“Job do dia”: o funcionamento do inglês no português brasileiro

Por Carolina Klingenberg, Gabriel Catani, Júlia Rossato, Leticia Ferreira Camargo, Lucas Bernardes e Matthew Sant’anna

Alguma vez você já ficou na bad porque depois do workshop do seu job não teve Happy Hour? Ou quem sabe você já foi no shopping na black friday, mas nada estava dentro do seu budget e você acabou indo tomar uns shots com o seu crush no seu pub favorito, aquele datezinho top… E por acaso alguma vez você já pensou em como o uso do inglês é frequente no nosso dia a dia e em como algumas dessas words nem sempre soam tão bem?

Muita gente pensa que as línguas não mudam. Mas a questão é que as línguas estão em constante mudança e basicamente sempre em contato com outras línguas, tornando a ideia de uma língua imutável uma mera ilusão. Apesar de alguns equívocos, as pessoas tendem a valorizar sua própria língua e é daí que surge essa vontade de protegê-la e mantê-la intacta. Mas até onde vale resistir contra essas mudanças linguísticas?

Palavras em inglês são constantemente assimiladas na língua portuguesa, mas nem sempre somos capazes de percebê-las com facilidade. É comum ouvir alguém dizer que vai ao shopping ou que vai tomar um milkshake, mas não é todo dia que ouvimos alguém dizer que vai ao supermarket comprar umas onions. Esse tipo de estranhamento é o mesmo que ocorre quando lemos uma placa escrita “cake de fubá”. Afinal, qual seria a diferença entre um cake e um bolo? E entre um bolo e um brownie? Um brownie não é apenas um bolo, mas um tipo específico de bolo, que acabou carregando consigo o seu nome na língua original. Cake, porém, é uma palavra que possui uma quase equivalente muito próxima em português, de forma que seu uso acaba soando mais prestigioso e moderno do que o bom e velho bolo.

 

Há sinonímia entre línguas?

É importante pensar até que ponto a relação entre estas palavras “estrangeiras” e as nossas supostas equivalentes é de sinonímia. Bolo e cake realmente significam a mesma coisa? Apesar de parecer que sim, a atitude linguística tomada ao se utilizar uma das duas é completamente diferente. Na situação do uso dessas palavras, na produção do enunciado, podemos definir a  cena enunciativa, na qual se encontram o locutor, que é uma representação abstrata daquele que é responsável pelo dizer e se distingue do sujeito falante no mundo, e o alocutário, aquele para o qual o locutor se dirige. É nessa cena enunciativa que podemos encontrar essa atitude linguística: pode-se pensar em uma pessoa querendo vender mais bolos tentando ser diferente, delimitando assim sua própria clientela àqueles que compreendem o termo em inglês. Ou seja, há um locutor recortando e definindo seus alocutários através do uso destes termos em inglês.

Nessa oposição bolo vs. cake, são definidas as pessoas que acreditam que cake é uma forma mais elegante para dizer bolo. Eduardo Guimarães, em sua obra Semântica do Acontecimento (2002), chama a atenção para essa constituição do locutor e do alocutário, não somente figuras participantes de uma cena enunciativa, mas  também projeções de lugares sociais. A essas projeções de lugares sociais na cena enunciativa, o autor as denomina respectivamente locutor-x e alocutário-x, sendo x a caracterização desse lugar social.

Mas por que o inglês, e não o espanhol, o russo ou o coreano? A relação entre as línguas não é simplesmente de coexistência pacífica, os conflitos políticos que se dão na sociedade se refletem nas línguas e na forma como passam a significar o mundo. Inglês como a língua da ciência e das mídias, alemão como língua da filosofia, francês como língua do romance, são chavões que não necessariamente refletem a realidade linguística. Mas que refletem, porém, as políticas linguísticas e suas consequências no imaginário popular, funcionando como um sintoma que torna possível diagnosticar a assimetria de poder entre as nações e os embates entre culturas. Antes de nos aprofundarmos nessa questão, vamos a alguns exemplos.

O uso de palavras do inglês no português se dá de diferentes maneiras, como observamos nas imagens a seguir:

Bolo vs. Cake

 

Embora ambos os exemplos façam uso da palavra cake, o funcionamento de cada um é bem diferente. Em “Bolo de cake”, a palavra inglesa é usada como o sabor do bolo, por isso causa um estranhamento. Como será o sabor de um bolo de bolo? Por outro lado, o estranhamento é produzido também pela troca da palavra “bolo” por cake, considerando que em português brasileiro “bolo” é amplamente utilizado. Esses usos promovem um prestígio em relação a um produto corriqueiro do dia a dia. Ao se tratar de comidas, esse fenômeno recentemente passou a ser conhecido como gourmetização.

Sem vs. Free

Neste exemplo vemos um funcionamento diferente do anterior. Das várias palavras em inglês presentes no cardápio, é free que mais se destaca. Podemos ver que em “free glúten” a palavra inglesa tem a função de adjetivo em relação a “glúten”. Esse funcionamento é muito comum em inglês: geralmente os adjetivos vêm antes dos substantivos. Entretanto, a forma utilizada em inglês é gluten free com as posições invertidas do exemplo. Isso é devido ao fato de que, em inglês, gluten é adjetivo de free, e não vice-versa. Considerando isso, o exemplo acaba usando uma ordem de palavras do português (“sem glúten”) com uma palavra do inglês, causando assim, novamente, um estranhamento.

 

Bad vs. Borocoxô vs. Triste

Esse último exemplo retrata a crítica de um falante de português brasileiro sobre a palavra bad. A sugestão por usar “borocoxô” é uma tentativa de resgatar uma palavra típica do português brasileiro que supostamente seria um sinônimo de bad. Mas é mesmo? É interessante notar que a sugestão não foi “triste” ou mesmo“cabisbaixo”, palavras que podem ser consideradas mais comuns do que “borocoxô”. Porém, “borocoxô” produz um efeito lúdico que as outras  palavras não produzem. Isso nos leva a pensar que bad, “borocoxô” e “triste” não são sinônimos, não pelo que significam, mas pelos desdobramentos na cena enunciativa. Pela presença dessas palavras no enunciado, a constituição do locutor-x e do alocutário-x é diferente e, por isso, seus efeitos são igualmente distintos.

 

Enunciação e diferença

É por essas diferentes cenas enunciativas, que estabelecem relações distintas  de poder e identificação linguística entre locutor e alocutário, que podemos ter o uso na língua portuguesa de palavras tipicamente encaradas como pertencentes ao inglês. Essas incorporações podem causar um certo estranhamento ou podem aparecer de forma totalmente naturalizada em várias situações do nosso dia adia. É também devido a essas relações que não podemos simplesmente “traduzir”  literalmente palavras de uma língua para outra.  A sinonímia, que é uma relação de sentido, extrapola a questão das palavras se referirem a uma mesma coisa no mundo. No caso da relação entre línguas na enunciação, ela envolve também a atitude linguística e as projeções de imagens para o locutor-x e alocutário-x. Assim, a cena enunciativa é inteiramente atravessada por relações de poder e prestígio desiguais, produzindo efeitos de sentido diferentes para as palavras em uma língua ou outra. A enunciação constitui os sujeitos em falantes na relação com um espaço de coexistência desigual entre línguas, que Eduardo Guimarães (2002) denomina  espaços de enunciação . É justamente essa relação desigual entre as línguas em um espaço territorial simbolicamente significado que produz imagens estereotipadas diferentes para os falantes, prestigiando algumas línguas em detrimento de outras.

Para saber mais:

Página que serviu de inspiração e origem dos exemplos: https://www.facebook.com/TodoDiaUmTermo/

Para conhecer as línguas que circulam no Brasil, confira a Enciclopédia das Línguas do Brasil: http://www.labeurb.unicamp.br/elb2/ 

Para entender melhor o funcionamento das línguas em um espaço de enunciação : http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252005000200014&lng=en&nrm=iso&tlng=pt 

Referências bibliográficas

Guimarães, Eduardo. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.

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