História do Alfabeto Cirílico

Teclado Búlgaro

Você já parou para pensar na definição de um alfabeto? Ok, é fácil tentar recuperar que Alfa seria o “A” assim como o Beto, digo, o Beta, seria do “B” da escrita grega. Algo como um outro nome pelo qual chamamos o conjunto de letras que compõem nossa escrita: o ABCDário. Então, que tal chamar o alfabeto de αβto?

Ok, não vai dar certo, muito complicado de escrever assim em meu teclado ABNT.


Texto de:
Marcus Vinicius Alves Martinez Moreira
Yanapa Kuikuro
Fernando Gabriel Tonon


O conceito de alfabeto

O termo alfabeto pode ser definido como um sistema no qual fonemas que compõem nossa fala são representados por símbolos de valor equivalente, mesmo que a relação não seja de um som para cada letras ou de uma letra para cada som, as aulas de Português na escola e as confusões entre Ch[ave], X[uxa] e, de certa forma também o Sh[opping], mandam lembranças.

Acontece que países diferentes podem representar seus sons de formas diferentes (ex. o nosso som U, no francês é escrito com OU, enquanto a letra U representa o famoso “U com biquinho”). Países diferentes também podem usar letras diferentes para compor seu alfabeto (ex. o Ł no polonês). Países diferentes podem, inclusive, usar alfabetos com símbolos diferentes como o árabe, ou usar logogramas como o chinês e os kanjis do japonês.

Cada sistema de escrita no mundo tem características próprias, e todos carregam consigo um longo histórico de mudanças e desdobramentos. A criação e o uso desse tipo de sistema, fatidicamente, teve forte impacto nos aspectos sociais, econômicos e sociais de diversas sociedades ao longo da história humana, atuando de forma contundente no seu desenvolvimento.

Focando a discussão na representação dos sons, podemos ressaltar a importância central de alguns alfabetos, como o semítico, o grego e o latino, pois deles se originaram diversos outros. Em particular, esses dois últimos garantiram algumas das bases para a criação do alfabeto que será comentado neste post: o alfabeto cirílico, presente em diversas línguas ao redor mundo, principalmente nas línguas do grupo eslavo. 

O alfabeto cirílico é amplamente difundido e reconhecido ao redor do mundo. Atualmente, ele é usado como alfabeto oficial em mais de 50 línguas, entre as eslavas e também as não eslavas. No ano de 2007, com a entrada da Bulgária na União Europeia, o alfabeto cirílico se tornou o terceiro alfabeto oficial dessa união entre países europeus.

Eis abaixo uma pequena lista das línguas que se utilizam do alfabeto cirílico:

  • Russo 
  • Ucraniano
  • Bielorrusso
  • Sérvio
  • Macedônio
  • Búlgaro
  • Cazaque
  • Usbeque
  • Mongol
  • Tadjique
  • Quirguiz
  • E a lista se estende…

É importante ressaltar que, como dito no início deste post, países diferentes usam os alfabetos de maneiras diferentes. O cirílico não é exceção também é usado com suas particularidades entre as línguas acima. Cada língua tem diferentes padronizações de caracteres em seu sistema de escrita.

A origem do alfabeto cirílico.

São Cirilo e São Metódio

Fonte: ZOGRAF, Z., 1848.

O alfabeto cirílico é um dos mais antigos da história, junto dos alfabetos latino, árabe* e dos logogramas chineses. Sua origem se deu no século 10 d.C. na Bulgária. Contudo, não foi o primeiro alfabeto derivado da região. Anteriormente a este, têm-se o alfabeto gótico de Úlfilas e o glagolítico, de São Cirilo (guarde este nome!). 

Página do Códice Argênteo (escrito com o alfabeto gótico)

Fonte: WIKIMEDIA COMMONS, 2004.

Inicialmente, o povo eslavo tentou utilizar letras gregas e latinas para sua escrita. Entre os séculos 7 e 9 d.C., na península Balcânica, os eslavos viviam sob o domínio dos protobúlgaros, até a ocorrência de uma posterior assimilação entre os povos.

Os búlgaros, povo advindo da Ásia, eram falantes de uma língua da família turcomana e escreviam seus documentos com letras gregas e runas. No final do século 9 d.C., os eslavos da Morávia, Panônia e Bulgária passaram a escrever com o recém criado alfabeto glagolítico, comumente atribuído a São Cirilo e a seu irmão, São Metódio. No decorrer do tempo, porém, o alfabeto glagolítico passou a ser lentamente substituído por outros alfabetos, tendo os croatas como o povo mais perseverante, deixando de usá-lo apenas no final do século XVI.

Alfabeto glagolítico

Fonte: BUNCIC., 2007.

O alfabeto cirílico, se originou no Primeiro Reino Búlgaro no início do século 10 d.C., e passou a substituir o até então utilizado glagolítico búlgaro. Contudo, a data de criação do alfabeto, assim como seu criador, é incerta. Muitos estudiosos atribuem sua concepção ao próprio São Cirilo. A criação desse alfabeto foi aceita pelo governador Boris I da Bulgária, mas o processo de transição do glagolítico para o cirílico se deu apenas no reinado de seu filho, Simeão I da Bulgária. Até a incorporação total do alfabeto cirílico, este ocorreu em concomitância com o alfabeto glagolítico. Assim, desde o século 11 d.C., o alfabeto cirílico é oficialmente utilizado pela Bulgária, assim como Rússia e Ucrânia.

Munich abecedarium. O primeiro bloco foi escrito em cirílico, enquanto o segundo, em glagolítico.

Fonte: ILIEV, I.G. 2013.

O alfabeto cirílico e o glagolítico apresentam algumas diferenças entre si. As letras cirílicas se assemelham às letras gregas, fato que não ocorre no alfabeto glagolítico. A partir disso, verifica-se que o cirílico não é um alfabeto original, mas sim um sistema uncial expandido do grego (diferentemente do glagolítico, que é um alfabeto original). Para mais, o alfabeto cirílico se utilizou de empréstimos de outros alfabetos, como o latino, o grego, o samaritano e o próprio glagolítico, para completar as representações sonoras faltantes em seu sistema.

Texto do sudeste búlgaro que mistura letras glagolíticas e cirílicas

Fonte: ILIEV, I.G. 2013.

Diagrama de Venn mostrando as letras latinas, gregas e cirílicas

Fonte: PIESK, T., 2013.

O antigo alfabeto cirílico foi então transferido para a Rússia e para a Sérvia. O alfabeto glagolítico também foi transferido para a Rússia, sendo usado enquanto sistema criptográfico. O alfabeto cirílico também alcançou as terras da atual Romênia, que estavam até então sob domínio búlgaro. Atualmente, a Romênia usa o alfabeto latino.

Já no século XVI, em 1708, o czar russo Pedro, o Grande, conduziu uma reforma ortográfica, introduzindo, assim, novos tipos de letras cirílicas. O novo conjunto de letras foi denominado de escrita civil e serviu de base para todos os alfabetos cirílicos modernos. A reforma de Pedro foi impulsionada pela difusão do latim entre os mais escolarizados na Rússia, em um período que compreende o ano de 1680 a 1690. Outro fator atuante para que a reforma fosse realizada foi o compromisso firmado entre os defensores da velha tradição cirílica e os defensores da cultura da Europa Ocidental. Muitas das letras cirílicas antigas foram substituídas por outras semelhantes, de modo que os novos símbolos se configuraram enquanto versões simplificadas das antigas letras, tornando-as mais fáceis de serem usadas em impressões de documentos administrativos e materiais educativos. Os sinais de acentuação e de abreviações também sofreram diversas modificações. 

“Geometria”, o primeiro livro publicado de acordo com a escrita civil.

Fonte: ILIEV, I.G. 2013.  

Em 1918, o sistema de escrita presente na Rússia passou por sua última reforma ortográfica até então. A reforma simplificou ainda mais as letras cirílicas, o que tornou mais otimizado o processo de publicação de livros. À época, o alfabeto cirílico contava com 35 letras. Atualmente, este conta com 33 letras, sendo 20 consoantes, 10 vogais, 1 semivogal e dois sinais modificadores (estes, quando utilizados, alteram a pronúncia das consoantes precedentes).

Figura 8 ‒ Alfabeto cirílico russo no início do século XIX

Fonte: THULEAN, U., 2020.

Figura 9 ‒ Alfabeto cirílico russo atual em itálico e não-itálico

Fonte: WUTZOFANT, 2010.

Não cabe ao atual post discutir todas as especificidades do alfabeto cirílico russo, visto que esse seria um assunto demasiado extenso e tortuoso, fugindo, assim, da atual proposta, que é trazer uma introdução breve e concisa ao assunto. Um aprofundamento no tema ficará para um futuro post.

* NOTA: Tecnicamente falando, a escrita árabe é um abjad, mas:
(i) a conceitualização dos diferentes tipos de sistemas de escrita não está nos objetivos deste post e
(ii), na prática, a referência é a mesma do ABCDário e do AlfaBeto: se trata de um ABJ(a)D, assim como outras línguas usam ABG(i)Das.

Provavelmente em breve teremos um post sobre o assunto. Quando sair, estará linkado aqui.

Referências

BRITANNICA, The Editors of Encyclopaedia. “Cyrillic alphabet”. Encyclopedia Britannica. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Cyrillic-alphabet. Acesso em: 14 dez 2021.

BUNCIC. Glagolitic alphabet, 2007. In: WIKIMEDIA COMMONS. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Glagolitic_alphabet.png. Acesso em: 10 fev. 2022.

COMISSION, E. Speech – Cyrillic, the third official alphabet of the EU, was created by a truly multilingual European. European Comission, [S. l.], p. 0-0, 24 maio 2007. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/SPEECH_07_330. Acesso em: 14 dez. 2021.

CUBBERLEY, P. Russian: A linguistic introduction. Cambridge University Press, 2002. Acesso em: 10 jan 2022.

ILIEV, I. G. Short history of the Cyrillic alphabet. International Journal of Russian Studies, v. 2, n. 2, p. 1-65, 2013. Disponível em: http://www.ijors.net/issue2_2_2013/pdf/__www.ijors.net_issue2_2_2013_article_6_iliev.pdf. Acesso em: 14 dez 2021.

MCELVANNEY, K. “Cursed orthography”: Revolution, Language and Identity. In: BLOG, European studies (org.). European studies blog. [S. l.], 12 nov. 2014. Disponível em: https://blogs.bl.uk/european/2014/11/cursed-orthography-revolution-language-and-identity-.html. Acesso em: 14 jan. 2022.

NABORA, S. Two Cyrillics: a critical history I. In: COLLECTIVE, Cargo. Cargo Collective. [S. l.], 2014. Disponível em: https://cargocollective.com/cyrillicslyblog/filter/Serebro-Nabora. Acesso em: 14 jan. 2022.

PIESK, T. Venn diagram showing Greek, Latin and Cyrillic letters, 2013. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Venn_diagram_showing_Greek,_Latin_and_Cyrillic_letters.svg. Acesso em 10 fev. 2022.

THULEAN, U. Russian font of XVIII and early XIX centuries, 2020. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:XVIII_century_Russian_font.png. Acesso em 14. jan. 2022.

UNIVERSITET, U. Codex argenteus. Uppsala University Library, [S. l.]. Disponível em: https://www.ub.uu.se/about-the-library/exhibitions/codex-argenteus/codex-argenteus-history/. Acesso em: 14 dez. 2021.

WIKIMEDIA COMMONS. Wulfila bibel. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Wulfila_bibel.jpg. Acesso em 10 fev. 2022.

WIKITIONARY. Russian alphabet. In: Wikitionary. Wikitionary: The Free Dictionary. [S. l.], 2021. Disponível em: https://en.wiktionary.org/wiki/Russian_alphabet. Acesso em: 14 dez. 2021.

WUTZOFANT. Diagram of how Cyrillic Letters look in italics, 2010. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cyrillic-italics-nonitalics.png. Acesso em 10 fev. 2022.

ZOGRAF, Z. Saints Cyril and Methodius holding the Cyrillic alphabet, 1848. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cyril-methodius-small.jpg. Acesso em 10 fev. 2022.

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