
Por Ariadne Magalhães Carneiro, Fabrício de Toledo, Felipe Gustavo Camolezi Filho, Ricardo Greggo e Vinícius Nunes Alves
Na postagem anterior sobre o I Webinar “Incêndios Florestais: Um debate emergente” (gravação completa disponível no link do YouTube), foi resumida a palestra de abertura do evento, ministrada pela Prof. Dra. Renata Cristina Batista Fonseca da Faculdade de Ciências Agronômicas (FCA) da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O evento ocorreu em 26 de novembro, os meses passam, mas o efeito continua. Renata contou sobre os impactos dos incêndios sem precedentes que atingiram a Cuesta da região de Botucatu entre setembro e outubro, especialmente no perímetro da Fazenda Experimental Edgárdia. Ela também apresentou importantes frentes de trabalho e parcerias que estão em desenvolvimento no Laboratório de Conservação da Natureza (LCN) que ela coordena, pertencente ao Departamento de Ciência Florestal, Solos e Ambiente da FCA.
Na continuação do webinar, houve mais duas palestras de profissionais com larga experiência de pesquisa relacionada ao fogo: Christian Niel Berlinck e Ana Carolina Moreira Pessôa. Christian possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998), mestrado (2003) e doutorado (2008) em Ecologia pela Universidade de Brasília. É analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) onde trabalha com Ecologia do Fogo e Conservação de Fauna. É especialista em queimadas prescritas e manejo do fogo, investigador de causa e origem de incêndios florestais, instrutor de prevenção e combate a incêndios florestais, além de acumular experiência com gestão de Unidades de Conservação. Ana Carolina possui graduação em Ciências Biológicas – Bacharelado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013). Mestre e Doutora em Sensoriamento Remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (2016, 2022). Atuou como Pesquisadora Assistente no projeto ‘Tropical Deforestation and Economic Development’, financiado pelo ‘Research Council of Norway’ (2016-2018). Hoje atua como pesquisadora no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), tem experiência em estudos ambientais na Mata Atlântica e na Amazônia, Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento, Avaliação de Políticas Públicas Ambientais e Conservação da Natureza.
Nesta matéria para o Natureza Crítica, adaptamos em formato de entrevista algumas percepções, experiências, desafios e recomendações apresentadas pelos dois pesquisadores durante o webinar em suas respectivas especialidades. A primeira parte foi direcionada para o Christian e a segunda foi direcionada para a Ana Carolina.

Após um incêndio, quais são os efeitos sobre a fauna nos tipos de vegetação que já estudou?
Christian – A estrutura e os recursos disponibilizados pela vegetação são afetados quando ocorrem alterações ambientais abruptas, como incêndios, e isso afeta a sobrevivência da fauna local. Em estudos de fogo no Pantanal com florestas poliespecíficas que participei, não registrei perda de diversidade de mamíferos nativos de médio e grande porte, mas sim uma leve redução de abundância. Já em florestas monoespecíficas adjacentes que já têm baixa diversidade e menos recursos, tanto a diversidade quanto a abundância sofreram uma queda acentuada após a passagem do fogo. Esse efeito durou mesmo após dois anos do incêndio, as populações destas espécies da fauna monitoradas não se recuperaram, indicando que outros incêndios semelhantes aos de 2020 no Pantanal podem reduzir ainda mais o tamanho das populações, pois não houve tempo de recuperação, acarretando em alguns casos extinções locais. A alteração do regime de fogo gera efeito significativos, hoje é importante considerar que podem existir os três tipos de fogo ao mesmo tempo – o de superfície, o de solo e o de copa, afetando de forma diversa a fauna, incluindo as suas estratégias de sobrevivência durante e após o fogo.
Cada grupo de animais é afetado de maneira diferente pelo fogo. Pode comentar um pouco sobre essas diferenças observadas nos incêndios?
Christian – Considerando o regime histórico de fogo em cada região, a fauna se adapta e desenvolve estratégias para sobrevivência. Atualmente estamos vendo alteração do regime e tipo de fogo, por exemplo, onde antes ocorria apenas o de superfície, agora, devido às secas acentuadas, ocorre fogo subterrâneo e, em alguns casos, até fogo de copa, antes raro no Brasil. Assim, as espécies que tinham a estratégia de subir nas árvores para fugir do fogo, são afetadas tanto pela fumação, morrendo intoxicadas, quanto queimadas nas copas das árvores. Outra estratégia de fuga e sobrevivência dos animais é se entocarem, mas se o fogo no solo também ocorre, acaba matando-os, elevando o impacto na abundância e na riqueza. Hoje existe um banco de dados nacional sobre todos os animais que são afetados diretamente pelo fogo, com quase 3 mil registros. Então, a maior parte dos registros são de incêndios, um número bem maior que o fogo das queimadas prescritas. Os mais afetados geralmente são os répteis, principalmente os de pequeno porte e baixa mobilidade. Os anfíbios também são bem afetados porque mesmo indo para as áreas úmidas próximas, estas também acabam sendo atingidas pelos incêndios.
Christian – Outro aspecto a ser estudado é a ecologia comportamental dos animais que está relacionada com a taxa de sobrevivência das espécies. Então, a gente olha para cada uma dessas espécies, vendo o comportamento que elas têm e como que elas podem responder à passagem de fogo. As observações devem ir além da quantidade de indivíduos que morrem, mas também o quanto de biomassa e de função ecológica que esses indivíduos desenvolviam naquela região e que após o fogo serão perdidas. A partir disso, podemos analisar a saúde e a qualidade do ambiente para desenhar as melhores estratégias de recuperação e restauração ambiental, considerando inclusive a reintrodução de espécies que foram localmente extintas após os incêndios.
Excluir o fogo não necessariamente é a solução do problema, mas sim manejar o fogo em cada situação. Como especialista em manejo integrado do fogo, pode ponderar diferentes contextos para tratar o fogo?
Christian – O fogo não é o problema, e sim o seu uso indiscriminado e sem controle, o incêndio. O problema é como ele é usado. A legislação permite o uso do fogo quando autorizado pelos órgãos ambientais competentes, sejam eles municipais, estaduais ou federais. A gente tem uma cultura de fogo zero no Brasil, ela vem desde a época colonial, imposto por Portugal e os invasores, esquecemos como isso era tratado aqui pelos povos originais, como eles usavam o fogo para manejar o ambiente, para fins culturais e econômicos. Mas isso não quer dizer que a gente tem que banalizar o fogo, usar a torto e a direito. O que a gente precisa é ter normativas que orientem o uso do fogo de forma adequada. Se apenas tirar o fogo do local, vai crescer vegetação e acumular biomassa, potencializando a ocorrência de incêndios de grandes proporções. Hoje em dia não temos que pensar se vai vir incêndio, é quando ele vai vir. Isso é fato e o que nós temos observado hoje com as mudanças climáticas é que os dias estão cada vez mais quentes, a quantidade de chuva que está caindo é cada vez menor e a quantidade de dias sem chuva é cada vez maior no ano, isso auxilia o pré-aquecimento e a desidratação da vegetação, facilitando a propagação do fogo e a perda de seu controle.
Christian – Se temos uma fonte de ignição, o fogo pode se alastrar com facilidade. A gente precisa fazer com que esse fogo fique contido, se isso não é feito, não tem equipe profissional que consiga controlar. Isso só vai ser alcançado se a gente tiver um planejamento em escala de paisagem que envolva áreas protegidas, áreas particulares, institutos de pesquisa, educação e toda a comunidade de interessados. Hoje a Política Nacional deManejo Integrado do Fogo subsidia essa ação.
Fora das Unidades de Conservação Federais, não atuam equipes de profissionais do ICMBio para manejar o fogo da melhor maneira possível. Qual poderia ser o caminho para a implantação do manejo integrado do fogo, com aplicação, por exemplo, de queimadas prescritas, em uma Unidade de Conservação Municipal?
Christian – É importante se basear na Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, além de documentos do ICMBio que orientam a elaboração de planos de manejo integrado do fogo. Outro ponto fundamental é que manejo integrado do fogo não se restringe a queimas prescritas, ela é apenas uma das técnicas de prevenção de incêndios em vegetação que podem ser utilizadas. O primeiro passo então, seria trabalhar junto com os estados, porque são os estados que normatizam essas ações fora das Unidades de Conservação Federais. Além disso, é fundamental levantar o histórico de ocorrência de fogo, entender por que e como ele ocorre, onde se inicia e para onde se propaga, além da época de ocorrência. Com o conhecimento básico implementa-se as ações devagar, o primeiro passo é fazer um mapeamento da região do município, o que é sensível (como ambientes florestais) e o que é adaptado (como ambientes savânicos e campestres) ao fogo. Envolver institutos de pesquisa e universidades para monitorar essas áreas antes da passagem do fogo é fundamental, por exemplo, pode-se fazer uma queimada prescrita de 5 ou 10 hectares e ver como essa área responde. O processo longo, nós estamos há mais de 10 anos trabalhando nisso para conseguir chegar nos resultados que o ICMBio tem hoje. Mas comece devagar, planejando, olhando para a paisagem, caracterizando ela e depois vem a tomada de decisão. Por fim, enfatizo que existem diversas técnicas de prevenção de incêndios além do manejo de combustível com queimadas prescritas, como educação e envolvimento das comunidades, presença institucional, aceiros e evitar fontes de ignição.

Com base na sua experiência com políticas públicas ambientais, o que destacaria como principais marcos na política e na legislação em relação ao fogo em ambientes naturais?
Ana Carolina – Trazendo um pouco do que é política ambiental, ela é considerada um conjunto de diretrizes, princípios e regras criadas para orientar comportamentos em determinado contexto e meio ambiente. A promoção de políticas públicas ambientais visa a conservação da sociobiodiversidade, a gestão sustentável dos recursos naturais e a mitigação dos impactos das atividades humanas. Em 1981, tivemos a Política Nacional do Meio Ambiente, em 1988 a Constituição Federal que traz no artigo 225 a proteção do meio ambiente como direito fundamental e como responsabilidade tanto do poder público quanto da sociedade. Em 2000 a gente tem um marco importante com a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, trazendo então as categorias de áreas protegidas em nosso país. Em 2015 o Brasil passa a ser signatário do Acordo de Paris, se comprometendo internacionalmente com a redução das emissões dos gases do efeito estufa. E somente em 2024 é que a gente tem então a criação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, trazendo uma política em que o fogo é realmente o protagonista. Então oficialmente o fogo só se tornou protagonista recentemente, apesar de já ser mencionado em outras políticas anteriores. Antes disso, existia muito mais uma mentalidade de fogo zero.
Ana Carolina – Além disso, o fogo sempre foi muito atrelado ao desmatamento, então, acreditava-se que se atacassem o desmatamento, consequentemente, o fogo também iria diminuir. O que é em parte verdade, mas não é sempre assim, atualmente com as mudanças climáticas vemos o desmatamento diminuindo na Amazônia, por exemplo, mas áreas com incêndios continuam aumentando.
Como surge uma boa política pública para a conservação ambiental e como o sensoriamento remoto pode auxiliar?
Ana Carolina – Primeiro, identifica-se um problema. Depois, formula-se uma agenda para discutir a questão. Em seguida, elabora-se a política, desenvolvendo propostas e alternativas. Após a tomada de decisão, ocorre a implementação, monitoramento e avaliação da política.O sensoriamento remoto é fundamental em todas essas etapas, pois melhora a precisão, a agilidade e a transparência, permitindo uma gestão mais eficiente e informada. Ele fornece dados cruciais para gestores e tomadores de decisão. Um exemplo que sempre me chamou atenção são as áreas protegidas, pois podemos observá-las em uma escala de paisagem, indicando onde a floresta está sendo afetada pela degradação.
Pode explicar isso com um exemplo da sua experiência de pesquisa?
Ana Carolina – A Terra Indígena Parakanã, no Pará, por exemplo. Nós observamos que, ao longo do tempo, o desmatamento — representado pelas áreas mais claras — avança na paisagem, enquanto a terra indígena permanece como uma ilha de floresta.Sempre me questionei se essas áreas protegidas, além de serem eficazes contra o desmatamento, também poderiam barrar o fogo. Diferentemente do desmatamento, o fogo não se inibe por fronteiras políticas. Mas medir o efeito causal de uma política é desafiador, principalmente porque sua implementação não é aleatória e diversos outros fatores, como condições climáticas, também influenciam a ocorrência de fogo além da criação da proteção de uma área o que introduz vieses estatísticos.
Ana Carolina – Sabendo disso, eu usei dois modelos econométricos acoplados. Primeiro, o pareamento, que compara pixels de imagem dentro e fora de áreas protegidas, mas com características ambientais semelhantes.Comparar uma floresta protegida com um pasto seria injusto. O pareamento seleciona um controle válido: um pixel fora da área protegida, mas com condições similares.Na segunda etapa, utilizei o modelo de diferenças em diferenças , comparando a área dentro e fora e antes e depois da implementação da proteção. Isso permite afirmar se a política reduziu a ocorrência de incêndios. A vantagem do sensoriamento remoto é que ele fornece dados para controlar múltiplos fatores, por exemplo, no meu trabalho, controlei fatores climáticos, de uso da terra e de rentabilidade da terra. Os resultados mostraram que a criação de áreas protegidas reduziu significativamente o fogo na Amazônia.
Como podemos incentivar as prefeituras a usarem sensoriamento remoto na gestão ambiental?
Ana Carolina – Na região da Amazônia, onde tenho mais experiência, vimos que muitas prefeituras não utilizam essas tecnologias por falta de pessoal. Às vezes, uma pessoa já é responsável por diversas tarefas, e adicionar mais uma sobrecarrega ainda mais o trabalho. Já no nível estadual, há maior capacidade de monitoramento, mas o gargalo está na articulação entre instituições. Além disso, a questão política é relevante, pois muitos tomadores de decisão têm interesses conflitantes. Uma alternativa é traduzir o conhecimento científico em aplicativos e ferramentas acessíveis que possam ser utilizados por gestores locais de forma fácil e rápida. Tornar a tecnologia acessível para quem está fora da academia é fundamental.
Ariadne Magalhães Carneiro é bacharel em Biotecnologia pela Unifal, mestre e doutora em Biotecnologia pela Unesp. Trabalha nos projetos de extensão universitária Projeto Trilha e Clube da Mata, da Unesp de Botucatu, voltados à educação ambiental.
Fabrício de Toledo é graduando em Engenharia Florestal pela Unesp, presidente da empresa júnior Conflor Jr. e participa das atividades do laboratório de Restauração e Silvicultura Tropical (RESTROP).
Felipe Gustavo Camolezi Filho é graduando em Engenharia Florestal pela Unesp – FCA, Integrante do grupo PET – Florestal e participante de pesquisas sobre Detecção e Varredura por Luz (LiDAR).
Ricardo Greggo é comunicador social, fotógrafo de biomas, ativista ambiental e atual presidente da ONG Cuesta Viva.
Vinícius Nunes Alves é biólogo pela Unesp, mestre em Ecologia e Conservação pela UFU, especialista em Jornalismo Científico pela Unicamp. Foi professor substituto no Departamento de Ciências Humanas do IBB-Unesp, é colunista do jornal Notícias Botucatu, atua como professor de Ciências na Prefeitura de Botucatu-SP e como jornalista independente.
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