Raça, classe e fascismo no Brasil – Parte II

Arte: crisvector. Fonte: https://ctb.org.br/trabalho/precarizacao-do-trabalho-um-campo-fertil-para-a-extrema-direita/ Acessado em: 11/04/2023.

Por Gustavo Zullo

Hoje retomo a sequência iniciada no artigo anterior, quando apresento a estrutura social brasileira em perspectiva história e a articulo à consolidação de um determinado padrão de exploração da força de trabalho. Agora, exploro alguns determinantes econômicos mais recentes, nacionais e internacionais, que concorrem para fazer do negro o principal alvo da precarização do trabalho, do que enfoco as formas de trabalho em plataformas de aplicativo. De outro modo, o racismo foi preservado como fator estruturante das relações de classe no Brasil, o que contribuiu para a modernização de um nível tradicional de vida que não só é muito baixo como, ao longo do tempo, vem se mostrando profundamente rígido.

Embora a industrialização tenha viabilizado alguma ascensão social para parte do proletariado, ela tendeu a beneficiar trabalhadores brancos. Em sua maioria, a população negra ficou de fora deste movimento ascensional que, não bastasse os seus problemas, foi interrompido pela ditadura militar. Segundo Furtado (1972),[1] a repressão social, cultural e política inviabilizou qualquer aumento da participação do proletariado na renda nacional durante o Milagre, que associou crescimento extraordinário do produto com arrocho salarial. Em outros termos, o regime militar limitou severamente o trabalho como instrumento de valorização e prestígio social para o proletariado, o que foi espacialmente danoso para o negro, cercado por obstáculos econômicos, sociais, culturais e psicológicos ainda piores que os que cercam a população em geral.

A industrialização liderada pelo capital internacional e pela autocracia burguesa, portanto, pioraram uma situação que ainda viria a se degenerar com a Crise da Dívida e outros elementos que crescentemente obsoletizaram o parque industrial brasileiro e facilitaram a ladeira abaixo que seria a desindustrialização iniciada nos anos 1990 (Suzigan, 1992; Espósito, 2016).

Já sob o neoliberalismo, precarizaram-se as condições socioeconômicas da classe trabalhadora brasileira, cada vez mais distante do trabalho formal. A perda de elos da cadeia produtiva e de graus de autonomia da política econômica, aprofundadas no Plano Real, aumentaram a participação do desemprego e do trabalho informal (Pochmann, 2001). Pior, conforme a população crescia num contexto de baixo crescimento, o estoque de desempregados e informais cresceu assustadoramente durante a Década Perdida e os anos posteriores de estagnação econômica. Esses processos fragilizaram os movimentos sindicais e gerou novas formas de estranhamento do trabalho no Brasil e no mundo (Zullo e Duarte, 2012).

Nem mesmo as gestões dos governos do PT reverteram substantivamente esta tendência. Embora a formalidade tenha crescido, forçando uma redução da taxa de informalidade e do desemprego, os seus estoques não foram reduzidos a contento, o que evidencia a fragilidade deste processo. Não só os salários dos empregados formais que se abriram se concentraram na faixa de até 2 salários mínimos como ocorreu sob um contexto de aprofundamento da desindustrialização (Zullo, León, 2020). A economia não ofereceu meios para se sustentar uma melhora da estrutura de ocupações, particularmente danosa à população negra (Almeida, 2021).

Não obstante estes desafios, as relações de trabalho pioraram sensivelmente. Alguns dos processos mais assustadores foram (i) o aumento de contratos de curto prazo, inclusive de trabalhadores formais, e (ii) o aumento das formas flexíveis de contratação. Além disso, destaco aqui a reforma trabalhista de 2003, que agravou o futuro de toda a classe que vive do trabalho. Assim como em outras partes do mundo, também duramente golpeadas pela ofensiva neoliberal, desde os anos 1990 vem se obrigando a classe trabalhadora a tolerar a incerteza e a assumir e defender a gerência individual dos riscos de sua própria existência (Dardot, Laval, 2016). Isto é, o neoliberalismo tem aflorado posturas autoritárias de trabalhadores frustrados e amedrontados pela ameaça do desemprego e, de modo geral, pela aproximação de um futuro desbotado.

Para além da EC 95/2016, que aprofundou a tendência estrutural de estagnação das condições socioeconômicas da classe trabalhadora, levando milhões ao desemprego e à informalidade, revertendo os já frágeis avanços dos governos do PT, essa situação se agravou com o alargamento da indústria 4.0. Sobretudo as plataformas digitais, atualmente as maiores empregadoras do país, aproveitaram da miséria da classe trabalhadora brasileira, tributária de um padrão de vida em que a herança da escravidão ainda é muito importante, e oferecem condições de trabalho e remuneração inadequadas a uma vida digna. Embora existam diferentes situações, um dos piores cenários conduziu à formação de uma enorme massa de entregadores de plataformas digitais sem direitos.

Segundo relatório recente da CUT/OIT/IOS, 68% destes trabalhadores são homens negros, evidenciando muito bem quem são os principais impactados pela regressão das forças produtivas no país. As estratégias mais precárias de sobrevivência são “aproveitadas” precisamente pelos trabalhadores que balizaram um nível de vida extremamente baixo, o qual procurei associar à marginalidade social e ao trabalho informal. Ou seja, os negros continuam ocupar esta posição social mesmo depois de passados quase 135 da Abolição.

Esta, portanto, não é uma questão de conjuntura nem é “meramente” identitária. Esta é uma questão estrutural do trabalho no Brasil. Elevar as condições de trabalho e remuneração do negro é elevar as condições de trabalho e remuneração de todos os trabalhadores no Brasil. Isto é, além de políticas econômicas que mirem o crescimento, é preciso não só regular o trabalho de modo a reduzir drasticamente a quantidade de contratos flexíveis e outros problemas, como também é urgente se reforçar ações afirmativas e estimular a conscientização sobre a questão racial como peça chave para se elevar o nível de vida da população como um todo. Ou seja, não se trata “apenas” de civilizar o mercado de trabalho, mas, sim, de democratizar o Brasil.

Referências:

ALMEIDA, Pedro. Capitalismo dependente e o negro na sociedade de classes. Elementos para uma análise histórico-estrutural da raça, emprego e salário no Brasil (1980-2010). Campinas: IE-Unicamp (dissertação de mestrado), 2021.

CUT; IOS. Condições de trabalho, direitos e diálogo social para trabalhadoras e trabalhadores do setor de entrega por aplicativo em Brasília e Recife. São Paulo: Central Única dos Trabalhadores, 2022.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.

ESPÓSITO, Maurício. A importância do capital internacional nas transformações da estrutura produtiva brasileira. Da industrialização à desindustrialização. Campinas: IE-Unicamp (dissertação de mestrado), 2016.

FURTADO, Celso. Análise do ‘modelo’ brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

POCHMANN, Marcio. A década dos mitos. São Paulo: Contexto, 2001.

SUZIGAN, Wilson. A indústria brasileira após uma década de estagnação: questões para política industrial. In: Economia e Sociedade, Campinas, vol. 1, pp. 89-109, agosto, 1992.

TAVARES, Maria da Conceição; SERRA, José. Más allá del estancamento. Una discusión sobre el estilo de desarrollo reciente. El Trimestre económico, México, vol. 38, n° 152, pp. 905-950, outubro/dezembro, 1971.

ZULLO, Gustavo; DUARTE, Pedro. Crise do capital, desemprego estrutural e novas formas de estranhamento do trabalho. CEMARX, Campinas, 2012.

ZULLO, Gustavo; LEÓN, Jaime. As determinações da desindustrialização sobre o mercado de trabalho na fase terminal da Nova República. In: PERRUSO, Marco; SANTOS, Fábio; OLIVEIRA, Marinalva. O pânico como política. O Brasil no imaginário do lulismo em crise. Rio de Janeiro: Mauad X, 2020, pp. 167-180.

[1] Esta é uma peça central do debate de Furtado (1972) com Maria da Conceição Tavares e José Serra (1971)

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