Como conseguimos entender línguas que não falamos?

Imagem da OpenClipart: https://openclipart.org/detail/322089/many-languages-of-the-world

Ou o famoso “Entender, eu entendo… Mas falar…”


Texto de:
Nathália Álex Soares Silva
John Alexandre Dias

Alunos do curso de Letras da Unicamp


Quando temos contato com outras línguas, é comum que algumas surpresas ocorram. Na nossa pressa para desvendar aquilo que parece ser um código nos textos, músicas e filmes ou no nosso receio pela aparente dificuldade de estabelecer uma comunicação efetiva com o interlocutor, aprender outra língua pode ser um convite ou um desafio.

Mas será que é assim para qualquer língua?

As redes sociais estão aí para demonstrar que a nossa capacidade de interação intercultural pode acontecer em diversos contextos e não é raro vermos momentos como o exemplo acima. Podemos nos comunicar com memes, vídeos e outros elementos visuais para transmitir uma mensagem específica, porém, quando a utilização da língua materna é o suficiente para a comunicação inteligível, a sensação de surpresa é grande por outro motivo:

Como podemos entender uma língua que é semelhante a nossa, mas que não falamos?

Para que possamos entender como isso acontece, precisamos entender como as línguas se relacionam entre si e como nossa percepção linguística funciona.

Agrupando, comparando e organizando

Para traçarmos a história da origem das línguas, seus processos de mudanças e algumas de suas características modernas, nós as agrupamos.

  1. Chamamos de tronco linguístico o agrupamento majoritário – isto é, aquele que considera a origem de um grupo de línguas como fator organizacional primordial;
  2. O agrupamento organizado pelas semelhanças que as línguas compartilham entre si, por sua vez, é chamado de família linguística e;
  3. O estudo das relações entre as línguas pode ser estudado pela linguística histórica (e, de certa forma, também pela filologia).

Como um exemplo mais conhecido e de fácil compreensão, hoje nós sabemos que o português é uma língua neolatina, que quer dizer basicamente que tem origem no Latim. Outras línguas neolatinas são o italiano, o francês, o espanhol, o romeno. Por isso teremos maior facilidade de compreender ao menos boa parte das palavras dessas línguas por parecerem com as nossas, da mesma forma como costumamos ser parecidos com nossos irmãos e primos. Veja alguns exemplos no vídeo abaixo.

Organizando a história das línguas

Traçar o histórico dessas e de outras línguas, bem como das línguas de sinais e de línguas das quais não temos mais registros, é um dos trabalhos da Linguística Histórica. Mas por que a área tem esse nome?

É habitual, ao fazermos comparações entre as línguas, que os linguistas ilustrem as relações a partir de cladogramas, uma representação que nos remete à figura de uma árvore (aquelas usadas pelos biólogos para explicar a evolução). O exemplo abaixo ainda traz um mapa para situar de maneira ainda mais efetiva como as línguas estão dispostas no mundo.

Minna Sundberg: ilustradora e desenhista de histórias em quadrinhos https://www.theguardian.com/education/gallery/2015/jan/23/a-language-family-tree-in-pictures

Olhando para a árvore da ilustração, você consegue imaginar o que motivou a extinção ou mudança de uma língua que originou várias outras em um tronco linguístico? E por que elas se concentram em um território específico e têm capacidade de expansão para outros?

Bem, para entendermos o que aconteceu numa língua específica, num território específico, num momento específico do tempo, é necessário relacionar as mudanças observadas pelas descrições linguísticas, e os fatos históricos que ocorreram no mesmo momento entre os povos envolvidos, descritos pelos historiadores. Assim, a história pode ajudar a explicar uma língua, da mesma forma como a língua pode ser usada como evidência histórica.

Fatores como migração, relações econômicas e a própria organização social das civilizações ajudam a explicar como a interação entre as pessoas ocorre ao longo do tempo. Desse modo, além de fatores históricos, a distribuição geográfica das línguas também é influenciado por decisões políticas. Os cladogramas nos permitem indicar a forma como as línguas do mundo foram se reorganizando ao longo de sua história.

O contato entre falantes de diferentes línguas é algo que explica diferentes mudanças que acontecem no tempo (na história) e no espaço (geograficamente).

Hoje em dia, porém, o contato linguístico não precisa ocorrer necessariamente pelo deslocamento de pessoas ou pelo convívio de línguas diferentes em um mesmo território.

Lembram do nosso primeiro exemplo, aquele retirado do Twitter no início do post? Ele demonstra o quanto a globalização aproximou pessoas que estão a centenas ou milhares de quilômetros de distância. É no contato que percebemos o que nos aproxima. E quando se tratando da língua, o choque pela semelhança ou diferença faz com que a gente volte aos agrupamentos dos troncos e famílias linguísticas.

Identificando as pistas

Quando ouvimos alguém falar outra língua, nós avaliamos as pistas presentes nos sons da fala, muitas vezes tomando como orientação para essa análise as características da nossa língua materna. E o mesmo ocorre quando lemos um texto em outra língua, mas o texto permite que a gente visualize as pistas, voltando até elas e comparando-as entre si, então é um processo diferente. O processo de leitura é feito em níveis de compreensão que vão se afunilando: há a compreensão geral, a compreensão dos pontos principais e por fim a compreensão intensiva e detalhada.

Você consegue testar os níveis de compreensão lendo o aviso em francês, uma língua irmã do português?

Se lermos um texto escrito em uma língua da mesma família, as pistas ficam mais perceptíveis e o processo de compreensão flui de modo que a língua da escrita não seja o fator primordial para que a compreensão aconteça, mas sim o próprio texto, pois a estrutura do texto também nos ajuda a compreender seu significado.

Por exemplo, fila de espera em espanhol é “cola de espera” e em francês é “file d’attente”.

Nos dois exemplos da mesma família do português (as neolatinas), as pistas estão em um único item (cola no espanhol e file no francês). O sentido dessa expressão não é tão óbvio sem conhecer as línguas originais. “Cola” não parece com “fila” e “attente” não se parece com “espera”. Mas imagine agora essas frases escritas em uma placa em um banco. Agora é muito mais fácil compreender o sentido pelo suporte textual somado ao contexto de uso, não é?

Ao contrário do que sentimos quando acontece, não é surpresa que a gente tenha capacidade de compreender uma língua que não falamos, se ela tiver alguma relação histórica com a nossa. É o caso aqui do português com as demais línguas irmãs, por assim dizer.

Línguas são como organismos vivos. Elas estão em contato uma com as outras e existem diferenças de como uma língua é vista perante as outras a partir de uma política linguística ou a partir da valorização da produção cultural nessa língua. Quando temos contato com pessoas de diferentes culturas, a “barreira linguística” não é necessariamente uma barreira, pois ainda temos capacidade de usar ou complementar a comunicação de forma não verbal, com gestos e expressões faciais por exemplo. De todo modo, nos comunicarmos através de nossas próprias línguas, mesmo que diferentes, também pode ser possível.

Aventure-se em outras línguas! Por mais difícil que pareça, é da nossa natureza que a gente interaja uns com os outros com uma boa conversa e com qualquer tipo de texto.

Saiba Mais

Link para aquisição do poster da árvore genealógica das línguas
https://hivemill.com/products/stand-still-stay-silent-language-family-tree-poster?_pos=1&_sid=075fcaf58&_ss=r

El origen de los idiomas, explicado en una preciosa infografía
https://es.gizmodo.com/el-origen-de-los-idiomas-explicado-en-una-preciosa-inf-1665139632

Artigos

HERVOT, Brigitte; NORTE, Mariangela Braga. O processo de leitura em língua estrangeira. Nuances: estudos sobre Educação, v. 3, n. 3, 1997.

REIS, Mara Silvia. (2015). Percepção de sons da língua estrangeira pelo modelo de assimilação perceptual. Revista ECOS, 11(2).

Livros

ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

CALVET, Louis-Jean. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Editorial: IPOL, 2007.

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