
Um olhar crítico sobre as condições de produção e de abate de peixes e os avanços necessários para garantir práticas mais humanitárias no país
Por Caroline M Maia
A piscicultura, embora vista como uma solução para atender à crescente demanda mundial por alimentos, esconde uma realidade que precisa ser repensada: o tratamento dos animais e os impactos no seu bem-estar. Nos sistemas de produção, os peixes geralmente enfrentam condições de estresse que comprometem sua saúde e causam sofrimento a esses animais. E esse é um tema que merece nossa atenção urgente.
Nas pisciculturas, geralmente a ênfase está na eficiência econômica, mas o bem-estar dos peixes muitas vezes é negligenciado: problemas de densidade, práticas inadequadas de manejo, e até mesmo o descamamento e a filetagem de peixes ainda conscientes.
Condições de produção: falta de espaço, densidades super altas e estresse
Em sistemas hiper-intensivos, os peixes são criados em densidades extremamente altas, bem acima do que encontrariam na natureza, o que contribui para problemas de saúde e estresse. Por exemplo, na região sul do país, já vi juvenis de tilápia – a espécie mais produzida no Brasil – serem mantidos na altíssima densidade de 1.000 indivíduos/m3 em viveiros escavados. Além do problema de espaço e densidade – um dos pilares do bem-estar dos peixes, esses viveiros tinham lona no fundo, o que impede o acesso dos peixes ao substrato – algo que faz falta para essa espécie.
É possível encontrar densidades mais baixas de tilápia (10-30 indivíduos/m3) em viveiros escavados, que também mantém o acesso ao substrato no fundo, mas ainda assim em sistemas que apresentam desafios. Em uma propriedade com viveiros com mais de 14 mil m2 – capazes de gerar cerca de 225 toneladas de peixe/tanque! – embora o uso de aeradores para oxigenar a água, telas de proteção para evitar predadores e uma aparente boa distribuição de ração por alimentadores automáticos, sensores de oxigênio instalados nos tanques, por exemplo, foram considerados ineficazes.


Em sistemas de tanques-rede, as condições também são preocupantes. Uma vez visitei um sistema desses na região sul com produção de pacus, nos quais os peixes eram mantidos em tanques pequenos (1,5 x 1,5 m), com uma densidade de até 350 indivíduos/tanque. Embora os produtores tenham enfatizado a facilidade de manejo dos animais nesses sistemas, o espaço limitado e a alta densidade criam um ambiente estressante para os animais. E isso pode ser ainda pior. Há relatos de tilápias mantidas nos mesmos sistemas de produção, mas em uma densidade bem maior de cerca de 600 indivíduos/tanque-rede!

Práticas de manejo: deficiências no processo
A presença de carcaças de alevinos no chão entre viveiros, algo que já foi presenciado em uma propriedade visitada, reflete uma falta de cuidado no manejo dos animais. Além disso, a falta de uniformidade no tamanho dos peixes é outra questão comum. Enquanto algumas propriedades acabam ignorando esse aspecto, o que resulta em estresse e problemas de crescimento dos peixes, outras investem em uma separação periódica e rigorosa por tamanho. Uma das propriedades já visitadas na região sul chegou até a comprar uma máquina de alto custo no exterior que realiza a separação de peixes por tamanho.

Embora a tecnologia esteja presente na piscicultura brasileira, ela nem sempre é utilizada adequadamente. A falta de cuidados básicos, como a separação por tamanho, a vacinação e o controle no processo de insensibilização pré-abate ainda é um desafio.
A falta de padronização em termos de vacinação dos animais, que é um procedimento importante para prevenir doenças e reduzir o uso excessivo de antimicrobianos, é outro problema. Já visitei propriedades que fazem a vacinação dos peixes e também aquelas que não fazem, o que traz riscos à saúde dos animais. Mesmo quando há vacinação, é realizada apenas para um ou dois tipos de bactérias, como o Streptococcus.
Além disso, já ouvi relatos sobre o transporte de peixes a seco entre tanques na passagem da fase de alevinagem para a engorda, o que é um sério problema de bem-estar animal. Transportar os animais fora da água é um procedimento que pode causar hipóxia – falta de oxigênio – por tempo prolongado. Métodos de transporte que mantenham os peixes na água ou, pelo menos, que minimizem o tempo que permanecem fora da água, devem sempre ser priorizados.
Abate: falhas na insensibilização e sofrimento prolongado
No abate, a situação é ainda mais alarmante. Alguns frigoríficos que já visitei e que alegam utilizar métodos modernos de insensibilização elétrica, na prática, não garantem a morte de animais inconscientes. Não há um controle de parâmetros elétricos importantes, como a amperagem para insensibilizar os peixes e torná-los inconscientes. Em um dos sistemas, após uma insensibilização ineficiente, os animais seguiam direto para a descamação e filetagem sem passar por um processo completo de abate – muitos deles ainda conscientes!
Em outro sistema, a corrente elétrica é aplicada na cauda dos peixes, que é uma região inadequada, sendo pendurados fora da água por ganchos inseridos dentro de seus opérculos – região bem sensível onde ficam as brânquias – em um sistema automatizado que realiza o abate por sangria. E mesmo a sangria automática das brânquias acaba sendo realizada de forma equivocada em diversos animais, dada a diferença de tamanho entre eles.
Em muitos frigoríficos, os peixes são frequentemente insensibilizados de maneira inadequada, permanecendo conscientes durante o processo de abate, o que agrava o sofrimento.

Ou seja, embora a insensibilização elétrica seja recomendada, os peixes são inadequadamente insensibilizados e abatidos em um sistema automatizado que causa ferimentos, choques e hipóxia, o que resulta em muitos peixes sendo descamados e até filetados enquanto ainda estão vivos, uma prática que não condiz com um abate humanitário. Além disso, os peixes são frequentemente transportados e manejados de forma inadequada para o abate, o que agrava as condições de estresse e sofrimento desses animais.
O chamado para uma piscicultura ética
Peixes são seres sencientes, capazes de sentir dor, medo e estresse. As práticas observadas destacam a necessidade urgente de uma piscicultura mais ética que considere o bem-estar animal como prioridade. Desde a criação até o abate, há espaço para avanços que não apenas reduzam o sofrimento, mas também tornem o sistema mais sustentável, além de, consequentemente, refletir em melhor produtividade também.
A implementação de métodos eficazes de insensibilização, o uso de densidades de estocagem e outras condições ambientais mais compatíveis com o bem-estar dos peixes, e um manejo rápido, adequado e cuidadoso dos animais são passos essenciais para transformar o setor. A sociedade, cada vez mais consciente, demanda por práticas que busquem minimizar o sofrimento dos animais nos sistemas de produção, e é responsabilidade de todos nós cobrar mudanças que reflitam esses valores.
Caroline M Maia é bióloga, mestre e doutora em Zoologia, na área de comportamento e bem-estar de peixes. Ela também é especialista em Jornalismo Científico e em Etologia, além de pós-doutora em Aquicultura. Caroline faz parte das equipes FishEthoGroup Association e fair-fish, além de atuar como especialista em peixes pela Alianima.
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