de ciência e sobre o papel do cientista quando faz divulgação científica? Qual o papel do intelectual diante da divulgação do conhecimento hoje? As áreas da Semântica e da Análise de Discurso têm muito a contribuir com essas questões, conforme demonstraram o professor Eduardo Guimarães e a professora Mónica Zoppi Fontana. Os dois professores da Unicamp abordaram as temáticas mencionadas em um evento  realizado no CEFET-MG, na comemoração dos 10 anos do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da instituição.

  • Grande mídia e divulgação da ciência

Na mesa em questão, Eduardo Guimarães argumentou que a grande mídia, ao divulgar a ciência, seja em suplementos dedicados ao tema nos jornais, em matérias televisivas, em notícias veiculadas em portais eletrônicos, produz uma concepção de ciência para o senso comum. Pode-se dizer, portanto, que a sociedade acaba por se relacionar com a ciência a partir dos efeitos de sua divulgação. Considera-se que grande parte da população não tem acesso direto aos resultados da produção científica, e sim pelo intermédio das práticas de divulgação científica pela mídia, que de um modo específico traduzem o discurso da produção do conhecimento. Além disso, deve-se ressaltar que é com base nos sentidos de ciência determinados pela mídia que as pessoas tomam posições a respeito da ciência.

A apresentação do professor tomou como base notícias produzidas pela grande mídia –  especificamente do site da Folha de São Paulo. Em suas análises, mostrou que muitas vezes são divulgadas as ciências naturais, as biológicas, as ciências da saúde, as ciências exatas. Como exemplo, mencionou notícias sobre desenvolvimento de vacinas e de pesquisas sobre o meio ambiente. Ao pensar o modo de significar a ciência pelos grandes meios de comunicação, chamou a atenção para os impactos das mídias eletrônicas, que produzem uma outra circulação do discurso da divulgação do conhecimento, quando comparada ao funcionamento discursivo dos órgãos impressos, como jornais e revistas.

  •  A ciência significada por sua utilidade nas mídias eletrônicas

Nas mídias eletrônicas, o sentido da ciência seria diluído e significado por sua utilidade. Mantém-se, entretanto, o sentido da ciência em oposição às ciências humanas, já que essa utilidade é apresentada como ambiente, saúde, cura, astronomia, tecnologias, etc. Nesse processo, as ciências humanas são significadas como se não fizessem parte da ciência e aparecem como inúteis do ponto de vista social. Isso terá impacto inclusive em como as pessoas entendem a necessidade ou não do financiamento da ciência e das ciências humanas, em particular.

Um pouco mais da produção teórica de Guimarães sobre o tema pode ser lido no artigo Linguagem e conhecimento: produção e circulação da ciência. Nesse artigo, o autor analisa aspectos do funcionamento enunciativo das políticas científicas e das relações entre Estado, mídia e sociedade.

  • Esvaziamento das práticas de autoria

Por sua vez, Mónica Zoppi Fontana parte da análise sobre as condições de produção e circulação do conhecimento para discutir a autoria na divulgação científica. Em relação a essas condições de produção, a professora menciona as linhas teóricas dominantes; o desenvolvimento técnico e tecnológico e a organização das disciplinas e instituições nas relações estabelecidas com o poder econômico e político. Sua reflexão considera o momento que vivemos de descaso com o financiamento do ensino superior e com a pesquisa científica. Na esteira do crescimento de um mercado de serviços educacionais e do produtivismo acadêmico, há o esvaziamento das práticas de autoria na produção do conhecimento.

Para pensar a autoria, primeiramente deve-se considerar a produção científica e a divulgação científica como práticas que constituem modos de se colocar como autor. Mónica parte de uma reflexão que toma como base a função-autor e o nome de autor propostos inicialmente por Michel Foucault e retrabalhados no campo da Análise de Discurso pela professora Eni Orlandi e vários outros autores.

O nome de autor é um nome próprio e seu funcionamento leva a individualizar um sujeito como autor. Ao individualiza-lo, identifica-o e o coloca como princípio de agrupamento e de classificação de uma obra, tanto é que as referências bibliográficas são organizadas pelo nome de autor. Já a função de autor é o modo como se exerce a prática de autoria e muda conforme as condições de produção. Não é o nome, mas como se produz o conhecimento em diferentes áreas e disciplinas. Então se poderia dizer que a função autor é a prática efetiva da autoria e não a classificação que ela sofre em sua circulação social, que teria mais relação com o nome de autor.

  • Autor e divulgador: a figura do intelectual midiatizado

O que há algumas décadas estava dividido em funções específicas, pelo jornalismo científico e pela mediação de um divulgador em relação àquele que produz o conhecimento, transformou-se. Hoje há uma injunção nas instituições e nas agências de fomento que financiam a produção de conhecimento para que aquele que produz seja ele próprio divulgador. Então temos uma função autor que se divide e se desdobra, em produzir conhecimento e em divulgar o conhecimento. Esse desdobramento está ancorado em um único nome de autor, que é individual e que lhe dá legitimidade e prestígio acadêmico.

No capitalismo tardio, a mercantilização do processo de produção do conhecimento e as novas tecnologias de comunicação impactam as práticas de autoria científica. O interessante é pensar que pelo funcionamento próprio das mídias digitais esse nome de autor faz parte de uma encenação que não só individualiza, mas que o personaliza e confere um corpo, uma imagem singular. Trata-se de uma prática espetacularizada a partir da encenação do eu, conceituada por Mónica como autoria fetiche, caracterizada por um intelectual midializado, o cientista, estrela das redes sociais e da TV a cabo. O conhecimento produzido é fragmentado em pílulas que podem ser consumidas por um público fidelizado.

  • Práticas de resistência na produção do conhecimento e na divulgação científica

Apesar desse cenário, a professora aponta práticas de resistência a esse processo dominante, tanto na produção do conhecimento quanto na divulgação científica, que procuram validar a importância da produção científica das universidades e instituições de pesquisa públicas. Essas práticas têm o potencial de ressignificar politicamente a figura do intelectual, fazendo emergir a autoria-experimentação, marcada por novos modos de articulação da reflexão acadêmica, da luta política e das experiências estéticas em ações coletivas. Como exemplos, Mónica cita os filmes Olympia e o ebook Hoje eu acordei para a luta.

Para conhecer um pouco mais do trabalho da professora sobre autoria e produção de conhecimento, bem como entender melhor as formulações da autora sobre autoria-fetiche e autoria-experimenetação, é esclarecedor seu artigo sobre a temática.

  • Para saber mais do evento

Por fim, vale apontar que o evento no CEFET-MG foi filmado e está disponível no canal de divulgação científica da instituição. Os professores Eduardo e Mónica também concederam entrevistas à rádio UFMG Educativa, a convite da professora Valéria Raimundo (UFMG) e da jornalista Vivian Teixeira, da Fundação Ezequiel Dias. Essas entrevistas subsidiaram a Coluna de Ciência e Tecnologia do Pensar a Educação,  Pensar o Brasil, que teve ainda a participação da professora Carla Moreira, organizadora do evento e ministrante de disciplina sobre a temática da Divulgação do Conhecimento no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens no CEFET-MG. Eu também participei do programa de rádio, transmitido ao vivo; um desafio que trouxe muitos aprendizados e nos mostrou pontos a aprimorar nessa busca de diálogo com diferentes setores sociais. Esse foi mais um exemplo de professoras pesquisadoras provocadas a assumir o lugar de divulgadoras do conhecimento, conforme marca Mónica sobre nossos tempos.

Vivian, Valéria, Carla e Mariana no estúdio da Rádio UFMG Educativa.

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