O inimigo do meu inimigo…
Cerca de 700 mil pessoas morrem anualmente devido às dificuldades no tratamento de infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos. A OMS estima que, até 2050, esse número deve aumentar para 10 milhões de pessoas por ano! Esses números assustadores mostram que este é um grande desafio para a medicina moderna, e cientistas estão buscando novas formas de combater essas bactérias. Uma alternativa que vem ganhando espaço é a FAGOTERAPIA, que consiste em utilizar vírus que infectam bactérias como medicamento para esses casos! Mais curioso ainda é saber que, apesar de não falarmos muito nisso, o Brasil foi um dos países pioneiros nos estudos da fagoterapia. Vem com a gente para saber um pouco mais sobre essa técnica que de nova não tem nada!
A DIVERSIDADE DOS VÍRUS
Vírus são as entidades biológicas mais numerosas da Terra. Eles são muito diversos, variando em tamanho, na forma, no material genético (que pode ser DNA ou RNA) e na diversidade de organismos que são capazes de infectar. Nem todo vírus causa doença em um ser humano, mas todos são capazes de infectar algum ser vivo. Isso porque eles são parasitas intracelulares obrigatórios, ou seja, só são capazes de se multiplicar e completar seu ciclo se estiverem dentro de uma célula. São o tipo de entidade biológica mais numerosa na Terra!
Nesta figura conseguimos ver um pouquinho da diversidade dos vírus.
Repare que destacamos um bacteriófago na imagem acima. Os BACTERIÓFAGOS (ou simplesmente FAGOS) são os vírus que infectam as bactérias. Esse nome literalmente significa: “comedores de bactérias”. Além disso, eles costumam ter esse aspecto meio robótico mesmo! Abaixo podemos ver alguns detalhes da estrutura dos bacteriófagos e imagens de microscópio que mostram a diversidade existente entre eles.
O INÍCIO OBSCURO DA FAGOTERAPIA
Os vírus foram descobertos em 1898, quando Beijerinck estudava o que causava a doença do mosaico do tabaco. Os pesquisadores naquela época não sabiam o que exatamente eram os vírus, afinal não conseguimos vê-los com microscópios comuns, e os microscópios eletrônicos só foram desenvolvidos algumas décadas depois.
A primeira menção aos fagos ocorreu em 1915 (por Frederik Twort), e já em 1917, a possibilidade de serem utilizados como medicamentos foi aventada por Félix d’Herelle. Surgia assim, a terapia fágica (ou fagoterapia) para o tratamento da disenteria bacilar, acusada por uma bactéria chamada Shigella.
Em 2020 e 2021, devido à pandemia do coronavírus, passamos a ouvir sobre os testes de medicamentos e vacinas, e a importância dos ensaios clínicos controlados por placebo, randomizados e duplo-cegos. Mas naquela época as coisas funcionavam de forma um pouco diferente…
Além de não saberem com o que eles estavam lidando, não havia padronização e consenso sobre as doses a serem administradas, como realizar o tratamento, qual a melhor forma de estocar/conservar os fagos… mas, principalmente, não se sabia que cada tipo fago tem sua especificidade, e logo não infecta qualquer bactéria – isso fazia com que muitas vezes fossem administrados fagos sem efeito curativo. Por isso tudo, havia muita divergência entre os resultados observados, o que levantava dúvidas sobre a eficácia do tratamento.
O ESQUECIMENTO DA FAGOTERAPIA
Mas os anos de ouro da fagoterapia não duraram muito tempo…
Iniciada em 1917, na década de 1940 a terapia fágica já se encontrava disseminada nos Estados Unidos e na Europa, inclusive com empresas produzindo preparações medicamentos contendo bacteriófagos. Acontece que, nessa mesma época, os rumos da fagoterapia foram drasticamente alterados.
A descoberta de antimicrobianos ocorreu mais ou menos naquela época e, principalmente a penicilina foi amplamente disseminada e utilizada – inclusive durante a segunda guerra mundial. Os resultados eram impressionantes e a mortalidade causada por infecções bacterianas diminuiu muito.
Isso fez com que os estudos sobre antimicrobianos ganhassem destaque e investimento em detrimento dos estudos como fagos. Mas isso aconteceu principalmente nos países ocidentais. Na União Soviética a história era diferente. Havia dificuldade de acesso aos antibióticos e, assim, a pesquisa em fagoterapia continuou.
BRASIL COMO UM DOS PIONEIROS DA FAGOTERAPIA
Em 1921, José da Costa Cruz, um pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no Rio de Janeiro, tentou replicar os experimentos de d’Herelle, usando fagos para tratar um surto de disenteria bacilar ocorrido em Barbacena (Serra da Mantiqueira)/MG. Apesar de não ter resultados positivos, José Cruz não desistiu e continuou com seus estudos.
Resultados positivos vieram em 1923, quando em um experimento realizado no IOC, observou a melhora de sintomas da infecção após 4 a 5 horas da administração e cura em 1 a 2 dias. Novos testes foram realizados e com relatos positivos no Pará, no Maranhão, em Pernambuco, no Paraná e em São Paulo. Com isso, o IOC iniciou a preparação e distribuição em massa dos fagos, que era vendido sob o nome de Bacteriofagina Disentérica!
No ano seguinte, seu uso foi ampliado bem como sua produção. A bacteriofagina agora era distribuída para outros países da América Latina. E nos anos seguintes a fagoterapia foi incluída no currículo de formação de profissionais da saúde. Com o tempo, outros produtos também foram surgindo.
O SUMIÇO DA FAGOTERAPIA NO BRASIL
Como vimos, os cientistas brasileiros estavam entre pioneiros da fagoterapia. Foram da falha clínica (em 1921) à produção em larga escala (1924) em pouquíssimos anos! Mas o que aconteceu que justifique que hoje a gente ouça muito pouco (ou mesmo nada) sobre fagoterapia por aqui?
Quando se olha a documentação sobre esses tratamentos, não se observa o registro de recomendação da interrupção da prática, nem de leis ou regulamentação sobre o assunto. O último registro, na literatura científica brasileira, do uso de fagos é de 1950. O obituário de José da Costa Cruz (1941) destaca os esforços do pesquisador na fagoterapia, e não menciona problemas ou intenção de interromper a prática. Ou seja: tudo indica que a fagoterapia estava indo com tudo!
Nós não sabemos o que aconteceu. Resta-nos supor que houve uma migração dos estudos com fagos para os estudos com antibióticos – assim como aconteceu em grande parte do mundo.
Também não sabemos detalhes dos testes clínicos, da origem dos fagos, dos volumes e quantidades administrados. Também não sabemos o que aconteceu com as coleções de estoque de fagos, nem os protocolos de produção e purificação da “bacteriofagina”. Perdemos uma grande parte da história científica brasileira.
A REDESCOBERTA DA FAGOTERAPIA
Nos últimos 15 anos, a fagoterapia voltou à boca dos cientistas, mas não foi por nostalgia. Com o surgimento, aumento e a dispersão de bactérias resistentes a antibióticos (algumas resistentes a diversos antimicrobianos diferentes), principalmente em hospitais, a busca por novas formas de combater essas bactérias se faz cada vez mais urgente. Hoje temos maior compreensão de diversas técnicas que permitem um estudo mais cuidadoso da fagoterapia, com ensaios clínicos bem desenhados e multicêntricos – o que permitirá uma maior confiança nos resultados obtidos.
Hoje duas abordagens estão sendo avaliadas para aplicação da fagoterapia.
A) Pronto para usar – essa abordagem tem caráter comercial, e consistiria em coquetéis fixos de fagos que seriam vendidos em farmácias, como medicamentos. É um processo demorado (meses a anos) e possui custo elevado.
B) Feito sob medida – essa abordagem tem um caráter laboratorial/hospitalar, e consiste na administração de fagos específicos e ativos contra a linhagem responsável pela infecção do paciente. O processo é rápido (dias a semanas) e possui custo baixo quando comparado à outra abordagem.
Enfim… como diz aquele ditado, o inimigo do meu inimigo é meu amigo!
REFERÊNCIAS
- Adesanya O, et al. (2020). An exegesis of bacteriophage therapy: An emerging player in the fight against anti-microbial resistance. AIMS Microbiology, 6(3):204-230.
- Almeida GMF, Sundberg LR. (2020). The forgotten tale of Brazilian phage therapy. The Lancet Infectious Diseases, 20(5):E90-E101.
- Brives C, Pourraz J. (2020). Phage therapy as a potential solution in the fight against AMR: obstacles and possible futures. Palgrave Communications, 6:100.
- Gordillo Altamirano F, et al. (2021). Bacteriophage-resistant Acinetobacter baumannii are resensitized to antimicrobials. Nature Microbiology, 6(2):157-161.
- Hesse S, Adhya S. (2019). Phage Therapy in the Twenty-First Century: Facing the Decline of the Antibiotic Era; Is It Finally Time for the Age of the Phage? Annual Reviews Microbiology, 73:155-174
Você já conhece nossas redes sociais?
Siga a gente no Twitter, no Instagram e no Facebook!
Ah! E se for fazer comprinhas na Amazon, use nosso link!