Autismo: como tratamentos heterodoxos podem prejudicar os vulneráveis

[Este texto é uma tradução do artigo “Autism: how unorthodox treatments can exploit the vulnerable” de David Robert Grimes, publicado no The Guardian em 15 de julho de 2015.]

Tradução do Renato Pincelli do Hypercubic e revisão from yours truly Ana Arantes…

Adaptação de ambos, porque é pra isso que servem ozamigo!

 

Um diagnóstico de autismo pode tornar atraentes os tratamentos alternativos. Mas levar em conta evidências científicas é crucial – e pode salvar vidas.

 

 

Como regra geral, quanto mais desesperado e vulnerável você estiver, mais fácil vai ser explorá-lo com qualquer coisa, de conselhos financeiros a dicas de dieta. Um diagnóstico de uma doença incurável ou uma criança com um grave transtorno de desenvolvimento são circunstâncias nas quais muitas pessoas buscam soluções heterodoxas, seja como forma de obter alívio para o que aconteceu seja como tentativa de encontrar um tratamento que, embora ainda esteja fora do mainstream, possa trazer uma cura.

No entanto, alguns produtos ou técnicas não são apenas controversos: são potencialmente perigosos. Recentemente, na Irlanda, vários pais têm sido entrevistados pela polícia como parte de um inquérito aberto pela Health Products Regulatory Authority (tipo a Anvisa de lá). Estes pais são suspeitos de terem dado a seus filhos autistas uma substância chamada MMS. A MMS tem sido apresentada sob vários nomes, como Master Mineral Solution, Miracle Mineral Solution e Miracle Mineral Supplement.

A MMS é a menina dos olhos de Jim Humble, um ex-cientologista convertido em pregador de saúde, que se promove como arcebispo da Genesis II Church of Health (Igreja da Saúde Gênesis II). Já a MMS tem sido promovida como uma solução de cura e o site da igreja mostra testemunhos que a apresentam como medicamento eficaz contra uma gama de doenças – de autismo a Aids passando pelo câncer e a malária. Entretanto, uma simples análise química da MMS demonstra que não passa de um produto bastante mundano: é água sanitária.

Para ser mais específico, cerca de 28% da MMS é clorito de sódio (NaClO2), uma substância tóxica, que causa falência renal aguda. Mesmo a ingestão de um grama de NaClO2 pode causar náuseas, vômitos e, ocasionalmente, hemólise com risco de vida. Como se isso já não fosse ruim o bastante, os usuários de MMS são orientados a adicionar um agente acidificante – como ácido cítrico – e ingerir a mistura resultante. A reação de um ácido com o clorito de sódio gera o dióxido de cloro, um poderoso e tóxico agente alvejante. Naren Gunja, diretor do centro de informações sobre tóxicos de Nova Gales do Sul, na Austrália, diz que a ingestão de MMS é “meio que tomar um alvejante concentrado“. Os sintomas da ingestão tendem a ser consistentes com os acidentes com corrosivos: vômitos, dores de estômago violentas, diarreia e até falência respiratória, caso a mistura seja mal preparada. Tal substância surge como tratamento alternativo com uma regularidade deprimente, forçando alertas das autoridades de saúde do Canadá, do Reino Unido e de muitos outros países. Porém, para os seus defensores, toda essa toxidade é sinal de que o produto está funcionando. No caso da Irlanda, alega-se em pelo menos um relatório que a solução foi administrada por via oral a uma criança autista. Em outros casos, a aplicação foi por meio de enema retal.

 

Ilustração do artigo original do The Guardian.

 

Este caso levantou questões oportunas sobre os “tratamentos” que burlam as rígidas leis sobre intervenção médica na Europa e em outros lugares. Parte da razão é que a MMS e substâncias similares não são classificadas como medicamentos. No caso da MMS, a possibilidade de inspeção regulatória foi burlada pela venda como “purificador de água” – uma descrição válida de sua natureza química, mas não da aplicação pretendida, o que levou a Irish Health Productions Regulatory Authority a descrever os métodos dos promotores de MMS como “subterrâneos e heterodoxos“.

Claro que, oficialmente, as paquitas do MMS e a Gênesis II não vendem o produto, por razões legais. Em vez disso, eles o disponibilizam em troca de uma doação monetária como parte de um estilo de vida evangelizado, junto com folhetos sobre como usar a solução em um enema ou como preparar mamadeiras com a solução tóxica para adultos e crianças. Apesar desse distanciamento legal, a BBC obteve no mês passado imagens de câmera escondida de um promotor de MMS britânico (que é listado como fornecedor no site da igreja Gênesis II e que se apresenta como reverendo da igreja) vendendo MMS e indicando seu uso para uma criança com autismo. Tamanha é a preocupação sobre os efeitos do produto e seu apelo aos mais vulneráveis que funcionários da agência de comércio britânica recentemente participaram de um seminário em Surrey para garantir que nenhum MMS esteja à venda e para distribuir o parecer da Agência de Segurança Alimentar do Reino Unido.

A MMS, os seus fornecedores e a Igreja Gênesis II são apenas a ponta do iceberg – abaixo da linha d’água temos uma montanha de terapias duvidosas direcionadas a pessoas com autismo e suas famílias. Tais terapias tendem a oferecer uma razão para o problema e afirmam que sua invenção pode cortar o mal pela raiz. E é aí que mora o perigo, pois a questão da causa do autismo é um problema bastante aberto e muito complexo. Há consideráveis evidências para um forte influência de um determinante genético, mas não há qualquer indício de um único gene causador. Fatores ambientais também têm sido sugeridos, mas a evidência para estes é algo ambígua. A complexidade do transtorno combinada à ampla variedade de manifestações possíveis são indícios de uma condição complexa com uma matriz de variáveis modificantes. Portanto, mesmo que seja com a melhor das intenções, as terapias sem comprovação podem ter consequências arriscadas.

 

 

Assim, dada a incerteza em torno do autismo, há um monte de curandeiros prontos a preencher o vácuo com todos os tipos de curas milagrosas – e geralmente cobram caro. Tal preço não é apenas monetário, mas impõe uma ameaça à saúde física e mental de famílias vulneráveis. Apesar da plétora de opções cheias de marketing, até agora nenhuma delas teve sua eficácia comprovada por meio de testes clínicos ou ensaios técnicos. O avanço da moda do aconselhamento de suplementos vai de intervenções praticamente inofensivas – como dietas livres de glúten ou leite de camela integral – a ideias potencialmente perigosas como a MMS.

Em particular, uma teoria que teima em reaparecer é o terror que liga vacinas a autismo, surgido no começo dos anos 2000. Embora o pico do pânico já tenha passado (na Europa e nos EUA), nós ainda lutamos com as consequências do grande número de crianças que não foram imunizadas por causa do medo dos seus pais. Só em 2011 houve 26 mil casos de sarampo na Europa, incluindo 9 mortes e 7288 hospitalizações; no surto do País de Gales, em 2013, mais de 1200 foram infectados e houve pelo menos uma morte. No ano passado, o número de casos de sarampo no Reino Unido foi o mais alto em 20 anos e mesmo nos EUA, outrora livre de sarampo, temos visto um aumento nos casos, com 678 em 2014. Uma única pessoa infectada, ao visitar a Disneylândia esse ano causou pelo menos 150 casos da doença, levando as autoridades a notar que “a vacinação abaixo dos padrões obrigatórios é a provável causa do surto de sarampo de 2015“. Para piorar, a narrativa que liga a vacina tríplice viral ao autismo continua a abastecer as terapias heterodoxas para o autismo.

Um desses tipos de intervenção são as terapias de quelação, baseadas na crença de que as vacinas são de algum modo danosas e que podem ser “lavadas” com certas substâncias. Isso é muitas vezes associado à crença de que metais como o mercúrio (que pode estar presente em algumas vacinas) causam danos de “metais pesados” e as crianças que foram vacinadas precisam ser “limpas” – embora estudos científicos demonstrem que tais crenças são infundadas. Após a morte de uma criança, pesquisadores tem expressado preocupação com o uso da terapia de quelação. Embora se acredite que essa morte tenha ocorrido por erro na administração da terapia, um estudo de revisão da prática em crianças com autismo levou os autores do relatório a expressar sérias preocupações sobre a segurança dos métodos e das drogas utilizadas.

Uma variação proeminente da ligação vacina/autismo é a teoria defendida pelo ex-médico Mark Geier. Ele acredita que a testosterona liga-se ao mercúrio das vacinas para causar autismo – uma hipótese que já foi vigorosamente refutada por endocrinologistas de primeira linha. Ainda assim, Geier e seu filho, David, oferecem tratamento para neutralizar a interação de testosterona e mercúrio ao receitar Lupron para crianças autistas. Lupron é uma medicação tremendamente potente, que pode desligar a produção de hormônios, com sérios riscos de sequelas. Lupron é também usado para castrar quimicamente os estupradores.

Tais intervenções não eram apenas potencialmente sequelantes, mas caríssimas. Segundo reportagem do Chicago Tribune, o tratamento com Lupron custa os olhos da cara: 5 mil dólares por mês mais 12 mil dólares em exames. Mark Grier frequentemente tem aparecido como testemunha especialista em ações contra danos de vacinas, atestando o seu perigo – apesar de seu estudo mais citado ter sido considerado pela Academia Americana de Pediatria como cheio de “numerosas falhas conceituais e científicas, omissões de fatos, imprecisões e distorções.” Em 2013, foi revogada a última de suas licenças médicas nos EUA.

Outras terapias oferecidas para o autismo baseiam-se na ideia de que o autismo é um transtorno auto-imune, embora isso não tenha sido provado com certeza. Um tratamento popular é o fator ativador de macrófago derivado da proteína Gc do sistema modulador de imunidade* ou Gc-MAF, na sigla em inglês. Em 2008, os supostos resultados milagrosos dessa proteína no tratamento de câncer causaram uma onda de excitação, mas quando as evidências se mostraram dúbias, tais reivindicações foram retratadas. A ciência pode ser auto-corretiva, mas o mercado de medicamentos alternativos não tem esses escrúpulos. Mesmo sob as pesadas críticas de grupos que incluem o Cancer Research UK, tratamentos a base de Gc-MAF tem sido oferecidos para uma ampla variedade de doenças, incluindo autismo e câncer. Nada disso impede que pacientes em situação de vulnerabilidade tenham que pagar altos preços para serem prejudicados: na Suíça, a clínica First Immune oferece a terapia por cerca de 5 mil euros/semana. Sob suspeita de cinco mortes no ano passado, essa clínica está atualmente sob investigação e todos os seus equipamentos estão apreendidos. Infelizmente, a First Immune está longe de ser a única a oferecer tratamentos como o Gc-MAF, que não foram aprovados para uso clínico.

Então, se tais terapias são inefetivas no melhor dos casos e perigosíssimas no pior, por que continuam sendo tão populares e lucrativas? A crença ferrenha numa determinada teoria diante de evidências científicas conflitantes é um assunto de que já tratei anteriormente. Acusações de conspiração são comumente lançadas quando se expressa ceticismo científico sobre uma terapia: nós já vimos como a empresa de biotecnologia Immuno alegou que a quimioterapia é uma assassina ou quando a Alliance for Natural Health afirmou que a Medicine and Healthcare Products Regulatory Agency (MHRA ou Agência Regulatória de Produtos de Medicina e Saúde) é uma organização corrupta que põe pacientes em risco. Uma busca por “autismo” na Natural News imediatamente apresenta artigos que expõem uma imensa conspiração que envolve a indústria farmacêutica, seus reguladores e a mídia. Como já escrevi antes para este jornal, esses mitos não são nenhuma novidade e são facilmente desmascarados.

 

 

Há ainda outra razão, mais forte e mais triste, para que essas terapias continuem em alta, não importa quantos alertas façam os profissionais da saúde e da medicina. É porque elas trazem uma promessa de alívio. O autismo pode ser um transtorno desafiador, difícil de viver e conviver, pois muitas pessoas com autismo não têm as habilidades de comunicação que permitam uma vida independente. Isso pode ser estressante tanto para quem está no espectro quanto para os cuidadores, o que torna a promessa de uma cura milagrosa tentadora o bastante para assumir os riscos excepcionais e suspender o pensamento crítico.

Mas talvez o estigma do autismo seja apenas parte do problema. Líder do grupo Autistic Rights Together (ART), a ativista irlandesa Fiona O’Leary tem trabalhado para chamar a atenção sobre as atividades da Igreja Gênesis II. Fiona está no espectro autista e tem duas crianças autistas. A visão negativa que muitos têm daqueles que são neurologicamente atípicos é algo que ela mesma explica diretamente: “…a contínua retórica negativa e a desinformação dos pais, que foram convencidos a grandes movimentos anti-vacinação, consideram o autismo uma doença adquirida e veem suas crianças como tóxicas, poluídas. Eu acredito que o verdadeiro problema é a aceitação.

Para a ART, proteger famílias vulneráveis de tratamentos sem comprovação e potencialmente perigosos é uma prioridade. Para isso, a ONG está pressionando por mudanças na legislação de modo a prevenir que operadores dúbios explorem as brechas das leis. Dado o escopo internacional do problema, essa é uma tarefa desafiadora, talvez digna de Sísifo. A realidade deprimente é que enquanto houver pessoas desesperadas haverá alguém pronto a explorá-las, derrubando o que é cientificamente provado para dar espaço a substitutivos tão dúbios quanto ficcionais.

* “immune system-modulating protein Gc protein-derived macrophage activating factor

Sobre o autor:

Dr David Robert Grimes é médico e desenvolve pesquisas sobre câncer na Universidade de Oxford. Foi vencedor do Prêmio John Maddox em 2014. Ele é colunista e bloga regularmente no Irish Times em: www.davidrobertgrimes.com.

Twitter: @drg1985