Direito e economia: relações, importância e sugestões para pesquisa

Créditos: Photo by Deniz Altindas on Unsplash. Legenda: Equilibrar a pluralidade de interesses divergentes em direção a uma sociedade mais inclusiva e igualitária de maneira pacífica depende do diálogo profundo entre direto e economia (Fábio Pádua dos Santos)

Por Fábio Pádua dos Santos*

Há especial interesse dos estudantes de direito em compreender melhor a relação entre direito e economia. Este pequeno texto explora essa relação. Indica também a importância de estabelecer um diálogo construtivo entre esses dois campos do saber, bem como aponta diferentes caminhos investigativos para jovens pesquisadores. Por fim, o texto assinala alguns desafios contemporâneos em que direito e economia, trabalhando em conjunto, podem se constituir em poderosa tecnologia social.

Relação entre direito e economia

A relação entre direito e economia é tão antiga quanto a vida em comunidade. Para compreender esta relação, suponha, temporariamente, que o Direito consiste em uma técnica social que visa sistematizar um conjunto de regras que têm por objetivo regular o comportamento entre indivíduos.i Suponha, por outro lado, que a economia se refere à capacidade humana em transformar seu meio ao se apropriar da natureza para produzir e distribuir os meios de vida necessários à existência dos indivíduos em comunidade.ii Direito e economia se referem, portanto, a duas dimensões distintas, porém complementares, da vida social: a dimensão da produção das normas consideradas socialmente justas e da produção e gestão da riqueza.

Atualmente, quando se fala em justiça e riqueza, geralmente se faz referência ao ideal europeu moderno de sociedade, onde justa seria aquela comunidade em que os indivíduos não se encontrariam sujeitos a qualquer mecanismo de opressão, sendo livres para instituir uma ordem social a partir de uma ética secular na qual o ganho pecuniário deixa de ser imoral. Este debate, muito marcante nos séculos XVII e XVIII na filosofia política clássica, se apresentou como problemática da instituição e da regulação do social, ou, mais precisamente, como transição do estado de natureza para a sociedade civil.iii Durante o período do Antigo Regime, a instituição de sociedades abertas envolvia não apenas deslocar a fonte de autoridade social da nobreza e da igreja para todos os membros da comunidade como também criar instituições capazes de encaminhar de maneira pacífica a pluralidade de interesses divergentes. Hobbes, Locke e Rousseau acreditavam que a partir da dimensão política, com base em um ordenamento jurídico racional, seria possível fazer convergir os distintos interesses privados em direção ao interesse público. As guerras civis e interestatais revelaram, na verdade, a incapacidade da política em prover a harmonia social. É dentro deste debate que se pode considerar, por exemplo, as contribuições da economia política clássica, em especial de Adam Smith.

Smith acreditava que o fundamento do pacto social deveriam ser as necessidades materiais, ao invés do desejo de conservar a vida (Hobbes), a propriedade (Locke) ou a liberdade (Rousseau). Em sua visão, isso permitiria um tipo de integração social em que a regulação da sociedade se daria através de um mecanismo impessoal de dominação: o mercado. O mercado na visão de Smith seria capaz de coordenar de maneira pacífica as deliberações pessoais, estimulando não só o aperfeiçoamento do talento individual (portanto, o aprofundamento da divisão do trabalho e os ganhos de produtividade decorrentes da especialização social e técnica), mas sobretudo retribuindo os esforços individuas de maneira equitativa. Ao propor o mercado como mecanismo de regulação social, Smith ofereceu uma resposta viável para o problema da paz civil e da paz entre as nações ao dissolver o conceito de guerra no conceito de concorrência. Isto não significava negar a importância do político, mas tão somente complementá-lo. Nessa visão, a economia de mercado se apresenta com o espaço para o exercício privado da liberdade.

A relevância do diálogo entre direto e economia

O diálogo entre direto e economia é relevante porque nele se expressam nitidamente os limites estruturais das sociedades modernas. Por exemplo, aqueles que prometem o reino da liberdade através do aprofundamento da economia de mercado dependem do sistema jurídico para exercer a dominação social, muitas vezes como contra-mercadoiv, gozando do privilégio do monopólio ou extraindo vantagens das múltiplas formas de desigualdade inerentes à condição humana. Por outro lado, aqueles que não se sentem à vontade com a modernidade da liberdade ou com a modernidade tecnológica recorrem ao direito de inclusão para promover um horizonte de expectativa pacífico, não autoritário, igualitário e integrado à natureza.

Caso essas duas posições sejam colocadas em perspectiva à luz da problemática da instituição e da regulação social, a tensão entre meios e fins emerge como uma escolha histórica entre reformar o modo de vida contemporâneo ou rejeitá-lo. No primeiro caso, elevar a eficiência da norma corresponde a aprofundar e a aperfeiçoar a economia de mercado como mecanismos de regulação social, expondo ainda mais os indivíduos à lei do valor. Ou, no segundo caso, propor novas normas mais inclusivas que visam equacionar injustiças sociais e ambientais reabre as discussões em torno dos fundamentos do pacto social contemporâneo, em especial sobre as formas de organização do poder e sobre a capacidade dos Estados nacionais seguirem internalizando os custos da modernização capitalista.

Independente de qual escolha social será tomada, a mudança é inevitável.

Problemáticas e caminhos de pesquisa

Se as mudanças são inevitáveis, as problemáticas e os caminhos de pesquisa dependem da percepção de justiça e de riqueza compartilhada pelo sujeito do conhecimento face às alternativas históricas.

No campo dos defensores da modernidade tecnológica e da modernidade da liberdade, que nas ciências econômicas se expressa majoritariamente no paradigma neoclássico e em alguns de seus críticos, as problemáticas de pesquisa concentram-se majoritariamente no efeito da norma sobre o bem-estar social (ótimo de Pareto)v. Investiga-se, por exemplo, até que ponto nomas existente ou editadas para impor valores alteram as disposições individuais e, por consequência, resultam em inequidades. Outra linha de pesquisa reconhece a falácia da capacidade autorregulatória dos mercados e investiga como aplicar a norma para corrigir as injustiças que afastam a sociedade do bem-estar social. Há uma terceira linha de pesquisa que investiga como as normas estruturam arranjos institucionais sobre os quais se apoiam contratos e mercados. Neste caminho, é buscada a construção de um arcabouço legal capaz de convergir interesses privados e público. Ou ainda, até que ponto sistemas legais promovem ou restringem a empatia e a adaptabilidade necessárias ao jogo dinâmico de sociedades competitivas. Uma quarta possibilidade de pesquisa refere-se à evolução da própria norma como resultado das transformações da economia de mercado tanto no sentido de explorar as oportunidades de ganho derivados das economias de escala quanto de restringir o poder discricionário de atores relevantes como governos e grandes empresas. Finalmente, existe ainda as questões do retrocesso e do aprendizado social da norma. Em todos esses casos, embora tenha algo a dizer, a pesquisa econômica não está apta a avaliar o nascimento de normas intrinsecamente valorativas que refletem o fundamento moral da sociedade. Neste passo, a pesquisa em direito tem muito a ensinar aos economistas sobre os determinantes das normas, em especial sobre os aspectos que escapam à racionalidade instrumental que ordena a economia de mercado como mecanismo impessoal de dominação.vi

Por outro lado, as problemáticas de pesquisa em direto e economia que levam adiante a crítica do estado do mundo contemporâneo, se apresentam de maneira difusa e tendem a privilegiar estudos sobre desigualdades. A revelação de injustiças estruturais como racismo, sexismo, xenofobia, dentre outros, são importantes porque repõe atualmente a problemática da instituição do social. Por este caminho, o estabelecimento de um programa de pesquisa mais inclusivo e mais igualitário requer:

  1. Reconhecer todas as denúncias contra o caráter progressista da modernidade como injustiças que não encontram soluções estruturais nos quadros da civilização capitalistas.vii

  2. Superar a confusão entre prática profissional e elaboração teórica presente nas ciências jurídicas no Brasil, convertendo a dogmática em domínio científico.viii

  3. Recuperar uma definição substantiva de economia em que o lucro trabalhe para a vida e não a vida a favor do lucro.ix

  4. Ampliar o debate sobre o que é bem-estar social para além da alocação eficiente, incluindo, por exemplo, concepções multidimensionais do desenvolvimento;x

  5. Superar o isolamento do direito em relação das demais ciências sociais. (cf. Nobre)xi

Estudos feministas, raciais, orientalista, ambientalistas, por exemplo, hoje presentes em diferentes domínios científicos, abrem inúmeras questões que não encontram lugar de fala na tradição canônica do direito nem na economia política clássica dos séculos XVII e XVIII. O pensamento social do século XIX também se revelou frustrante. As ciências sociais em busca da verdade se distanciaram do bom e do belo reafirmando o eurocentrismo iluminista ao pressupor um tipo de indivíduo racional que não respeita a diversidade humana nem a natureza. Quando o não-europeu resistia a incorporação voluntária à civilização capitalista, ele era forçado a um violento processo de assimilação cultural em nome do progresso e do desenvolvimento.xii Nesse caminho de pesquisa, o diálogo construtivo entre direito e economia requer a superação do véu que encobre os povos excluídos, sejam aqueles que não possuem oportunidades dentro das desigualdades do sistema social atual, sejam aqueles que rejeitam o modo de vida capitalista e exigem o direto de se manter resguardados em seus territórios à margem da economia de mercado (e.g. os povos indígenas).

Aproximando direito e economia

Independente do caminho, da afirmação ou negação da modernização capitalista, a tarefa é imensa e requer um esforço coletivo de reflexão. Para aproximar o direito da economia é preciso, em primeiro lugar, reestabelecer e expandir o elo perdido entre a filosofia política clássica e a crítica da economia política clássica à luz dos desafios contemporâneos. Superar as distintas formas de preconceitos que constituem o sistema normativo vigente e favorecem a manutenção de sociedades hierárquicas requer coragem e, sobretudo, prudência.

Em segundo lugar, é preciso reconhecer as profecias não cumpridas da modernidade como limites estruturais do modo de vida capitalista em prover uma vida digna a todos os povos. Esse reconhecimento só será possível quando forem colocados em perspectiva os dilemas: liberdade-alienação; igualdade-exploração; e fraternidade-violência. A subjetivação da dominação proposta pelo neoliberalismo como saída da crise contemporânea tem levado, na prática, à escalada da violência, da intolerância e a um capitalismo cada vez mais vigilante.xiii There is no alternative não é o único caminho.

As liberdades individuais como conquistas históricas da humanidade contra as diferentes formas de opressão e o mercado como mecanismo de coordenação da livre iniciativa, quando não encapsulados pelo capitalismo, no sentido braudeliano, revelaram-se instrumentos poderosos contra monopólios sociais. É muito difícil imaginar um futuro no qual as liberdades instrumentais e o mercado não estarão presentes. Como reconstruir o controle social sobre a vida econômica sem retornar a regimes de governo totalitários é um grande desafio posto ao direito e à economia. Pensar e implementar novas formas de integração solidárias (não competitivas) que preservem as conquistas das liberdades e ao mesmo tempo estabeleçam uma nova relação harmônica entre homem/máquina/natureza requer novos sujeitos e novos normativos que não sejam as projeções do universalismo europeu. Descolonizar as ciências jurídicas e econômicas se faz hoje um passo necessário.

* Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC. E-mail: fpadua@gmail.com

i Para uma discussão sobre as diferentes concepções de direito, ver: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp.278-288.

ii Para uma compreensão sobre o econômico e os diferentes conceitos de economia ver: POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2012.

iii Uma boa síntese desse debate encontra-se em ROSANVALLON, Pierre. O Liberalismo Econômico: história da idéia de mercado. Bauru, SP: Edusc, 2002.

iv Muito sugestiva é a percepção do historiado francês, Fernand Braudel, para quem “o capitalismo só triunfa quando se identifica com o estado, quando é o estado” Para mais detalhes ver: BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 83.

v O conceito econômico de bem-estar foi introduzido pelo italiano Vilfredo Pareto (1848-1923) e refere-se, intuitivamente, àquela situação em que a melhora individual só pode ocorrer com prejuízo a outro agente econômico qualquer.

vi Para mais detalhes sobre a análise econômica do direito à luz do paradigma neoclássico ver, por exemplo, ARIDA, Pérsio. A pesquisa em Direito e em Economia: em torno da historicidade da norma. In: ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel. (Orgs.) Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

vii Ver, por exemplo, WALLERSTEIN, Immanuel Maurice. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 2001.

viii Cf. NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em direito no Brasil. In: Cadernos Direito GV, v. 1, n. 1, 2005.

ix Cf. POLANY, op. cit.

x Para uma crítica à formulação neoclássica de bem-estar social ver SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010.

xi Cf. NOBRE, op. cit.

xii DUSSEL, Enrique. 1492 o encobrimento do outro: a origem do “mito da modernidade”. Petrópolis: Vozes, 1993.

xiii Cf. FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

 

 

4 Comentários

    • Obrigado, Mateus. Por dois anos dei aula de Economia Política para a primeira fase do Curso de Direito da UFSC. Este texto resume um pouco a discussão proposta aos estudantes.

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