O valor da Constituição

Por: Victor Augusto Ferraz Young

A crise social, política e econômica que se vive na atualidade em diversos países tem colocado em questão a viabilidade do Estado Social Democrático de Direito, ou seja, a ideia de que as sociedades devem persistir em sua tentativa de fazer com que todos vivam sob regras (da Constituição e das leis) criadas por esta mesma sociedade, mesmo em meio a todas as dificuldades que esse processo acarreta. A alternativa que vem sendo reiteradamente proposta por parte da sociedade a este caminho é, a nosso ver, muito arriscada e perigosa, pois baseia-se na concepção de que poderes acima de tais leis deveriam ser concedidos a um único grupo liderado por uma figura carismática que, em tese, superaria as dificuldades inerentes ao lento processo democrático. Espera-se com isso que as decisões políticas sejam mais rápidas e que o progresso econômico chegue mais cedo. O risco está justamente na entrega de poderes que estariam acima da lei produzida de forma representativa, pois a partir desse ponto pode surgir um antigo conhecido da história humana, a tirania. Foi justamente para impedir o risco de que esta prevalecesse que se criou o Estado de Direito que, ao logo do tempo, progrediria para o Estado Social Democrático de Direito.

Estado de Direito e a Constituição

Surgido sob a égide dos ideais iluministas, e principalmente após a revoluções liberais do século XVIII nos Estados Unidos e na Europa, a concepção de um Estado de Direito ocorreu em oposição ao então Estado Nacional Monárquico Absolutista. Ou seja, não haveria mais nenhum rei que encarnasse poder político absoluto sobre todos os outros cidadãos. Depois de sangrentas lutas revolucionárias, o Estado de Direito foi instituído em prol dos direitos e das liberdades individuais, em contraposição à arbitrariedade real, constituindo assim mecanismos para a proteção e perpetuação destes direitos e liberdades sem que para isso fosse necessária a abolição do Estado.

O Estado de Direito com todo seu aparato subordina-se, dessa maneira, a uma lei superior, chamada de Constituição, que define direitos e garantias individuais, ou seja, trata-se de uma lei maior que protege esses direitos e garantias e está acima de qualquer arbitrariedade do próprio Estado. Este mesmo Estado deve limitar sua ação a apenas aquilo que é permitido pela Constituição. Esta vinculação do Estado à Lei Maior [Constituição] exige que sejam respeitados elementos como a supremacia da Constituição, a separação dos poderes, a superioridade das leis e a garantia dos direitos individuais.

Dessa forma, a Constituição é a regra suprema, pois ela define os agentes (representantes) que farão as leis; estabelece como as leis devem ser feitas (processo legislativo); e baliza os limites de todas essas leis que são subalternas a ela. Caso uma lei inconstitucional, isto é, que não está de acordo com a Constituição, venha a ser aprovada (e promulgada), mecanismos de controle estabelecidos dentro da própria Constituição devem dar conta de expulsá-la do conjunto restante de leis (ordenamento jurídico). A Constituição, por seu turno, não é criada por nenhum dos poderes que delega, mas por um poder constituinte que assim o é dada sua força para fazer valer a regra para todos. Este poder de criação, geralmente constituído para a elaboração do texto, por fim, dissolve-se tão logo é promulgada a Lei Magna. O Estado de Direito e suas instituições emergem, portanto, depois de promulgada a Constituição. No Brasil, uma Assembleia Constituinte foi eleita para a confecção e promulgação da Constituição Federal de 1988.

A Separação dos Poderes

A separação dos poderes que deve, por sua vez, ser definida pela Constituição se faz necessária em função de o Estado necessitar de mecanismos de auto regulação que mantenham sua atuação dentro dos limites estabelecidos pela regra constitucional. De um modo geral, o poder do Estado fica, dessa forma, dividido em: Poder Executivo, que administra os negócios do Estado por meio de atos administrativos; Poder Legislativo, que cria as leis para a condução dos negócios do Estado e o regramento do convívio social; e Poder Judiciário, que julga os conflitos que podem ocorrer dentro do Estado, entre indivíduos e entre este e os indivíduos de maneira imparcial e mediante provocação. Os três poderes têm independência no exercício de suas funções. Os atos administrativos do Executivo e as leis emanadas do Legislativo submetem-se, todavia, à apreciação constitucional do Judiciário, ou seja, podem estar sujeitos a uma sentença que irá legitimar ou anular os atos daqueles poderes conforme dita a Constituição. O Estado de Direito busca, dessa maneira, autorregular-se, isto é, o Poder Judiciário não administra os negócios estatais, assim como não produz as leis, mas zela pela formação e pelo cumprimento dessas leis, assim como aprecia atos administrativos que possam ser ilegais. Por meio deste mecanismo de divisão de poderes, nenhum poder usurpa âmbito alheio, conduzindo a ação do Estado à submissão constitucional.

A superioridade da lei e a garantia dos direitos individuais

Outro elemento fundamental dentro do Estado de Direito é a ideia de que todos os entes estatais e não estatais estão sujeitos à superioridade da lei. No que se refere especificamente ao Estado, a lei, como expressão da vontade geral do povo, concede aos agentes do Estado poderes para que as funções do Governo, do Legislativo e da Judiciário sejam cumpridas por estes sob o império daquela.

A garantia dos direitos individuais estabelecidos pela Constituição é também elemento que compõe o Estado de Direito. Resulta dela o direito subjetivo público que vai além do direito subjetivo privado, ou seja, o indivíduo não só pode reclamar direitos frente a outros indivíduos, mas pode também opor-se ao Estado, caso este venha a violar suas garantias constitucionais.

Estado Democrático de Direito e Estado Social Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito, de outra maneira, vai além do Estado de Direito, ampliando o âmbito jurídico para a conformação de um Estado que tenha por objetivo a promoção da justiça e da igualdade entre seus cidadãos, pois além dos elementos do Estado de Direito, no Estado Democrático de Direito tem como premissa a participação efetiva do povo no exercício do poder. Para tanto, valida-se o conceito republicano de agente público eleito como representante do povo para o exercício do poder que este lhe concede. Dessa forma, representantes legislativos e executivos são escolhidos por um processo eleitoral para mandatos periódicos que podem ou não ser renovados conforme a própria vontade popular. Estes mandatários eleitos podem ainda ser responsabilizados e impedidos do exercício das funções, caso violem as prerrogativas que lhes são concedidas. Neste Estado, é, portanto, fundamental o clima de liberdade política para o debate social, a escolha e/ou impedimento dos eleitos.

Em período mais recente, novas Constituições têm contemplado um modelo de Estado ainda mais elaborado no sentido de estender novas proteções aos cidadãos. Trata-se do Estado Social Democrático de Direito, isto é, um Estado que não só visa garantir os direitos individuais, a participação popular no poder, mas também proteger o povo do poder e/ou do desamparo econômicos. Neste, a Constituição pode regular as relações econômicas como contratos entre empregados e empregadores, assim como estabelecer que sejam garantidos direitos sociais como educação, saúde, previdência, seguro desemprego, entre outros elementos que protejam a dignidade humana.

Concluindo

Podemos considerar, portanto, que a ideia de um Estado Nacional definido e constituído pelo povo tem nos desdobramentos históricos das concepções de Estado de Direito até a de Estado Social Democrático de Direito uma determinada evolução em que, a cada período de tempo, além de estabelecerem-se mecanismos para a garantia dos direitos individuais, agregou-se às Constituições maior proteção às sociedades, buscando torná-las e mantê-las mais livres, justas e igualitárias.

Todo este aparato foi constituído com base na experiência política humana, tendo como primeiro impulso a ideia de se evitar a tirania. Fazer com que funcione para que cumpra os propósitos virtuosos aqui expostos é uma construção social de cada povo, pois não é difícil perceber que as experiências de mera transplantação desse constructo para dentro de outros países não faz com que o resultado seja sempre positivo. Dessa forma, o Estado Social Democrático de Direito não é solução pronta para as aflições humanas, mas é, sem dúvida, um caminho melhor e contrário ao de aventuras que podem levar a terríveis ditaduras.

Referências

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. Malheiros, 2004.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*