As equações marxistas de Kalecki

Michal Kalecki (1899-1970).

Por Vítor Lopes de Souza Alves.

O economista polonês Michal Kalecki é conhecido por ter desenvolvido uma abordagem macroeconômica similar à de Keynes, dando ênfase a temas como o problema da demanda efetiva, porém pautado na teoria econômica marxista. No texto As equações marxistas de reprodução e a economia moderna (Kalecki, 1977), tendo por base os esquemas de reprodução de Marx, que constam no livro II de O capital (Marx, 2014, caps. 20 e 21), ele apresenta uma série de equações sobre certos agregados macroeconômicos e extrai conclusões sobre as relações existentes entre eles.

I

O raciocínio kaleckiano tem início com o “tableau economique da renda nacional”:

I II III Total
P₁ P₂ P₃ P
W₁ W₂ W₃ W
I Cc Cw Y

A economia é dividida em três departamentos. O departamento I produz bens finais não consumidos (meios de produção), o departamento II produz bens finais consumidos pelos capitalistas (bens de luxo), e o departamento III produz bens finais consumidos pelos trabalhadores (meios de subsistência).

No quadro acima, valem as seguintes designações:

          P: lucros brutos
          W: salários
          Y: renda nacional bruta
          I: investimento bruto
          Cc: consumo dos capitalistas
          Cw: consumo dos trabalhadores

Assim como nos esquemas de reprodução de Marx, faz-se abstração do comércio exterior (X – M) e do governo (G – T). O termo “bruto” significa antes de deduzir a depreciação.

II

A partir disso, são derivadas as equações kaleckianas. A primeira delas é a fundamental equação de troca.

Os bens de consumo dos trabalhadores produzidos pelo DIII (Cw = P₃ + W₃) são vendidos aos trabalhadores do próprio DIII (W₃) e aos trabalhadores de DI e DII (W₁ + W₂). Logo, tem-se:

          Cw = P₃ + W₃
          Cw = W₁ + W₂ + W₃
          P₃ + W₃ = W₁ + W₂ + W₃

          (1) P₃ = W₁ + W₂

Essa equação vale tanto para a reprodução simples como para a reprodução ampliada.

Assim como Marx, Kalecki supõe que os trabalhadores não poupam; além disso, desconsidera-se a acumulação de estoques de bens não vendidos.

Adicionando-se P₁ + P₂ a ambos os lados da equação 1, obtém-se a equação dos lucros:

          P₃ = W₁ + W₂
          P₁ + P₂ + P₃ = P₁ + P₂ + W₁ + W₂
          P = (P₁ + W₁) + (P₂ + W₂)

          (2) P = I + Cc

Sejam w₁ = W₁/I, w₂ = W₂/Cc e w₃ = W₃/Cw, obtém-se, a partir da equação 1, a equação do consumo dos trabalhadores:

          P₃ = W₁ + W₂
          Cw – W₃ = W₁ + W₂
          Cw – w₃ . Cw = w₁ . I + w₂ . Cc
          (1 – w₃) . Cw = w₁ . I + w₂ . Cc

          (3) Cw = (w₁ . I + w₂ . Cc) / (1 – w₃)

Por meio da equação 3, obtém-se a equação da renda nacional:

          Y = I + Cc + Cw

          (4) Y = I + Cc + (w₁ . I + w₂ . Cc) / (1 – w₃)

Conclui-se que, dada a distribuição da renda entre lucros e salários nos três departamentos (w₁, w₂ e w₃), o investimento (I) e o consumo dos capitalistas (Cc) determinam os lucros (P, equação 2) e a renda nacional (Y, equação 4) que se podem vender/realizar.

          I, Cc (variáveis independentes) ⇒ P, Y (variáveis dependentes)

III

As repercussões de um aumento em I e Cc dependem da existência ou da inexistência de capacidade ociosa no DIII:

i) havendo capacidade ociosa no DIII:

          Cw = (w₁ . I + w₂ . Cc) / (1 – w₃)

          ↑ I, ↑ Cc ⇒ w₁, w₂ e w₃ constantes, ↑ Cw

ii) não havendo capacidade ociosa no DIII:

          Cw = B = (w₁ . I + w₂ . Cc) / (1 – w₃)

          ↑ I, ↑ Cc ⇒ Cw = B constante, ↓ w₁, w₂ e w₃

IV

A acumulação uniforme de capital ou reprodução ampliada pode ser descrita pela equação da acumulação:

          (5) I = (r + d) . K

Em que:

          I: investimento bruto
          r: taxa de acumulação líquida
          d: taxa de depreciação
          K: estoque de capital

Considerando-se o crescimento a longo prazo, pode-se postular que o consumo dos capitalistas (Cc) é proporcional aos lucros (P). Assim, dada a equação 2, tem-se que o consumo dos capitalistas (Cc) mantém uma relação constante com o investimento (I):

          Cc = m . I

Dada a equação 4, tem-se:

          (6) Y = I . (1 + m + [(w₁ + m . w₂) / (1 – w₃)])

Dada a equação 5, tem-se:

          (7)  Y = K . (r + d). (1 + m + [(w₁ + m . w₂) / (1 – w₃)])

Sempre que w₁, w₂ e w₃ não se alterarem, isto é, sempre que houver capacidade ociosa no DIII e a capacidade produtiva dos três departamentos se expandir à mesma taxa, a renda nacional (Y) manterá uma relação constante com o estoque de capital (K).

Com uma dada relação entre a capacidade produtiva e o estoque de capital, o grau de utilização do equipamento de capital é constante. Assim, se na posição inicial o equipamento for utilizado satisfatoriamente, essa situação se manterá no decorrer da reprodução ampliada e não surgirá o problema da demanda efetiva.

Essa é a abordagem inerente a muitas teorias contemporâneas do crescimento econômico, as quais são apenas variações sobre o tema dos esquemas marxistas de reprodução ampliada.

Diferenciando-se a equação 7:

          ∂Y/∂K = Y/K = r.(Y/r.K)

          ∂K/∂Y = K/Y = R : relação capital-produto

          r.K : investimento líquido

          r.K/Y = a : participação relativa da acumulação na renda nacional

Tem-se, a partir disso:

          1/R = r/a ; r = a/R : fórmula básica do modelo Harrod-Domar

V

A suposição da seção III, de existência de capacidade ociosa no DIII e de expansão da capacidade produtiva dos três departamentos à mesma taxa, não é problemática.

Já o equilíbrio móvel descrito na seção IV depende de uma suposição extrema, a de que os capitalistas efetuam investimento líquido a uma taxa constante r ao ano.

Se os capitalistas se tornarem mais cautelosos e reduzirem o investimento de (r + d) . K para (r’ + d) . K, r’ < r, então Y/K e, assim, o grau de utilização do equipamento, declinam na proporção (r’ – d)/(r – d), como resultado do problema da queda da demanda efetiva. Nessa situação, o investimento líquido será reduzido ainda mais para r’’, r’’ < r’, declinando ainda mais o grau de utilização.

Não há razão para que no longo prazo o investimento líquido flutue em torno de uma constante r em vez de em torno de zero. Em termos marxistas, não há razão para que o sistema capitalista se mantenha numa trajetória uniforme de reprodução ampliada em vez de se encontrar numa posição de reprodução simples a longo prazo. O crescimento a longo prazo da renda nacional que implique uma utilização satisfatória do equipamento numa economia capitalista está longe de ser óbvio.

Essa questão apenas pode ser solucionada resolvendo-se o problema dos determinantes das decisões de investimento, tanto no contexto das flutuações cíclicas de curto prazo como no contexto da tendência de longo prazo. Nem Marx nem a economia moderna desenvolveram tal teoria.

VI

Marx estava ciente do problema da demanda efetiva, pois distinguia as condições de exploração/produção da mais-valia (capacidade produtiva da sociedade) das condições de sua realização/circulação (proporções entre os diversos ramos de produção e poder de consumo da sociedade). No entanto, Marx não investigou sistematicamente as implicações do problema da demanda efetiva sobre o processo de reprodução do capital.

Rosa Luxemburgo afirmou que a reprodução ampliada a longo prazo só é possível se houver “mercados externos”, isto é, países subdesenvolvidos e setores não capitalistas de países desenvolvidos, como agricultura camponesa e governo. Rosa errou ao considerar que as decisões de investimento são tomadas pela classe capitalista como um todo, mas acertou em seu ceticismo quanto à possibilidade da reprodução ampliada a longo prazo, pois não se pode tomar por suposto o crescimento autossustentado da economia capitalista.

Para Kalecki, a expansão do capitalismo deve-se a alguns aspectos do progresso técnico e aos “mercados externos”, sobretudo sob a forma de despesa governamental, especialmente com armamentos. A forma de financiamento do gasto público afeta a demanda efetiva: se o gasto for financiado por empréstimos e tributos sobre os capitalistas, o consumo e o investimento se mantêm constantes, e a demanda aumenta; se o gasto for financiado por tributação direta e indireta dos trabalhadores, o consumo e o investimento diminuem, e a demanda se mantém constante.

Referências

KALECKI, Michal. As equações marxistas de reprodução e a economia moderna. In: MIGLIOLI, Jorge. (Org.). Crescimento e ciclo das economias capitalistas. São Paulo: Hucitec, 1977.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro II: o processo de circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

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