A revolução cubana e a busca pela soberania nacional

Foto: Havana, Cuba em 2018. Imagem de domínio público.

Por Filipe Silveira Farhat*.

Desde a segunda metade do século XIX, os conceitos de nacionalismo e patriotismo e os ideais morais a estes vinculados formam parte significativa do perfil de identidade da população cubana. As diversas guerras de Independência contra a coroa espanhola, nas quais houveram enormes sacrifícios, lutas, e privações materiais em nome dos valores de soberania nacional, autonomia, autodeterminação dos destinos da pátria e justiça social, tornaram enraizado nas gerações de cubanos do século XX o desejo de ruptura com uma ordem político-institucional incapaz de atender aos anseios populares. O apoio generalizado de ao menos frações de todas as classes sociais às lideranças revolucionárias que derrubaram o governo Batista e iniciaram as vitórias da militância guerrilheira na década de 1950 estava fortemente influenciado pelas ideias do intelectual e fundador do Partido Revolucionário Cubano José Martí. Deve-se ter em conta que o nacionalismo liberal radical de Martí refletia as aspirações mais profundas dos cubanos em função do processo histórico de subjugação da sociedade pela dominação colonial espanhola no século XIX, gradualmente substituído pela dominação indireta imperialista estadunidense, que avançava ao longo deste século à medida que os EUA se consolidavam como uma das potências capitalistas hegemônicas.

A Revolução Cubana de 1959 se inseriu em uma conjuntura de disputa entre os EUA e a URSS pela hegemonia política global e difusão da forma de organização de dois modelos socioeconômicos antagônicos. A competição entre as duas superpotências se deu de modo bastante desequilibrado, dada a ampla superioridade econômica e militar do bloco dos países capitalistas em relação aos socialistas.

O sucesso da Revolução em Cuba responde à diferente situação política em relação aos demais países da América Latina enfrentada pela ilha em fins dos anos 1950. Apesar de diversos países latino-americanos terem enfrentado regimes ditatoriais repressores e corruptos ao longo do período de Guerra Fria, o governo de Batista deve ser diferenciado dos demais. No caso cubano, a execução do poder pelos militares não incorporou bandeiras reivindicadas pelas classes média urbana e pela burguesia. Desta feita, o isolacionismo e personalismo dos objetivos buscados pelo líder maior do Estado (bem como a percepção social de que vigorava um elevado nível de corrupção) possibilitaram que as lideranças revolucionárias guerrilheiras aglutinassem setores de todas as classes sociais na oposição. A Revolução Cubana, portanto, extrapolou a aliança clássica de outros processos revolucionários que juntavam camponeses e intelectuais, ao agregar também a pequena burguesia, a classe média urbana e o proletariado, a oposição partidária institucionalizada, e parte dos setores militares e do clero. (Dix, 1984)

O amplo apoio popular à Revolução permitiu enorme militarização das massas trabalhadoras do país, nos mais diversos níveis de classe, renda, e área de trabalho. A aproximação com a URSS na primeira metade dos anos 1960 permitiu que as novas forças do exército revolucionário pudessem contar com adequados recursos materiais e treinamento naquele país. Sendo assim, o desenvolvimento econômico do país sofreu forte influência negativa da ofensiva dos EUA, dada a necessidade de dispender quantidade significativa de recursos na esfera militar. (Landau, 1989)

As relações de Cuba com a URSS e os países europeus integrantes do COMECON (Conselho para Assistência Econômica Mútua) possibilitou uma alternativa de desenvolvimento baseada em vantagens mútuas, maior estabilidade nas transações comerciais e no esforço de planejamento conjunto de médio e longo prazo do setor público da ilha com os demais países da organização. Assim, Cuba assegurou mercado consumidor para sua produção açucareira nos países socialistas após o bloqueio imposto pelos EUA em resposta à Revolução. O setor industrial do país avançou com importação de máquinas e equipamentos soviéticos e assistência técnica prestada pela URSS com o objetivo de capacitar mão-de-obra especializada em Cuba, visando relações comerciais de longo prazo complementares. As relações com a COMECON possibilitaram maior soberania econômica nacional, condições favoráveis ao crescimento do setor energético, e importação de máquinas, equipamentos, e matérias-primas em condição vantajosa. (Fedoseiev, Grigulevitch, Maiorov, 1985)

Pelo contexto histórico em que ocorreu, ou seja, dada a forte ameaça americana, tanto em função da nacionalização de suas empresas pelo governo cubano quanto pelos desdobramentos globais da Guerra Fria, a Revolução Cubana rapidamente passou de um estágio nacional-popular para a construção de um modelo socialista centralizado, fortemente influenciado por aquele vigente na União Soviética.

Em todo o período em que a economia cubana esteve integrada ao mundo socialista no contexto da Guerra Fria, debates acerca do maior ou menor papel dos mercados na economia e da melhor estratégia de integração comercial e financeira internacional foram elemento fundamental das decisões de política adotadas. Assim, ao estudar a experiência cubana, nota-se a flexibilidade do sistema socialista e as diversas possibilidades de manipulação de sua institucionalidade no enfrentamento das diversas conjunturas domésticas e mundiais que atravessaram a construção histórica do caminho de desenvolvimento adotado em Cuba.

A drástica redução das relações comerciais e financeiras com os países que integravam a URSS(decorrente de sua dissolução) e a aproximação com a Venezuela (bem como a crise enfrentada por este país), em conjunto com as recentes reformas pró-mercado, modificaram substancialmente a estrutura da economia cubana, colocando novos desafios para o futuro próximo do país. A reinserção externa de Cuba após a dissolução das repúblicas soviéticas, em 1991, dificultou enormemente a capacidade de financiamento do país, impedindo-o de importar os bens de capital e intermediários necessários à continuação de seu desenvolvimento material.

Um dos principais desafios em Cuba, atualmente, está em conciliar as conquistas sociais, econômicas, culturais e políticas do período de transformações dos 60 anos de Revolução com uma estrutura produtiva de maior dinamismo tecnológico e produtividade, que permita a continuação da busca por autonomia e soberania nacional que caracteriza este sistema socioeconômico desde 1959.

Referências

DIX, R. H.; Why Revolutions Succeed & Fail. Polity, Vol. 16 No. 3, pp. 423-446, Spring, 1984.

FEDOSEIEV, P.; GRIGULEVITCH, I.; MAIOROV, E. (org.); A Cooperação da URSS com os países em desenvolvimento. Moscovo: Academia das Ciências da URSS, 1985.

LANDAU, S.; Notes on the Cuban Revolution. The Socialist Register, 1989

* Filipe Silveira Farhat é graduado em Ciências Econômicas pela UFPR e mestre na mesma área pela Unicamp. Este texto é baseado na sua dissertação de mestrado, que tem como título O sistema socioeconômico cubano (1959-2018): concepção, evolução e situação atual e que pode ser acessada aqui.

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