A inflação no Brasil durante a segunda metade do século XX

Inflação. Cédulas (não tão) antigas de dinheiro brasileiro. Créditos: Márcio Cabral de Moura. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mcdemoura/475571829

Por: Ulisses Rubio Urbano da Silva e Leonardo Dias Nunes

O dinheiro só tem importância pelo que proporciona. Assim, não tem consequências uma alteração da unidade monetária que seja uniforme em seu funcionamento, e que influa igualmente sobre todas as transações. Se, por uma mudança do padrão de valor estabelecido, uma pessoa passa a receber ou ter o dobro do que antes, em pagamento de todos os seus direitos e esforços, e se também passa a pagar o dobro por todas as suas aquisições e satisfações, ela em nada será afetada. Segue-se, portanto, que uma mudança no valor da moeda, ou seja, no nível de preços, só tem importância para a sociedade na medida em que sua incidência seja desigual.

John Maynard Keynes – 1923.

Introdução

Ao escrever o artigo “Consequências sociais da desvalorização do valor da moeda na sociedade”, J. M. Keynes1 argumentou que a inflação era um fenômeno socialmente relevante na medida em que impactava as classes sociais de diferentes formas. O autor argumentava que, caso ocorresse um aumento dos preços na mesma dimensão para todos os produtos da economia, se observaria apenas uma variação nominal destes preços. Como não é isso o que de fato ocorre, sempre que existe um processo inflacionário na economia, também ocorre a concentração de renda.

Inflação de demanda e de custos

Em geral, os manuais de economia apresentam a existência de dois tipos de inflação: a de demanda e a de custos. A inflação de demanda pode ser definida como sendo um excesso de demanda agregada em relação à produção disponível de bens e serviços (este tipo de inflação recebeu atenção especial em um artigo anterior deste blog). Já a inflação de custos pode ser associada à inflação de oferta. Neste tipo de inflação, o nível de demanda tende a se manter igual, entretanto, com o aumento dos custos de certos insumos, há um repasse deles aos produtos finais e, consequentemente, aos consumidores. Exemplo disto ocorreu ao longo dos anos 1970, especialmente ao final desta década e no início dos anos 1980, quando houve um expressivo aumento dos preços do petróleo e das taxas de juros.

Além destes dois tipos de inflação, podem ser encontrados em manuais e também em referências especializadas a inflação estrutural e a inercial2.

Inflação estrutural

De acordo com Octavio Rodriguez3 , o enfoque estruturalista da inflação encontra-se em diversos trabalhos publicados entre 1950 e 1965 que tinham por objetivo construir uma ferramenta teórica para a compreensão do processo inflacionário que ocorria em países da América Latina, tais como Argentina, Brasil e México (o Gráfico 1 mostra a inflação neste período para o município de São Paulo). Argumentava-se que o traço comum dos processos inflacionários latinoamericanos era a existência de desequilíbrios existentes na esfera produtiva do sistema econômico, especialmente nos gargalos que limitavam os setores externo e agrícola. Este enfoque foi denominado estruturalista, pois colocava em primeiro plano as características da estrutura produtiva das economias da América Latina, diferentemente do enfoque monetarista, que focava nas características da gestão da política monetária. Posteriormente, o adjetivo estruturalista também ficou ligado às análises de longo prazo realizadas pelos integrantes da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal.

Elaboração própria. Fonte: IPEADATA – Índice de Preços ao Consumidor do Município de São Paulo. Este índice foi escolhido por ter uma série histórica mais longa e por apresentar tendências muito próximas ao IPCA, como é mostrado no Gráfico 4.

No período histórico citado acima, ocorria um intenso processo de desenvolvimento capitalista no Brasil que se realizava através do processo de industrialização por substituição de importações. Este desenvolvimento, como é sabido, ocorria juntamente com um processo inflacionário. Para tentar controlar este problema, após o Golpe de 1964, os gestores da política econômica criaram a correção monetária de ativos financeiros estratégicos para que fossem mantidas as condições de investimento e de reprodução do capital4. À época, este instrumento de política econômica foi entendido como uma contribuição brasileira à teoria econômica, pois criava condições de convivência entre o crescimento econômico e uma inflação que se mantinha controlada. Entretanto, o uso generalizado deste instrumento fez com que aumentasse a quantidade de produtos e serviços indexados à correção monetária. Consequentemente, a economia brasileira ia se tornando indexada à correção monetária. Sobre este tema, João Paulo dos Reis Velloso, ministro do planejamento do regime militar entre os anos 1969 e 1979, afirmava que

Um dos grandes problemas do Brasil a partir de então foi a indexação generalizada. Ou seja, aquela sementinha da correção monetária, que parecia inocente quando criada em 1964, passou a ter uso geral e chegamos a um altíssimo grau de indexação, com forte impacto sobre a inflação” 5.

De acordo com Lacerda (2018)6 [6], ao longo dos anos, a correção monetária tornou-se “um dos principais indexadores de contratos da economia brasileira, até a sua extinção pelo Plano Cruzado em fevereiro de 1986”. Assim, quando se discute a inflação inercial, se discute também as consequências do uso generalizado deste indexador na economia nacional. 

Inflação Inercial

Durante os anos 1980 o Brasil passou por um intenso processo de inflação, o qual seria superado a partir de meados dos anos 1990, com a implementação do Plano Real (o Gráfico 2 permite visualizar a magnitude da inflação na década de 1980 quando comparada com os períodos anterior e posterior; o Gráfico 3 apresenta a inflação apenas durante o período da inflação inercial).

Elaboração própria. Fonte: IPEADATA – Índice de Preços ao Consumidor do Município de São Paulo.
Elaboração própria. Fonte: IPEADATA – Índice de Preços ao Consumidor do Município de São Paulo.

Durante este período, foram implantados diversos planos que pretendiam solucionar este problema. Neste contexto histórico surgiu um vigoroso debate sobre as causas da inflação brasileira e os possíveis caminhos para baní-la. No bojo desse debate surgiu a profícua teoria da inflação inercial7.

Inércia é um conceito que vem da física e significa que um objeto tende a permanecer como está, desde que não encontre forças contrárias. Isto é, se há um objeto parado, ele tende a ficar parado; mas, se o objeto estiver em movimento, ele tende a permanecer em movimento.

Assim, ao se referir ao processo inflacionário, a inércia significava que a inflação havia atingido um estado no qual tenderia a permanecer como estava simplesmente pelo fato de já existir. Desta forma, a inflação passada tenderia a se reproduzir no presente e no futuro, dado que os agentes econômicos (Indústria, agropecuária, bancos e trabalhadores) já estavam acostumados com a sua existência.

Isto ocorria devido à indexação dos preços na economia. Isto é, o reajuste do preço de um bem ou serviço segue algum índice de inflação passada.  Essas indexações podem ser formais ou informais. No caso de indexação formal, o preço de um bem ou serviço é reajustado por algum índice de inflação formal. Por exemplo: o valor do aluguel de um imóvel é reajustado seguindo o valor do IGPM. Se o IGPM dos últimos 12 meses antes do reajuste do aluguel tiver sido alto, o valor do aluguel sofrerá um grande reajuste. Assim como o aluguel, há diversos outros preços que são indexados aos índices de inflação, como o preço da energia elétrica, o preço do pedágio em rodovias, o preço dos planos de saúde e  muitos outros. Genericamente, isto quer dizer que uma inflação maior no passado significa que os preços terão aumento maior no presente.

Ainda há o caso da indexação informal. Isso ocorre quando, de maneira generalizada, os agentes econômicos reivindicam aumento dos preços de suas mercadorias para recuperar sua renda real. O caso mais clássico é o do reajuste salarial. Isto acontece da seguinte maneira: imagine que o seu salário acabou de ser reajustado e que neste momento você consegue comprar uma quantidade X de mercadorias. Além disso, o próximo reajuste salarial será apenas no próximo ano. Ao longo de um ano em que há inflação, você vai deixando de conseguir comprar as X mercadorias que conseguia comprar logo após o reajuste salarial. Consequentemente, quando chegar a data do próximo reajuste, você pode pensar que será necessário reivindicar que o salário seja reajustado pela inflação passada para conseguir chegar ao fim do próximo ano comprando as mesmas coisas compradas imediatamente antes do reajuste salarial. É desta forma que a inflação passada é reproduzida no período atual. Isto ocorre porque vários vendedores de mercadorias têm o mesmo comportamento, e não somente os trabalhadores.

Em síntese, o reajuste de preços no período presente seguindo a inflação passada faz com que aquela inflação seja reproduzida ao longo do tempo. Então, mesmo que não exista nenhum fator de pressão por aumento de preços (demanda, custos ou estrutura produtiva), a inflação continuará devido ao comportamento defensivo dos agentes para manter seu poder de compra real médio.

O Plano Real

Foi com o Plano Real, instituído em 1994, que o processo de inércia inflacionária foi extinto no Brasil. No Gráfico 3, acima, é possível ver a taxa de inflação diminuindo abruptamente entre 1993 e 1995. O Gráfico 4, abaixo, mostra os novos patamares inflacionários do país após a instituição do Plano Real. Verifica-se que a inflação raramente chega aos 10% ao ano ou mais).

Elaboração própria. Fonte: IPEADATA – Índice de Preços ao Consumidor do Município de São Paulo; Índice de Preços ao Consumidor Amplo

De acordo com Lacerda (2018) [6], na década de 1990, a economia brasileira buscava se adequar às transformações ocorridas na economia mundial, quais sejam, abertura ao exterior, fomento às privatizações, renegociação da dívida externa e desregulamentação do mercado financeiro. Mas, para melhor se integrar em uma economia mundial transformada, ainda era necessário lidar com a persistente existência da inflação.

O Plano Real merece um artigo individual dada a relevância das transformações que realizou no Brasil. Mas, para os objetivos deste artigo, apenas cabe ser ressaltado que este plano buscava equilibrar as contas do governo, criar um padrão estável de valor e emitir uma moeda nacional com poder aquisitivo estável. Além disso, diferentemente dos planos anteriores, no Plano Real não foi realizado o congelamento de preços. Na primeira fase do plano, no Programa de Ação Imediata (PAI), de junho de 1993, buscava-se realizar uma série de ações para alcançar o equilíbrio fiscal do governo, pois este era o diagnóstico da inflação existente à época. Destaca-se que o setor financeiro obtinha ganhos com a inflação e sua queda repentina faria com que muitas instituições financeiras recorressem ao Banco Central para sobreviverem. Consequentemente, havia a necessidade de sanear os bancos públicos e privados para que, com uma queda da inflação, fosse possível manter um sistema bancário estável.

Considerações finais

Neste artigo foram apresentados os diferentes diagnósticos da inflação e as diferentes características do processo inflacionário brasileiro durante a segunda metade do século XX. Observou-se que o desenvolvimento capitalista deste período ocorreu juntamente com um processo inflacionário. Entretanto, a inflação que hoje ocorre no Brasil não está relacionada com aquela que ocorria no século passado. Por isso, em um próximo artigo serão apresentadas as características da inflação atual, fenômeno que voltou a preocupar a economia mundial e que tem como um de seus fatores causadores os desequilíbrios econômicos decorrentes da pandemia da Covid-19 na economia mundial.

1KEYNES, J. M. Consequências das alterações no valor da moeda para a sociedade. In: SZMRECSÁNYI, T. (Ed.). John Maynard Keynes: economia. 2a ed. São Paulo: Ática, 1984. p. 87–105.

2 Exemplo de manual que aborda estes tipos de Inflação é GREMAUD, Amaury Patrick. Economia brasileira contemporânea. Coautoria de Marco Antonio Sandoval de Vasconcellos, Rudinei Toneto Júnior. 8. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2016.

3 RODRÍGUEZ, O. Teoria do subdesenvolvimento da Cepal. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

4 Sobre este tema, ver: NUNES, Leonardo Dias. Correção monetária e tensões sociais no Brasil contemporâneo (1963-1974). 2012. 94 p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, SP.

5 TEMPOS modernos: João Paulo dos Reis Velloso, memórias do desenvolvimento. Coautoria de Maria Celina D’Araujo, Celso Correa Pinto de Castro. Rio de Janeiro, RJ: FGV, 1997. p. 145.

6 LACERDA, A. C. DE et al. Economia brasileira. In: REGO, J. M.; MARQUES, R. M. (Eds.). 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018

7Sobre estes Planos e a Inflação Inercial, ver CASTRO, Lavínia B. de. Esperança, frustração e aprendizado: A História da Nova República (1985-1989). IN ECONOMIA brasileira contemporânea: 1945-2010. Coautoria de Fabio Giambiagi. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier, 2011.

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