Vida e morte do Curupira em São Paulo

Curupira é um menino de cabelos vermelhos e pés voltados para trás. Ele protege a floresta de seus inimigos. Ente fantástico do folclore brasileiro, esconde as ferramentas dos caçadores e desmatadores e confunde esses pilantras, pois suas pegadas em sentido oposto fazem com que eles se percam na mata. Mascote da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, incomoda inclusive antagonistas engravatados, a exemplo de um político de caráter duvidoso que recentemente ajudou facção criminosa com suas mentiras.

Em 2021, foi publicado neste blog o texto “Cidade Invisível é divulgação científica sobre meio ambiente sim senhor!”, no qual é defendo que podemos utilizar criaturas fantásticas para falar sobre questões de ciências. Que a divulgação científica não precisa necessariamente ser uma aula complexa. Pode ser uma provocação, um convite, um flerte. Que a divulgação do conhecimento científico ocorre em vários níveis. E às vezes é necessário lançar mão de variadas estratégias para criar uma porta de entrada e atrair os mais variados públicos. Gerou polêmica nas redes sociais. Positivistas ficaram de cabelo em pé. Mas também teve quem se identificou e apoiou.

As divulgadoras científicas Erica Mariosa, Maria Clara Sosa e Ana Arnt levaram adiante a discussão e produziram um artigo científico no periódico Educação & Realidade a partir da polêmica, produzindo uma análise que mesclou de Focault a Krenak e avaliou potencial da série televisiva como ferramenta de debate sobre divulgação científica, apagamento do saber popular e necessidade de validação na sociedade ocidental.

Argumentos foram lançados, mas cada pessoa é livre para acreditar no que quiser. No entanto, apelando para uma abordagem legalista, é preciso reforçar que todo mundo é obrigado a respeitar a lei. E no estado de São Paulo existe normativa legal específica para o Curupira.

Protetor das florestas do estado

A narrativa do seriado Cidade Invisível inova ao trazer as criaturas folclóricas para o ambiente urbano. A primeira temporada, que tem a participação do Curupira como um dos personagens, acontece no Rio de Janeiro. Mas esse negócio de ente fantástico em uma capital de grande porte não é novidade. E a história que segue, sobre a saga do Curupira no território paulista, não tem nada de ficção.

Em 1968, a deputada estadual Dulce Salles Cunha Braga apresentou na Assembleia Legislativa o projeto de lei nº 558, que propunha o Curupira como símbolo estadual de guardião e protetor das florestas e dos animais que nela vivem. O projeto determinava ainda que o símbolo do Curupira seria difundido nas escolas de graus primário e médio e que as secretarias da Agricultura e da Educação deveriam tomar as providências no sentido de difundir o Curupira como protetor da flora e fauna. Em julho 1970, Dulce reapresentou o projeto de lei, agora com número 40. Em agosto daquele ano, o deputado Solon Borges dos Reis, ao recomendar que o projeto fosse aprovado pela casa, escreveu:

“Diariamente nos jornais temos notícias de atos criminosos no sentido de devastar a nossa flora e a fauna, apesar da proteção que o estado oferece. É importante, a fim de pôr paradeiro a esses atos criminosos, educar as nossas crianças, mostrando-lhes os aspectos positivos da preservação forçosa da natureza e da fauna, tão necessárias à vida do homem”.

Os deputados aprovaram o projeto no primeiro dia de setembro daquele ano. No dia 11, foi promulgada a lei que instituiu o Curupira com o Símbolo Estadual de Guardião e Protetor das Florestas e dos animais.

Curupira da capital

Em 21 de setembro de 1970, Dia da Árvore, foi inaugurado um monumento ao Curupira no Horto Florestal da cidade de São Paulo, atualmente designado Parque Estadual Alberto Löfgren (PEAL). A estatueta foi doada pelo prefeito de Ribeirão Preto. O monumento é uma réplica de uma estátua que existia naquele município.

No entanto, a estátua do Horto sofreu depredações na década de 1990 e acabou sendo retirada de seu pedestal. Anos e anos após o ocorrido, era comum escutar relatos das pessoas mais velhas que passavam pela área do Parque sobre suas memórias afetivas relacionadas àquela imagem do Curupira.

Coincidentemente e infelizmente, a obra original de Ribeirão Preto, que provavelmente era de bronze, também havia sido furtada. Mas uma nova estátua, de concreto, foi confeccionada e colocada em um parque do município: Parque Prefeito Luiz Roberto Jábali (conhecido também como Parque do Curupira).

Quanto à estátua “paulistana”, ela foi parcialmente restaurada pelo servidor do então Instituto Florestal (IF) Robinson Dias e, posteriormente, na segunda metade da década de 2010, passou a integrar o acervo do Museu Florestal “Octávio Vecchi”, localizado no PEAL.

O retorno

Em 2018, o biólogo Felipe Zanusso realizava sua pesquisa de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudando, dentre outros temas, a história das áreas protegidas. Ex-funcionário da Fundação Florestal do estado de São Paulo, já havia trabalhado lotado no Parque Estadual Alberto Löfgren (PEAL). Mas ainda não conhecia a história do Curupira dali. Até que teve um sonho: de que havia um Curupira naquele parque. A revelação onírica o levou ao Museu Florestal, onde pôde conhecer um pouco mais dessa saga. Durante esse processo, desenvolveu nos anos que se seguiram, junto à equipe do Museu, à época vinculado ao extinto IF, diversas atividades de educação ambiental e divulgação científica visando a criação e o fortalecimento de uma cultura de valorização de áreas protegidas.

Em parceria com Natália Almeida, responsável pelo Museu à época, pesquisando mais a fundo as origens do Curupira do Horto, Felipe chegou ao artista Thirso Cruz, com 82 anos à época. O artista era natural de São Joaquim da Barra e radicado há mais de sessenta anos em Ribeirão Preto, onde produziu muitas obras e ensinou seu ofício. A cidade ostenta dezenas de esculturas de sua autoria. Ele era autor da segunda versão do Curupira ribeirão-pretano. A primeira, desaparecida, era do artista plástico Antonio Palocci (pai do político homônimo).

Após trocas de mensagens e conversas por telefone entre Felipe e Thirso, o artista fez uma surpresa: ele havia esculpido uma nova imagem do Curupira. Era uma réplica da estátua do Parque do Curupira, de Ribeirão Preto.

Pegos de surpresa, Felipe e a turma do Museu fizeram uma vaquinha para pagar Thirso pela “encomenda” e trazer a nova imagem para a capital. O fato desta versão ter sido executada em fibra de vidro, portanto mais leve, reduziu a dificuldade para transportá-la. As instâncias governamentais não ajudaram muito, mas também não atrapalharam. Assim, o novo Curupira passou a integrar a paisagem do PEAL. Deste modo, em 21 de setembro de 2019, dia da árvore, o símbolo do protetor da biodiversidade das florestas paulistas voltou a ser representado na área externa do Parque.

A volta do Curupira ao Horto foi um dos eventos mais marcantes da Festa das Árvores, realizada ao longo daquele mês, e que foi uma iniciativa dessa turma em resgatar a tradição iniciada em 1902, quando aconteceu o primeiro evento do gênero no país, no município paulista de Araras.

Com uma nova estátua, os visitantes do Parque, inclusive os mais jovens, puderam criar novas memórias com o Curupira e estreitar suas relações com a natureza e com aqueles que vivem nela.

O fim?

Em 2021, Andrea Escórcio apresentou trabalho de conclusão de curso de bacharelado em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – Campus Guarulhos. Na monografia “Narrativas sobre o Curupira: povos originários, folclores e mercantilização da cultura” dedica um capítulo para contar a biografia do Curupira do PEAL.

Sobre o retorno da imagem do ente folclórico ao Parque, ela conclui que:

“esse não é o fim da “vida social” da estatueta. Podem ocorrer novamente depredações, roubos ou quem sabe uma nova tentativa de iconoclastia; algum movimento social pode criticar a utilização dessa estátua e o modo de representar o Curupira; uma nova gestão do parque pode querer remover a estátua e substituí-la por outro símbolo; uma árvore pode cair em cima do objeto e degradá-lo; enfim, uma obra em um espaço público parece estar sujeita aos mais variados tipos de intervenções.”

No primeiro semestre de 2022, a área do uso público do Parque foi concedida à iniciativa privada para que pudesse ser explorada economicamente. No primeiro dia em que a concessionária assumiu, foi avistado, em um dos lagos, um biguá com um anel de plástico preso entre o bico e o pescoço. A equipe do Museu tentou socorrê-lo. Foram atrás da Polícia Ambiental. De algum especialista em bichos. Já estava escurecendo. E estava tenso. Não conseguiam capturar a ave para libertá-la do lacre. Ela fugia a cada tentativa de aproximação. Morreria se continuasse daquele jeito. Nisso, um “carrinho de golfe” se aproximou. Nele, o recém gestor do Parque e um biólogo decorativo da empresa. Explicaram a eles a situação do animal. Ele deu “boa sorte” e foi embora. Não tivemos mais notícias do biguá. Provavelmente morreu em algum canto sem poder se alimentar.

Em outra ocasião, uma pessoa que se candidatou à vaga de monitor para trabalhar no parque contou que, durante a entrevista de emprego, com esse mesmo gestor indigesto, ele havia afirmado que os animais não eram problema deles.

Mesmo a empresa cagando para o meio ambiente, isso não impediu que ela captasse R$ 247 milhões em recursos financiados pelo Programa Fundo Clima do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um dos instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de garantir recursos para apoio a projetos ou estudos e financiamento de empreendimentos que tenham como objetivo a mitigação das mudanças climáticas.

A concessionária Urbia, ligada ao grupo Construcap, também administra o Parque do Ibirapuera, na Zona Sul da capital paulista, desde 2020. Em 2025, o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar a Prefeitura da capital e a empresa por uso e segregação de espaços públicos para fins particulares. A investigação apura o excesso de cobranças por serviços privados e a exposição de marcas dentro das áreas públicas. A exploração predatória fez com que a empresa transformasse o parque em um shopping center.

A situação no PEAL é ainda mais grave, pois, diferentemente do Ibirapuera, que é um parque urbano, trata-se de uma unidade de conservação da natureza da categoria de proteção integral. E não foram poucas as intervenções desastrosas da concessionária para tirar um troquinho em cima do patrimônio público: atentados ao meio ambiente, ao patrimônio histórico, à segurança dos visitantes e ao bom gosto.

Encheram de food trucks e de brinquedos típicos de parques de diversão. Meteram até um gramado sintético em um lugar onde anteriormente havia grama. Cortaram árvores a rodo e o bosqueamento de várias áreas do parque é visível. É frequente o som das motosserras e a serragem de espécimes de árvores mutiladas. Cobram fortunas para que as pessoas possam participar de atividades e eventos com música alta, o que perturba a fauna do parque. Instalaram uma série de painéis de led luminosos indutores de enxaqueca que, além de incomodar os bichos e quebrar qualquer conexão que os frequentadores possam estar querendo ter com a natureza, ao invés de servirem como suporte à comunicação do Parque com informações educativas, servem para a concessionária arrecadar dinheiro cedendo o espaço para propaganda das mais variadas, incluindo de bebidas alcóolicas e de sites de apostas.

Aparentemente, não há plano de contingência caso algum visitante seja picado por animal peçonhento, visto que ocorrem no parque espécies de importância médica, como jararacas e aranhas marrom e armadeira. No final de 2023, um jovem foi picado por uma serpente. De acordo com relatos de ex-funcionários da empresa, os primeiros socorros e o encaminhamento ao hospital foram realizados por uma enfermeira que, por sorte, passava pelo local. Não houve atuação alguma de equipe da concessionária.

Contrariando o plano de manejo, liberaram o uso de bicicletas por todo o parque, o que tira a paz dos caminhantes e resulta em alguns atropelamentos, de gente e de fauna. Já teve até uma pessoa que perdeu o controle da bike e caiu em um dos lagos, que por sinal está podre, já que passa esgoto por ali.

Em outro lago, também insalubre, para colocarem pedalinho e arrecadar mais um dinheirinho, arrancaram todas as ninfeias que tinham função ecológica, como filtrar a água e oferecer abrigo a espécies aquáticas de fauna, e faziam parte do paisagismo histórico do parque. Estavam lá há mais de cem anos.

A falta de apreço pela história também fez com que trocassem o telhado do casarão histórico outrora conhecido como Palácio de Verão do Governador. Nenhum órgão de conservação do patrimônio foi consultado. Simplesmente arrancaram as telhas portuguesas e trocaram por modelos do estilo romano. Também descaracterizaram as janelas do prédio da antiga Estação Vida, onde acontecia o baile da terceira idade e atualmente funciona como restaurante.

Segundo o plano de manejo do Parque, a área é tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) desde 1983. Em 1988, a área de entorno da unidade também foi tombada.

Já o edifício do Museu Florestal está caindo aos pedaços. Antes gratuito, agora há cobrança de ingresso. E parece que a concessionária não fez investimento algum no espaço. Pelo contrário. Não há posto de vigilância específico para o local. Sob a gestão estatal, o Museu contava com dois postos. Agora, apenas um indivíduo cuida de tudo sozinho: segurança, monitoria, limpeza, auto capacitação, cobrar ingresso… aliás, pra que pagar um técnico especializado em museologia se você pode deixar o acervo largado? A sorte é que o Condephaat iniciou o processo de tombamento de seu acervo pouco antes da entrega do espaço para a iniciativa privada. Sorte não. Articulação entre servidores públicos lotados no Museu e professores da Unifesp de Guarulhos.

Em 9 de julho de 2024, Thirso Cruz faleceu aos 86 anos em Ribeirão Preto. Em setembro do mesmo ano, uma senhora de 77 anos foi assassinada na ciclovia do arboreto da Vila Amália, uma área do Parque Estadual Alberto Löfgren sob gestão da concessionária. Em vez de aumentarem a segurança do local e melhorarem a infraestrutura de atendimento à população, apenas restringiram o acesso àquela parte do parque.

E o que será que o Curupira acha disso tudo? Em 2025, fomos consultá-lo e o encontramos depredado. Escalpelado. Sem o tampo da cabeça. A história se repete. Tragédia ou farsa?

Se o Curupira é um ser fantasioso, alguém explica como é que ele consegue nos ajudar tanto a abrirmos os olhos para a mais crua realidade. A ciência aponta uma série de espécies que são indicadoras de qualidade ambiental. Uma ciência bem feita pode mostrar que a sobrevivência de algumas lendas também.

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