Transnacionalização da classe capitalista

Por: Leonardo Dias Nunes

“As novas elites estão em casa apenas quando estão em trânsito, a caminho de uma conferência de alto nível, para a grande abertura de uma nova franquia, para um festival internacional de cinema ou para um resort desconhecido. Essa é essencialmente a visão de mundo de um turista – e não é uma perspectiva capaz de encorajar uma devoção apaixonada pela democracia” [1].

Introdução

O objetivo do artigo é apresentar uma referência sobre a transnacionalização da classe capitalista e relacionar esse processo com a mundialização do capital e com a globalização da força de trabalho. Para atingir esses objetivos, dividi o artigo em três seções. Na primeira seção, recuperei a discussão em torno da mundialização do capital. Na segunda, mostrei de forma sucinta uma referência que sintetiza o debate sobre a classe capitalista transnacional. Por fim, na terceira, destaquei o processo chamado de globalização da força de trabalho, uma relevante transformação ocorrida na economia mundial nos últimos quarenta anos.

A mundialização do capital

Em meu artigo anterior, ao apresentar os principais argumentos do economista François Chesnais [2], afirmei que no início da década de 1990 iniciou-se um novo regime de acumulação comandado pelos fundos mútuos de investimento, fundos de pensão e Estados nacionais mais poderosos da economia mundial. Nesse novo regime, já não era possível pensar em domar o capital, pois se formava um cenário em que as relações entre o capital e o trabalho haviam sido transformadas, tornando o lado do capital muito mais forte. Foi este o momento em que a intensa acumulação de capital e a criação das tecnologias de informação e comunicação possibilitaram a internacionalização dos grupos industriais que se tornaram oligopólios e, consequentemente, transformaram as relações laborais em busca de maior produtividade.

Nessa nova conjuntura houve, por um lado, uma integração seletiva de economias nacionais aos fluxos financeiros internacionais e, por outro, houve uma desconexão forçada das regiões que deixaram de ser atrativas, tornando-se assim zonas de pobreza. De acordo com o autor, o resultado desse processo foi o enfraquecimento do quadro sociopolítico do Estado-nação e suas consequências podem ser observadas nos componentes da demanda efetiva, quais sejam: caiu o consumo das famílias; o gasto público foi afetado pela diminuição da base tributária e pela redução da carga tributária incidente no capital; e, por fim, o investimento adquiriu um dinamismo médio ou fraco ao se concentrar nos processos de fusões e aquisições.

Com o processo de mundialização do capital surgiu uma classe possuidora de características próprias e que trabalhava de acordo com os interesses desse capital cujos limites para circular ao redor do mundo se tornaram mínimos.

Nesse novo arranjo do sistema capitalista, da mesma forma que o capital perdeu as amarras nacionais, os membros da elite transnacional perderam as referências geográficas nacionais e começaram a se entender enquanto cidadãos do mundo.

A classe capitalista transnacional

No artigo The transnational capitalist class escrito por William Robinson e Jeb Sprague-Silgado [3], é apresentado o desenvolvimento das pesquisas sobre a classe capitalista desde 1960, duas interpretações fundantes dessa área de pesquisa e seus desenvolvimentos recentes. Cabe frisar que as duas interpretações focam no atributo transnacional da classe capitalista superando a antiga qualificação de internacional. Assim, a classe capitalista transnacional é entendida como um grupo possuidor de interesses fundamentados em um sistema global que está além do sistema internacional de Estados-nações.

Para Leslie Sklair – autor do livro Theory of Global System (1995) e The transnational capitalist class (2000) e possuidor de uma análise de economia política eclética –, existem cinco proposições principais sobre a classe capitalista transnacional. Primeira, está baseada nas corporações transnacionais e controla o processo de globalização. Segunda, começa a agir como classe dominante em algumas esferas da existência. Terceira, organiza a globalização do sistema capitalista que se reproduz através do lucro orientado pela cultura do consumismo. Quarta, objetiva resolver os problemas existentes entre a polarização da riqueza e da pobreza e do desequilíbrio ecológico. Quinta, as frações dessa classe são os executivos, os burocratas e políticos, os profissionais dotados de conhecimento técnico e os comerciantes e profissionais da mídia.

Para Sklair, a classe capitalista transnacional possui cinco características principais. Primeira, seus interesses possuem nexos globais. Segunda, é uma classe que busca exercer controle econômico no ambiente de trabalho; o controle das políticas domésticas e internacionais; e o controle cultural da vida cotidiana através da retórica e das práticas competitivas e consumistas. Terceira, é uma classe orientada para fora. Quarta, os integrantes dessa classe possuem estilos de vida semelhantes. Quinta, os membros dessa classe buscam projetar a si mesmos como cidadãos do mundo.

Enfim, para Sklair, essa classe possui um círculo íntimo que age como um agente político coletivo e, a despeito dos conflitos geográficos e setoriais, tem como interesse fundamental acumulação continuada de lucro privado.

Já para William I. Robinson – autor que publicou juntamente com Jerry Harris o artigo Towards a global ruling class? Globalization and the transnational capitalist class (2000) e o livro Theory of global capitalism (2004) – a transnacionalização do circuito de capital produtivo ocorrido no período posterior à II Guerra Mundial é a chave para o nascimento da classe capitalista transnacional.

Robinson se diferencia de Sklair quanto à definição da classe, pois para ele existe uma diferença entre a classe capitalista transnacional e as elites transnacionais. Por um lado, a classe capitalista transnacional é a detentora dos meios de produção. Por outro, as elites transnacionais trabalham e se comportam de acordo com os interesses dos detentores desses meios apesar de não os ter. Sendo assim, Robinson concebe a classe capitalista transnacional e a elite transnacional como sendo os dois componentes de um bloco histórico possuidor de interesses específicos, consciência e projeto de classe que superam os limites das economias nacionais. Logo, ao observarem o globo terrestre, os integrantes desse bloco estão pensando e organizando o processo de acumulação além das fronteiras nacionais.

Na atual conjuntura histórica, a globalização da força de trabalho foi uma conquista importantíssima da classe capitalista transnacional e é sobre esse tema que tocaremos na próxima seção.

A globalização da força de trabalho

Com uma classe capitalista transnacional que observa o globo terrestre na palma das mãos e busca gerir a economia mundial de acordo com seus interesses ao utilizar tecnologias de informação e comunicação, teve origem a globalização da força de trabalho, que criou a concorrência entre os trabalhadores de diferentes países do mundo que estão dispostos a trabalharem para esse capital.

François Chesnais [4] afirma que a “grande conquista do capital nos últimos quarenta anos foi a criação de uma força de trabalho global através da liberalização da finança, do comércio, do investimento direto e da incorporação da China e da Índia no mercado mundial”. Dessa forma, o capital tornou-se capaz de criar competição entre trabalhadores e entre economias nacionais através do uso intensivo das tecnologias de informação e comunicação que auxiliam no aprofundamento da taxa de exploração. Consequentemente, o emprego permanente deu lugar ao emprego precário que pode ser oferecido em qualquer região do planeta, desde que seja a baixo custo.

A mundialização da concorrência no interior da força de trabalho global é um processo que é orientado de acordo com os interesses da classe capitalista transnacional e cujo principal objetivo é rebaixar o preço da força de trabalho no âmbito mundial. Então, podemos entendê-lo como um processo que expressa uma vitória do capital mundializado e gerido pelas elites transnacionais.

Considerações finais: características e interpretações do capitalismo contemporâneo

Ao analisar as características do capitalismo contemporâneo, observamos a existência de fluxos de capitais que não possuem obstáculos para girar pelas economias nacionais; observamos também o surgimento de uma classe capitalista transnacional que gere esse capital sem limites e que se consolida como uma classe social desenraizada de fronteiras e interesses nacionais; por fim, observamos a criação da concorrência entre trabalhadores de diferentes nacionalidades, fato que possibilita o rebaixamento dos salários e favorece aos interesses do capital. De acordo com o autor da epígrafe desse artigo, uma sociedade possuidora de todas essas características tende a não encorajar os valores da democracia.

Nesse conjunto de artigos que escrevo, certamente haveria espaço para discutir muitos outros assuntos relevantes para a compreensão do capitalismo contemporâneo, tais como a desigualdade de renda existente no século XXI, as consequências da mais nova revolução industrial nas condições de trabalho e na transformação dos sistemas industriais e financeiros, os fundamentos e as consequências políticas da mundialização do capital, os impactos da pandemia de covid-19 na economia mundial e os novos problemas que dela emergiram e, por fim, os conflitos geopolíticos existentes em um momento de questionamento da hegemonia americana.

Não faltam problemas para serem analisados nesse século que já chega perto de completar o seu primeiro quarto. Levando em consideração uma parte deles, no próximo artigo, apresentarei uma análise desse sistema que se transforma de crise em crise.

Notas

[1] LASCH, C. The revolt of the elites and the betrayal of democracy. New York – London: W. W. Norton & Company, 1996, p. 8. Tradução livre do seguinte excerto realizada pelo autor: “The new elites are at home only in transit, en route to high-level conference, to the grand opening of a new franchise, to an international film festival, or to an undiscovered resort. Theirs is essentially a tourist’s view of the world – not a perspective likely to encourage a passionate devotion to democracy”.

[2] CHESNAIS, F. A globalização e o curso do capitalismo do fim-de-século. Economia e sociedade, v. 5, p. 1–30, dez. 1995. Esse artigo está disponível aqui.

[3] ROBINSON, W. I.; SPRAGUE-SILGADO, J. The transnational capitalist class. In: JUERGENSMEYER, M. et al. (Org.). The Oxford Handbook of Global Studies. Oxford: Oxford University Press, 2019. p. 309–327. Esse artigo está disponível aqui.

[4] CHESNAIS, F. Finance capital today: corporations and banks in the lasting global slump. Leiden: Brill, 2016, p. 41. Tradução livre do seguinte excerto realizada pelo autor: “Capital’s greatest achievement during the past 40 years has been the creation of a ‘global labour force’, through the liberalisation of finance, trade and direct investment and the incorporation of China and India into the world market”.

*Crédito da imagem que ilustra esse artigo: https://www.wallpaperflare.com/new-york-city-look-out-view-views-new-york-state-of-mind-wallpaper-wcvpk/download

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