Raça, classe e fascismo no Brasil – Parte III

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Por: Gustavo Zullo

A terceira e derradeira parte desta sequência avança mais diretamente sobre a questão do fascismo no Brasil a partir de uma apresentação da formação histórica do país e sua estrutura autoritária e violenta, o que se confunde com a escravidão e a exploração do trabalho que nos é peculiar. Em suma, apresento um brevíssimo ensaio que articula a história do trabalho no Brasil à forma que o fascismo assume neste espaço e neste tempo. Para tanto, avanço sobre a forma, a morfologia e a estrutura da exploração do trabalho que funda a colônia, o que dialoga sobretudo com o primeiro artigo desta sequência. Em seguida, num salto histórico, discuto algumas razões macro-estruturais que nos ajudam a entender a ascensão do fascismo brasileiro e seus nexos com o mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo.

Dentro desta perspectiva, é fundamental destacar que a colonização brasileira impôs a escravidão mercantil de africanos e indígenas como padrão de exploração do trabalho e como fundamento do controle militar do território e da restrição do prestígio e da valorização social aos colonos e seus herdeiros (Fernandes, 1976). De certo modo, a formação do Estado brasileiro obedece à análise de Engels, para quem a orientação étnica e racializadora determina quais serão os grupos no poder, assim como as suas adjacências e os grupos que serão, racializados, inferiorizados e explorados. Mais que isso, observa-se que, do ponto de vista individual e social, constituem-se hierarquizações absolutamente afastadas de formas democráticas de existência (Fernandes, 1965). No lugar de passos convergentes à homogeneidade e respeito pela diversidade, acentuaram-se o medo, a violência e a perseguição paranoica (o medo-pânico) de tudo que pode desestabilizar um castelo de cartas forjado e preservado por castas e estamentos que foram absorvidos pelo regime de classes (Fernandes, 1975). Isso evidencia a articulação entre elementos políticos e psicossociais, como denominava Florestan Fernandes.

No Brasil moderno, essa estrutura de poder adaptada da colônia integrou o negro na sociedade de classes sem descongelar a descolonização, evidenciando seu vigor e capacidade coletiva para desenvolver a cultura de forma acumulativa e segura. Esta estrutura se desenvolveu sem se desligar socialmente do passado, que é renovado e reafirmado por novos agentes sociais que emergem na história como adaptações dos colonizadores. De tal modo, o poder político e econômico no regime de classes foi preservado como uma estrutura burguesa ainda ligada a princípios e técnicas de segregação estamental e de casta.

O fim da escravidão não foi seguido por nenhuma forma de reparação, deixando o negro livre para viver em uma sociedade absolutamente hostil a ele. Esse processo se constituiu como a adoção de uma determinada maneira de deixar negros morrerem sem que se abdicasse por completo de exercícios organizados de extermínio da população negra mesmo sob o regime de classes. Aqui, biopolítica e necropolítica se combinam e se complementam e, sempre que se entende ser necessário, a burguesia suspende direitos, o que se expressa no famigerado AI-5 e nas incursões frequentes da PM às favelas e espaços racializados e miseráveis. Não por acaso, os efeitos particularmente perversos destes processos acometem lideranças ideológicas e a população negra ou, de outro modo, os inimigos internos reais, potenciais e fantasmagoricamente preventivos do poder instituído no Brasil. Nesse sentido, Florestan Fernandes expõe a tendência da autocracia burguesa no Brasil conduzir à fascistização do Estado nacional e seus mecanismos de controle social, cultural, econômico e político (Fernandes, 1981), ao que acrescentaria a tendência em gérmen, porém sempre presente, deste processo ganhar contornos de massa.

Em momentos de crise, como o que vivemos hoje, com aumento da concorrência no mercado de trabalho, estas tendências emergem com força ainda maior. Estes processos tendem a sublevar com mais força as tensões estruturais, como são o preconceito e discriminação raciais no Brasil, mas também outras que são denominadas de forma um tanto pejorativa como pautas identitárias e que tendem a ser desarticuladas de temas como trabalho e valor. Isto é, questões socioeconômicas tendem a acirrar conflitos da psique de ordem individual e coletiva, sobretudo quando uma determinada conjuntura, como a atual, já vinha sendo marcada pelo aprofundamento de tensões identitárias (Haider, 2017; Almeida, 2018) antes mesmo do acirramento da disputa no mercado de trabalho. As dificuldades próprias da garantia pela sobrevivência, sobretudo em um mundo que impôs a concorrência como eixo organizador da vida, fazem com que a atual conjuntura do Brasil, considerados os seus problemas estruturais, se assemelhem a uma tragédia anunciada.

Parece não haver outro horizonte que não o de uma catástrofe social, econômica, política e cultural – para não entrar nas questões ambientais que hoje se mostram mais do que urgentes. Esse conjunto de coisas favoreceu que a rápida deterioração do horizonte social de amplas e heterogêneas frações da classe trabalhadora insuflasse afetos avessos à coesão social dentro de uma conjuntura complexa. Isto é, o esgotamento do breve ciclo de expansão econômica no início do século XXI, contraditoriamente acompanhado pelo aprofundamento da desindustrialização, acirrou tensões sociais que silenciosamente ganhavam uma massa de trabalhadores precários e sem perspectiva. Não que pessoas conservadoras bem remuneradas e com emprego estável não venham a aderir ao fascismo no Brasil. Pelo contrário, aderem também em grande número. Mas a questão para aqui é que sem essa dimensão de precarização socioeconômica, dificilmente o fascismo teria ganhado proporções de massa no Brasil e em outros lugares do mundo.

Ressentimentos relacionados a novas dinâmicas normativas dos “corpos, desejos, sexualidade e identificações” (Safatle, 2023), do que a luta antirracista é um capítulo especial no Brasil, se somam à regressão das forças produtivas e à reafirmação da autocracia burguesa. Juntos, produzem um movimento de massas que exige de forma violenta a retomada de uma ordem mítica, configurando o fascismo brasileiro no século XXI.

 

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

ALMEIDA, Sílvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

ENGELS, Friedrich (1884). As origens da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Centauro, 2004.

FERNANDES, Florestan. Introdução. In: MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: FLAMA, 1946, pp. 7-28.

__________ (1965). A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Editora Globo, 2008.

__________ (1968). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global, 2008.

__________ (1975). A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Globo, 2005.

__________ (1976). Circuito fechado. Quatro ensaios sobre o poder institucional. São Paulo: Global, 2010.

__________ . Poder e contrapoder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

FOUCAULT, Michel (1976). Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 75-98.

HAIDER, Asad (2017). Armadilha da identidade. Raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.

MBEMBE, Achile. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.

SAFATLE, Vladimir. Violências e libido. Fascismo, crise política e contrarrevolução molecular. Revista Estilhaço, nº 1, 2023.

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