Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

Esse texto é continuação do post: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

A resistência a antimicrobianos (RAM) é conhecida como um problema que não tem fronteiras e é um problema global. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a OMS, uma pandemia é caracterizada por sua disseminação e não necessariamente pela gravidade da doença. Indiscutivelmente, a RAM também pode ser considerada uma pandemia que embora seja mais insidiosa e com menos efeitos imediatos na vida cotidiana, possui impactos negativos potencialmente mais amplos. Vamos entender por que isso acontece nesse post. Vem com a gente!

Como falamos anteriormente, o uso de antimicrobianos está aumentado pelo uso dessas drogas no tratamento e na “prevenção “ da covid-19 tanto no ambiente hospitalar quanto na comunidade. Curiosamente, a resistência das bactérias aos antimicrobianos, que é sempre uma preocupação no meio hospitalar, parece não estar recebendo a devida atenção nesse momento. É por isso que muitos cientistas da área estão tentando chamar a atenção para a importância de um potencial agravamento da pandemia global de RAM.

As UTIs, locais onde concentram os pacientes mais graves da covid-19, são epicentros comuns para o desenvolvimento da RAM. O uso exacerbado de antimicrobianos pode, portanto ter grandes consequências em hospitais que já apresentam elevada prevalência de bactérias resistentes a múltiplas drogas, levando a um aumento de mortalidade devido ao reduzido arsenal de antibióticos para tratar as infecções ou coinfecções adquiridas. Portanto, há comprometimento também de pacientes pós-cirúrgicos, transplantados ou quimioterápicos, por exemplo. Como terminamos falando no post anterior, não estamos falando que não se deve usar antimicrobianos nem que as coinfecções devam ser subestimadas. Mas os profissionais de saúde devem considerá-las num plano integrado para limitar o fardo da morbimortalidade durante a pandemia da covid-19 e, ao mesmo tempo, evitar um possível agravamento da RAM.

Uma medida muito disseminada de proteção contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2) é a higienização das mãos… medida excelente, funcional e simples! Porém, muitas vezes realizada com o uso de sanitizantes ou sabões antibacterianos, que contém agentes químicos que, apesar de não adicionar muita coisa em termos de proteção, podem dar gatilho para a resistência antimicrobiana. E isso acontece porque um dos mecanismos de resistência das bactérias são bombas de efluxo que literalmente jogam os antimicrobianos para fora da célula. Muitas vezes, as bombas que conferem resistência a esses sanitizantes são as mesmas daquelas necessárias para conferir a RAM.

Esses agentes biocidas caem na rede de esgoto e chegam ao ambiente, onde acabam elevando as concentrações dessas drogas. Claro que no caminho essas drogas são diluídas, mas temos que considerar a concentração final desses agentes… Se muito elevadas, muitas bactérias vão morrer, isso pode impactar negativamente os ecossistemas e, ao mesmo tempo, evitar o desenvolvimento da RAM. Porém concentrações baixas (sub-inibitórias) podem aumentar a pressão seletiva e promover oportunidades para o surgimento e a seleção da RAM. De forma muito simplificada, concentrações sub-inibitórias dessas drogas ativam vias de respostas ao estresse que, por sua vez, aumentam a ocorrência de mutação nas bactérias. Isso está relacionado a uma maior taxa de variabilidade entre entre as células bacterianas e, portanto,  a maiores possibilidades do surgimento e seleção de indivíduos resistentes daquela população. O fenômeno da seleção sub-inibitória é muito bem estudado para antibióticos, mas pouco para biocidas. Não podemos, portanto, desconsiderar os efeitos ambientais, uma vez que níveis aumentados de antimicrobianos são liberados no ambiente aumentando os níveis de resistência em animais (selvagens e de corte), na agricultura e nos ambientes naturais.

[atualização 27/07]: É importante ressaltar que resíduos dos antimicrobianos que tomamos são eliminados pelas fezes e pela urina, caindo na rede de esgoto e, consequentemente, no ambiente. É tudo um ciclo, uma grande bola de neve! É algo que, realmente, deve nos preocupar!

Falamos brevemente da ocorrência da RAM em hospitais e no meio ambiente. Mas por que devemos nos preocupar tanto!?

Nos últimos anos a RAM já é citada com a maior ameaça global à saúde pública e à economia global, mas agora está não só eclipsada pela covid-19, como também corre risco de ser agravada por essa nova pandemia. Ou seja: muitos especialistas agora temem que o esforço global para manter a RAM sob controle possa enfrentar um revés durante a pandemia

Vamos falar com números:

A RAM já mata cerca de 700.000 pessoas por ano. Numa estimativa grosseira, e considerando-se que a covid-19 mantenha as taxas de mortalidade pelo restante do ano, estima-se que a RAM resultará em 130.000 morte a mais neste ano. As mortes por COVID podem superar as mortes por RAM neste ano de 2020 e o uso de antimicrobianos em pacientes com COVID também pode até reduzir o aumento na mortalidade por COVID em curto prazo mas, por outro lado, a consequência é um provável aumento na mortalidade por RAM a longo prazo. Estima-se que até 2050, a mortalidade associada a RAM será aumentada para 10 milhões de mortes por ano!  Tudo indica que que a covid-19 será controlada em um tempo consideravelmente menor.

A movimentação dos pesquisadores é para que os princípios da administração de antibióticos não sejam relaxados mesmo nesses tempos de pandemia. A necessidade do tratamento com antibiótico deve ser avaliada rapidamente e interrompida se não for necessária. Observe que não estamos advogando em favor do uso profilático (preventivo) desses medicamentos! Além disso, quem deveria informar o antibiótico de escolha é o laboratório de microbiologia e baseado no micro-organismo e no padrão de resistência observado.

Falamos anteriormente que a OMS já se manifestou contra o uso de antibióticos durante o tratamento inicial de covid-19. Essa cautela deve-se principalmente em relação a dois pontos: 1) o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos pode contribuir para a emergência da RAM, daí a necessidade de se reduzir o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos (sim, a repetição aqui foi intencional!) e; 2) o uso de antimicrobianos no tratamento da covid-19 pode levar à população a assumir que todos os antibióticos são elegíveis para o tratamento de infecções virais.

A ocorrência de infecções por patógenos resistentes pode ser significantemente mitigada pela administração de antimicrobianos baseada em evidência em todos os setores (agricultura e medicina veterinária e humana). Embora tenhamos tempo, a RAM não será contida sem o desenvolvimento de novas vacinas, medicamentos e testes rápidos (assim como na COVID!).

Curiosamente, as estratégias de utilizadas para reduzir a transmissão da covid-19 (distanciamento social, lock-down, fechamento de fronteiras, lavar as mãos com água e sabão) podem, também, reduzir o espalhamento da RAM! Detalhe que a redução das viagens (fechamento de fronteiras) diminui a movimentação de genes de RAM entre países!  Seria muito interessante ver estudos que comparem dados de prevalência de infecções causadas por bactérias RAM antes e depois da pandemia de covid-19, bem como dos perfis de resistência que estão surgindo…

Essa tabela aqui (modificada de Nieuwlaat et al., 2020) ajuda a comparar as duas pandemias:

Finalizando:

  • A resistência a antimicrobianos é uma pandemia que já preocupa cientistas e profissionais da saúde há um tempo, tem impactos relevantes e estima-se que nos próximos anos será ainda mais preocupante.
  • Ainda não sabemos o real impacto da pandemia da covid na pandemia da RAM, mas estamos preocupados e alerta para seu provável agravamento e suas possíveis consequências.
  • É importante uma estratégia multifacetada contra os organismos RAM que envolva: a) estudos prospectivos sobre coinfecções na covid-19 para orientar o tratamento com antimicrobianos; b) monitoramento e relato transparente dos padrões de RAM nas UTIS para guiar o uso adequado de antimicrobianos; c) esforço global coordenado para estabelecer uma estrutura de governança, vigilância e relatos de RAM, tanto agora como depois da pandemia da covid-19.
  • É comum pessoas acreditarem que antibióticos podem ser utilizados para infecções virais (gripe). Usar termos como antivirais pode ajudar a entender que existem diferentes tipos de medicamentos para diferentes tipos de infecção.

Referências:

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  • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
  • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

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