A lógica de funcionamento da superexploração da força de trabalho e o que a educação tem a ver com isso

Foto: Sebastião Salgado.

Igor Silva Figueiredo[1]

Roberta Cristina Gobi[2]

A superexploração da força de trabalho, ou simplesmente superexploração do trabalho, emerge, como uma categoria de análise da realidade pertencente ao arcabouço teórico marxista, cunhada por Ruy Mauro Marini, um dos fundadores e principais teóricos da Teoria Marxista da Dependência (TMD). Esse conceito representa a prática comum de pagar aos trabalhadores um valor significativamente menor do que o seu valor real, sendo esse o princípio básico que sustenta as economias dependentes. Conforme Marini, essa expressão típica da exploração do trabalho, sobretudo na América Latina – vale lembrar que Ruy Mauro Marini e os outros intelectuais da TMD têm no desenvolvimento capitalista da América Latina o seu objeto específico de estudo – se revela como um elemento central na estrutura das economias dependentes, contribuindo decisivamente para a perpetuação das desigualdades e assimetrias presentes no sistema econômico global.

Ao lado dos pioneiros da Teoria Marxista da Dependência (TMD), como Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini se destacou por investigar as causas e as determinações históricas que explicam a incapacidade das nações latino-americanas de alcançar o mesmo padrão de desenvolvimento e progresso observado nos países centrais do capitalismo global. Marini argumentou que a dependência é uma complexa “relação de subordinação entre nações formalmente independentes”[3], na qual as relações de produção das nações subjugadas são constantemente reconfiguradas para perpetuar a dependência econômica. Essa visão crítica, essencial para a TMD, destaca a complexidade e assimetria inerentes às interconexões econômicas e históricas entre as nações.

De uma perspectiva diferente, podemos observar que, apesar de serem considerados estados políticos soberanos, essas nações com um capitalismo subordinado/dependente continuam a enfrentar uma relação de dependência econômica no atual contexto do mercado global em contínua transformação.

Nesse novo cenário de acumulação global, a imposição da divisão do trabalho permitiu que as nações industrializadas se especializassem como principais geradoras de produtos manufaturados para o mercado mundial, enquanto às nações latino-americanas coube a responsabilidade de fornecer alimentos e matérias-primas para sustentar as indústrias dos países centrais. Como resultado, essa dinâmica impulsionou o desenvolvimento e aprimoramento de tecnologias mais avançadas, resultando em um aumento da produtividade do trabalho nas regiões industriais centrais:

A industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão internacional do trabalho, em cujo âmbito se transfere aos países dependentes etapas inferiores da produção industrial […] reservando-se para os centros imperialistas as etapas mais avançadas […] e o monopólio da tecnologia correspondente. […] O que temos é uma nova hierarquização da economia capitalista mundial, cuja base é a redefinição da divisão internacional do trabalho ocorrida no curso dos últimos cinquenta anos.[4]

Consequentemente, as transações internacionais entre países se transformam em uma prática desequilibrada, forçando as nações dependentes a participarem de um intercâmbio intrinsecamente desigual de valor. Isso se manifesta principalmente na forma de ganhos financeiros e pagamento de juros, favorecendo as nações com o desenvolvimento capitalista mais avançado. Esse cenário beneficia os países mais desenvolvidos, enquanto prejudica substancialmente o processo de desenvolvimento das nações dependentes devido à assimetria nas relações econômicas. Além disso, impõe a necessidade de envio de parte dos lucros para os países imperialistas/ de capitalismo central.

Com o objetivo de enfrentar a queda em suas taxas de lucro, os países dependentes adotaram a superexploração da força de trabalho como uma estratégia para compensar sua desvantagem em relação às nações com um capitalismo central consolidado. De acordo com Marini, essa superexploração da força de trabalho pode ser observada principalmente em três formas distintas.

O aumento da intensidade do trabalho aparece, nessa perspectiva como aumento da mais-valia, obtido através de uma maior exploração do trabalhador e não do incremente de sua capacidade produtiva. O mesmo se poderia dizer da prolongação da jornada de trabalho, isto é, do aumento da mais-valia absoluta na sua forma clássica (…) deve-se assinalar, finalmente, um terceiro procedimento, que consiste em reduzir o consumo do operário mais além de seu limite normal, pelo qual o fundo necessário de consumo do operário se converte de fato, dentro de certos limites, em um fundo de acumulação de capital, implicando em um modo específico de aumentar o tempo de trabalho excedente.[5]

Em acordo com a visão de Marini, Carcanholo e Amaral defendem a ideia de que a exploração excessiva da força de trabalho em nações dependentes tem um caráter híbrido e conjugado. Essa abordagem destaca a tendência de usar mecanismos de exploração que visam, sempre que possível, recuperar as quotas de lucro perdidas em favor das nações centrais:

E a única atitude que torna possível às economias periféricas garantir sua dinâmica interna de acumulação de capital é o aumento da produção de excedente através da superexploração da força de trabalho, ‘o que implica o acréscimo da proporção excedente/gastos com força de trabalho ou a elevação da taxa de mais valia, seja por arrocho salarial e/ou extensão da jornada de trabalho, em associação com aumento da intensidade do trabalho’.[6]

Mas, afinal, como podemos observar, na prática, a expressão histórico-concreta da superexploração da força de trabalho e a sua relação com a educação? Esta demonstração é uma tarefa bastante complexa e polêmica. O uso do sentido coloquial da expressão superexploração da força de trabalho, muitas vezes confundida como maior exploração, principalmente em trabalhos empíricos e estudos de caso, é apontado como equivocada por alguns autores[7] que defendem a diferenciação – extremamente necessária e importante – do uso coloquial do termo para o uso da expressão como uma categoria marxista, inferior em abstração à teoria do valor de Marx, mas sofisticada e em alto grau de abstração teórica.

No entanto, o sentido político-concreto da categoria superexploração da força de trabalho e suas múltiplas manifestações e implicações no mundo real devem ser investigadas e entendidas à luz do rigor e da práxis proposta por Ruy Mauro Marini, como em Subdesenvolvimento e revolução, quando o autor contextualiza o advento das economias latino-americanas independentes recém criadas nas últimas décadas do século XIX e início do século XX:

As classes dominantes locais tratam de se ressarcir desta perda aumentando o valor absoluto da mais-valia criada pelos trabalhadores agrícolas ou mineiros, submetendo-os a um processo de superexploração. A superexploração do trabalho constitui, portanto, o princípio fundamental da economia subdesenvolvida, com tudo que isso implica em matéria de baixos salários, falta de oportunidades de emprego, analfabetismo, subnutrição e repressão policial.[8]

Se na digressão histórica proposta por Marini o enorme analfabetismo do início do século passado poderia ser considerado como um exemplo visível das implicações da condição dependente e superexplorada da sociedade brasileira, a educação, no século XXI, exprime, até este tempo, igualmente a condição de nação cujo subdesenvolvimento e dependência estão estruturalmente presentes.

Em estudo publicado no periódico científico Social Science Research Network[9], no ano de 2022, em uma parceria de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Zurique, na Suíça, a escolarização, em todos os níveis de ensino, mostrou-se ineficaz no combate às desigualdades. De acordo com a publicação, a ascensão econômica, por meio do acesso ao ensino escolar, não atinge pobres e ricos da mesma forma.

O acompanhamento da série histórica pesquisada no artigo, compreendida entre 1981 e 2021, mostrou que os que já eram mais ricos abocanharam a maior parte dos ganhos econômicos obtidos pela população trabalhadora no período, na comparação entre aqueles que tinham o mesmo grau de instrução. Conforme demonstrou o artigo, nas últimas quatro décadas, as classes mais abastadas retiveram até 65% dos rendimentos auferidos com o aumento da escolarização no que se refere ao nível fundamental; no apurado para o nível médio, a retenção dos mais ricos chegou próximo a 59%; finalmente, no segmento de pessoas que possui o ensino superior completo, a acumulação do extrato de classe mais privilegiado girou em torno de 30%.[10]

Desta feita, concordamos que faz-se mister compreender a superexploração da força de trabalho como a manifestação de uma “determinação negativa do valor contida na lei do valor, na qual a vitalidade mesma da força laboral é submetida a um desgaste prematuro”[11]. Tal fenômeno denota simultaneamente a validação e a negação da lei do valor, em consonância com uma perspectiva que percebe esses aspectos como indissociavelmente interligados. Nos territórios cujo capitalismo é caracterizado pela dependência, a “violação do valor” emerge como um elemento intrínseco à estrutura histórica de exploração do capital, ainda que, ocasionalmente, possa também manifestar-se com variações temporais, elevando-se ou mantendo-se estável em determinados momentos históricos.

Notas

[1] Igor Silva Figueiredo é pesquisador e professor visitante do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), especialista em economia do trabalho e sindicalismo pelo IE-Unicamp, mestre em sociologia e doutor em ciências sociais pelo IFCH-Unicamp. E-mail: igor.figueiredo@gmail.com.

[2] Roberta Cristina Gobi possui graduação em pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas, é mestra em educação pela FE-Unicamp e participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (GREPPE)/Unicamp. Professora de Educação Básica na Prefeitura Municipal de Valinhos.

[3] MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. In: Dialética da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Organização e apresentação de Emir Sader. Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 109. 

[4] Ibid., p. 145. 

[5] Ibid., p. 155. 

[6] AMARAL, M. S.; CARCANHOLO, M. D., Superexploração da força de trabalho e transferência de valor: fundamentos da reprodução do capitalismo dependente, In: Padrão de reprodução do capital: contribuições da teoria marxista da dependência. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 90. 

[7] Franklin, R. S. P.. (2019). O que é superexploração?. Economia E Sociedade, 28(3), 689–715. https://doi.org/10.1590/1982-3533.2019v28n3art04, p.692. Acesso em 22/09/2023.

[8] Marini, Ruy Mauro. Subdesenvolvimento e revolução. Tradução Fernando Correa Prado e Marina Machado Gouvêa. 6ª ed., Florianópolis: Insular, 2017, p. 52.

[9] Lichand, Guilherme and Perpétuo, Maria Eduarda and Soares dos Santos, Priscila, An Education Inequity Index (October 31, 2022). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=4250539. Acesso em 23/09/2023.

[10] Ibid., p. 13.

[11] LUCE, M: Teoria marxista da dependência. Problemas e categorias, uma visão histórica, 2018., p. 135.

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