A mulher que mudou para sempre a microbiologia

Este post foi escrito em conjunto com Vanessa Cappelle*

Angelina Fanny Eilshemius Hesse, uma estadunidense de ascendência alemã, que viveu entre 1850 e 1934, deveria ter seu nome listado dentre os mais importantes para a microbiologia. Mas você provavelmente nunca ouviu falar dela. A mulher que contribuiu para a utilização do ágar no preparo de meios de cultura foi praticamente esquecida na história da microbiologia.

QUANDO TUDO ERA CHAOS NA MICROBIOLOGIA…

Quando pensamos na variedade de meios de cultura que existem hoje, pode ser até um pouco difícil imaginar que no início da microbiologia crescer bactérias em laboratório de forma a obtermos uma cultura pura era um grande desafio.  

Os pesquisadores conseguiam observar em microscópios bem rudimentares as diferentes formas de bactérias, mas quando as cultivavam, era uma bagunça! Era tão complicado trabalhar com esses organismos que Carlos Lineu, o “pai da classificação biológica”, colocava as bactérias em um grupo denominado Chaos. Sem formas adequadas de técnicas que evitassem contaminação, ou que permitissem o isolamento e o crescimento de culturas puras, era difícil realizar a identificação das diferentes bactérias.

Esse processo de isolar e identificar bactérias responsáveis por uma doença infecciosa é de grande importância na microbiologia e recebe o nome de Postulados de Koch. Eles foram inicialmente formulados por Friedrich Henle, e Robert Koch fez as adequações necessárias para que, em 1882, eles fossem publicados. E foi Koch, também, quem levou os créditos no final das contas…

Mas Koch só conseguiu fazer seus experimentos e descrever bactérias de grande importância médica (como o bacilo da tuberculose e o vibrião da cólera) porque contava com uma equipe que criou novas técnicas para isolar efetivamente esses microrganismos. Dentre eles, estavam Julius Richard Petri, inventor da placa de Petri, e os meios de crescimento sólido de Walther Hesse. Menos celebrada do que os cientistas mencionados até aqui, uma das principais mentes criativas que mudou os rumos da microbiologia permanece amplamente desconhecida. O nome dela era Angelina Fanny Eilshemius Hesse.

FANNY HESSE, A MULHER QUE AJUDOU A DESFAZER O CHAOS

Nascida em 1850, onde hoje está a cidade de New Jersey, nos Estados Unidos, e filha de um mercador alemão, pouco sabemos sobre a história de Frau Fanny Hesse. Em 1874, ao mudar para a Alemanha, ela conheceu e se casou com o médico Walther Hesse. Além de médico, o sr. Hesse era cientista e apareceu em trabalhos de grandes nomes, incluindo Pasteur. E foi em 1881 que ele começou a trabalhar nos laboratórios de Robert Koch, em Berlim. 

Lina Hesse acumulava as tarefas domésticas e a criação de três filhos com o trabalho não remunerado no laboratório de Koch. Ela auxiliava o marido no preparo de meios de cultura para o crescimento bacteriano e na limpeza de vidrarias e equipamentos. Exímia ilustradora científica, também se dedicou à produção de aquarelas altamente precisas para ilustrar, por exemplo, cada fase de crescimento de bactérias da microbiota intestinal para trabalhos que ele publicou.

Não há dúvidas de que Frau Hesse tinha ampla experiência com as técnicas laboratoriais e que acompanhava de perto os desafios e as necessidades das pesquisas de sua época. Após tentativas mal sucedidas de cultivo de microrganismos em meios de cultura com gelatina, ela sugeriu ao sr. Hesse que usasse ágar-ágar, um extrato de algas marinhas, como alternativa para obter meios de cultura mais estáveis. Diversos cientistas já haviam tentado atacar o problema de isolar culturas bacterianas puras, mas como utilizavam meios fluidos todas as tentativas foram infrutíferas.

Hesse aprendeu sobre o ágar com familiares que viveram na Indonésia, de onde o extrato de alga marinha se originava e era tradicionalmente usado como ingrediente para cozinhar, mantendo a textura de diversos preparos mesmo sob as altas temperaturas do Sudeste Asiático. Desde então, ela utilizava o ágar como substituto da gelatina, reconhecendo toda a versatilidade deste agente gelificante no preparo de compotas e geleias de frutas.

Em 1882, ao publicar o clássico artigo sobre o bacilo da tuberculose, Koch mencionou que usou ágar em vez de gelatina. Na primeira referência a esta melhoria técnica, que marcaria a microbiologia para sempre, Koch não deu crédito a Frau Hesse e nem mencionou o motivo que o levou a fazer essa substituição. 

Anos mais tarde, após a morte de seu marido, Lina Hesse guardou e cuidou de todas as suas ilustrações e dos documentos do casal por anos, em respeito ao trabalho desenvolvido e as suas próprias contribuições para essa descoberta. Apesar de todo o esforço, tal contribuição jamais resultou em benefício financeiro para a família Hesse, que optou por não explorá-la comercialmente. 

POR QUE USAR AGAR FOI TÃO REVOLUCIONÁRIO?

Até a contribuição de Frau Hesse, o cultivo de microrganismos era realizado basicamente em alimentos como angu, clara de ovos coagulada, carne e fatias de batata. Você já deve ter esquecido uma comida num potinho dentro da geladeira e viu como fica a situação: um monte de coisa crescendo junta e um cheirinho nada agradável. 

Uma outra opção que havia era usar gelatina no preparo do meio de cultura, mas é um ingrediente muito instável a altas temperaturas e que pode ser digerido por diversos microrganismos – o que também faz com que o meio se liquefaça.

O ágar, implementado por Hesse, é muito estável e permanece sólido mesmo a elevadas temperaturas (sua temperatura de fusão é de 80 ºC). Além disso, outras características permitem que ele seja adicionado aos meios de cultura: 

  • possui boa transparência quando em meios sólidos ou semissólidos, permitindo uma boa identificação das colônias; 
  • não é digerido pelos microrganismos; 
  • não inibe o crescimento dos microrganismos;
  • possui rigidez adequada (é rígido o suficiente para aguentar os processos de semeadura, mas não tão rígido que afete as propriedades de difusão de substâncias); 
  • não reage com outros ingredientes adicionados nos meios (proteínas, açúcares fermentáveis, por exemplo); 
  • pode ser esterilizável em autoclave (um equipamento que funciona como uma panela de pressão gigante).


Existem vários meios de cultura diferentes, cada um com um objetivo específico… Alguns são ricos nutricionalmente e permitem o crescimento de microrganismos muito exigentes; outros, por sua vez, possuem substâncias que favorecem ou impedem o crescimento de microrganismos específicos. Muitos levam no nome alguns de seus ingredientes (Ágar Infusão de Cérebro e Coração, o Ágar Batata, o Ágar Bile-Esculina, o Ágar Sangue)…Há aqueles que indicam em seu nome o microrganismo para o qual o meio de cultura é indicado (Ágar diferencial para Aspergillus, Ágar Brucella, Ágar m Enterococcus). E outros trazem o nome de seus criadores como o Ágar LB (Luria-Bertani), o Ágar MRS (deMan, Rogosa e Sharpe), o Ágar MacConkey, o Ágar Mueller-Hinton… 

Parafraseando o que os historiadores Hitchens e Leikind escreveram no final de um artigo de 1939: será que já não passou da hora de imortalizarmos a contribuição de Fanny Hesse e termos o “ágar simples” renomeado para “ágar FH”?

AS MULHERES E A CIÊNCIA

Na época de Fanny Hesse, ser mulher e cientista era algo impensável. Embora atuasse ativamente no laboratório, ela permanecia invisibilizada. Ao longo da história da Ciência, as microbiologistas vêm realizando pesquisas inovadoras sem, contudo, receberem o mesmo reconhecimento e celebração dedicados a cientistas homens, como Louis Pasteur e Robert Koch.

Essa postagem é uma pequena homenagem a elas e a cientistas de outras áreas, que tiveram que superar obstáculos significativos para terem acesso a oportunidades que eram mais fáceis a seus colegas homens, simplesmente por causa do seu gênero. Esses obstáculos se tornavam ainda maiores para cientistas mulheres e negras, que se deparam com a interseccionalidade de discriminação de gênero e raça dentro e fora do laboratório.

Já avançamos muito! Quem viu Jaqueline Goes de Jesus, cientista brasileira que coordenou a equipe responsável pelo primeiro sequenciamento genético do coronavírus, sendo homenageada pela Mattel, a fabricante das bonecas Barbie? A luta permanece em curso e vai além da representatividade. Afinal, as inovações das mulheres cientistas espalham criatividade, oferecem novas perspectivas, propõem diferentes questões e inauguram novas áreas de estudo.


*Vanessa Cappelle é bióloga, mestre e doutora em Educação (Educação em Ciências) pela UFMG. Atualmente é Técnica em Assuntos Educacionais na Proex/UFMG, editora adjunta do periódico Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências. Além de tudo isso é professora orientadora do Curso de Especializacão em Educação em Ciências (CECI)!

Escrevemos juntos esse texto para a disciplina História da Cultura Científica, do Curso de Especialização em Divulgação Científica (Amerek), da UFMG.


REFERÊNCIAS

Agapakis, C. (2014). The Forgotten Woman Who Made Microbiology Possible. Popular Science. Disponível em: <https://www.popsci.com/blog-network/ladybits/forgotten-woman-who-made-microbiology-possible/>. Acesso em: 30 jul. 2021.

Ayala-Nunez, V. (2020). Got agar? Say thanks to Angelina Hesse!. #FEMSMicroBlog. Disponível em: <https://fems-microbiology.org/femsmicroblog-got-agar-say-thanks-to-angelina-hesse/>. Acesso em: 30 jul. 2021.

FANNY HESSE. In: WIKIPEDIA: The free Encyclopedia. Wikimedia, 2021. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Fanny_Hesse>. Acesso em: 14 ago. 2021.

Hesse, W. (1992). Walther and Angelina Hesse – Early Contributors to Bacteriology. ASM News, 58(8), 425-428.

Hitchens, A. P., & Leikind, M. C. (1939). The Introduction of Agar-agar into Bacteriology. Journal of bacteriology, 37(5), 485–493. https://doi.org/10.1128/jb.37.5.485-493.1939

Kashani, M. (2020). 10 Women Microbiologists You Don’t Know About, But Should. International Microorganism Day. Disponível em: <https://www.internationalmicroorganismday.org/ blog/10-women-microbiologists-you-dont-know-about-but-should>. Acesso em: 03 ago. 2021.

Mortimer, P. (2001). Koch’s colonies and the culinary contribution of Fanny Hesse. Microbiology Today, 28, 136-137.Zimbro, M.J., Power, D., Miller, S.M., Wilson, G.E., & Johnson, J.A. (2009). Difco™ & BBL™ Manual: Manual of Microbiological Culture Media, 2ed. BD Diagnostic Systems. 700p.

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