Uma teia em construção: leituras sobre a crise capitalista

Por: Leonardo Dias Nunes

Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar diferentes referências contemporâneas que tratam das crises econômicas, sociais, políticas e ambientais existentes na dinâmica de acumulação do capital no século XXI. As críticas realizadas a essas referências, nesse primeiro momento, não foram apresentadas. Assim, realizamos um esforço de síntese que possibilita uma observação de grande amplitude e de menor nível de aprofundamento.

Para tanto, dividimos o artigo em três seções. Na primeira, apresentamos a dinâmica de acumulação de capital no século XXI, partindo da crise da década de 1970. Na segunda, relacionamos o poder das finanças frente às transformações sociais, políticas e tecnológicas. E na terceira, expomos a relação da crise da “forma-valor” com a crise do indivíduo moderno e a relação do desenvolvimento capitalista com a catástrofe ambiental.

A dinâmica de acumulação de capital no século XXI

No início da década de 1970, Ernest Mandel [1] defendeu a tese de que o aumento da composição orgânica do capital, devido à chegada de uma nova revolução industrial, originou um período de estagnação no crescimento econômico, o chamado capitalismo tardio. As análises de Mandel foram inovadoras e levaram em consideração uma tecnologia industrial que ainda era pouco difundida. Nesse sentido, o autor foi um dos primeiros analistas das mudanças na forma de acumulação de capital na década de 1970.

Sem dúvida, o processo de acumulação ocorrido ao longo da segunda metade do século XX produziu transformações estruturais: da presença de eurodólares na Europa na década de 1960, passando pelos petrodólares que lá estavam circulando na década de 1970, chegando ao endividamento das economias do terceiro mundo na década de 1980 e concluindo com o surgimento do Estado empresa na década de 1990. Para que essas transformações ocorressem, foram necessárias mudanças jurídicas e institucionais favoráveis ao aumento do fluxo de circulação de capitais entre diferentes economias nacionais. Tais processos foram entendidos como uma desregulamentação favorável ao capital, que diminuiu os investimentos e favoreceu as fusões e aquisições, levando ao lento crescimento da economia e ao desemprego. O economista francês François Chesnais [2] argumentou que essas novas características da economia criadas pela mundialização do capital tornaram o sistema insaciável quanto ao objetivo de acumular.

Essa economia consolidada sob um mercado financeiro insaciável também buscava compensar a queda das taxas de lucro ocorrida desde a década de 1970. O trio de economistas canadenses Smith, Butovsky e Watterton [3] fez essa contextualização e argumentou que a economia chinesa passou a funcionar como um estabilizador da economia mundial desde a década de 1990, pois, ao produzir e vender produtos mais baratos para o mercado mundial, possibilitou que os trabalhadores do mundo ocidental se defendessem da queda do poder de compra causado pela redução dos salários.

Outra interpretação desse mercado financeiro foi realizada pelo trio de economistas gregos Sotiropoulos, Milios e Lapatsioras [4]. Estes autores realizaram a análise marxista da informação para mostrar que ela é necessariamente assimétrica, e não transparente, no capitalismo e a complementaram com a análise foucaultiana da governamentalidade, afirmando que a financeirização é uma tecnologia de poder e os derivativos são uma inovação institucional que comensura diferentes riscos concretos por meio de um critério de eficiência. Com essa análise, os três autores mostraram que o pensamento heterodoxo em economia ainda tem limitações para compreender a informação e a hierarquia nos mercados financeiros.

As crises social e política do mundo contemporâneo

No mundo contemporâneo observamos crises sociais e políticas que estão relacionadas às finanças hipertrofiadas, comentadas na primeira seção deste artigo. Assim, apresentamos três referências que estabelecem essas relações.

Wolfgang Streek [5] reconstruiu a crise criada no regime de acumulação posterior à II Guerra Mundial, precisamente na América do Norte e na Europa Ocidental. Para esse autor, o colapso financeiro de 2008 transformou-se em uma crise financeira de proporções globais e, além disso, mostrou que o desequilíbrio é a regra do sistema capitalista, muito mais do que sua exceção. Sua reconstituição revela que a inflação da década de 1970 foi o resultado de batalhas ocorridas nos mercados de trabalho nacionais. Já na década de 1980, as tensões entre mercado e democracia resultaram no aumento da dívida pública. Durante a década de 1990 e no início dos anos 2000, as referidas tensões foram resolvidas com o keynesianismo privado, ou seja, endividamento privado. Por fim, com a crise de 2008, as forças democráticas sofreram mais um conjunto de derrotas para o capital mundializado.

Wendy Brown [6] faz uma análise marxista para compreender o ataque do capital ao Estado e a consequente privatização do bem comum. Amparada na análise foucaultiana, observa que o sujeito da troca e da satisfação foi transformado no sujeito da competição e do aprimoramento do capital humano. A autora buscou ir além da narrativa comum da esquerda para o surgimento dos novos populismos de extrema-direita. Para tanto, buscou avaliar outras quatro temáticas, quais sejam, a cultura política neoliberal, a produção subjetiva neoliberal e ir além das condições econômicas e dos racismos.

Brown mostra que a racionalidade neoliberal preparou o terreno para mobilizar e legitimar as forças antidemocráticas da segunda metade do século XX. Por isso, seu livro busca teorizar o ineditismo da situação atual, um estágio da história em que a liberdade neoliberal inspira uma extrema-direita possuidora de um discurso de liberdade justificador das violações que asseguram a hegemonia branca, masculina e cristã. Para a autora, o neoliberalismo é oposto à política de planejamento e justiça liberal realizada pelo Estado e tornou-se possuidor de uma moralidade tradicional fundada em normas familiares patriarcais que responsabilizam os indivíduos masculinos, e não o Estado.

Gregoire Chamayou [7] busca compreender os novos mecanismos de contenção do neoliberalismo ao focar sua análise em uma sociedade ingovernável que se tornou insubmissa e oferece risco aos lucros dos negócios. A análise do filósofo está centrada no período posterior à crise econômica de 1970, momento em que o capital criou formas alternativas de governar a população. Assim, houve uma militarização das teorias gerenciais e governamentais. Sua análise mostra que a empresa funciona como uma unidade de governo, o seu foco está voltado para os novos dispositivos de poder e seu argumento mostra as bases analíticas e autoritárias do neoliberalismo.

Para Chamayou, o arsenal de guerra discursivo do capital está voltado contra seis alvos. Primeiro, a insubmissão dos trabalhadores de baixa qualificação. Segundo, o desvio dos gerentes em relação aos interesses dos acionistas. Terceiro, o ativismo existente contra as grandes corporações. Quarto, as contestações contra as corporações em escala internacional. Quinto, a ameaça de regulação pública. Sexto, a ingovernabilidade da própria democracia. Esses são os elementos que compõem o teatro de guerra contemporâneo observado pelo autor.

Por fim, Chamayou observa que a sociedade ingovernável tem seu fundamento na crise social. Esta se apresenta para o analista social por meio do aumento das doenças mentais, dos crimes violentos, dos fenômenos de fratura social, do controle policial dos comportamentos, da aceitação das atitudes hedonistas, da inquietação perante o futuro, da perda de confiança nas instituições e do sentimento de que as respostas do passado não funcionam mais.

A crise do indivíduo moderno e a crise climática

Diante dos variados tipos de crises existentes na contemporaneidade, também notamos que a crise do modo de produção capitalista se expressa desde o indivíduo até o funcionamento do meio ambiente, e as apresentaremos por meio de mais três referências sobre o tema.

Alselm Jappe [8] relaciona o capitalismo com o narcisismo. Seu primeiro argumento é o de que não há como saciar a sociedade que busca incessantemente acumular dinheiro. Não por acaso, faz menção ao filósofo I. Kant para contrariá-lo, pois, já não há como conceber uma sociedade que caminha constantemente para o progresso.

Seu segundo argumento é o de que a crise capitalista impede que todos os indivíduos de uma sociedade se transformem em indivíduos modernos, pois a quarta revolução industrial tornou a maior parte dos seres humanos supérfluos, ou seja, eles não conseguem emprego para se realizarem na sociedade burguesa.

Em seu terceiro argumento, Jappe afirma que todo tipo de pensamento contemporâneo, para que seja crítico, precisa fazer a crítica da economia política. Por fim, afirma também que o fracasso da difusão do indivíduo moderno tende a torná-lo um indivíduo violento, um “homicida-suicida”. Assim, conclui o autor, a racionalidade mercantil leva ao surgimento de ideologias suicidas, consequentemente, para superar a crise do indivíduo moderno é necessário superar a “forma-valor” existente no capitalismo.

Além da crise do indivíduo moderno, há uma crise ambiental em processo que mostra outra faceta da crise capitalista. Eduardo Sá Barreto [9] tem como principal proposição a de que a economia capitalista causa uma tragédia ambiental. E, se no século XX o debate sobre a mudança climática focava nas formas de evitar os problemas climáticos, no século XXI, o debate se volta para as formas de adaptação a estes problemas.

No debate sobre as energias alternativas, o mainstream dos cientistas questiona se é possível desvincular o consumo de energia do crescimento econômico. Entretanto, Barreto é taxativo ao afirmar que são pouco promissoras as estratégias de redução do conteúdo geral de carbono da matriz energética por meio da promoção de fontes renováveis e de energia nuclear.

Barreto direciona sua crítica aos pesquisadores do problema energético que não possuem a mínima compreensão sobre a imanência do impulso de expansão da produção como elemento inerente ao modo de produção capitalista. Assim, o autor assevera que, por um lado, o consumo de energia e o nível da produção estão relacionados, pois, com o avanço das forças produtivas, realiza-se uma expansão da produção. Consequentemente, aumenta a demanda e o consumo de energia. Por outro lado, observa-se que as tecnologias possuem um caráter útil do ponto de vista do valor de uso e são entendidas como elementos constitutivos do capital. Assim, mesmo com a criação de tecnologias renováveis ou menos agressoras ao meio ambiente, as relações mais importantes para o progresso da valorização permanecem preservadas. Tal fato evidencia a taxa de lucro enquanto principal força da produção capitalista.

Além da teorização crítica apresentada por Barreto, contemporaneamente não faltam exemplos para serem listados sobre tragédias ambientais que ocorrem em diferentes partes do globo terrestre, onde existem diferentes tipos de regimes políticos. Sobre esta temática, Saskia Sassen [10] afirma que o conceito de expulsões é mais adequado para entender as patologias do capitalismo global do que o conceito de desigualdade. Sua hipótese é a de que, nas diferentes crises globais, existem tendências sistêmicas emergentes conformadas por poucas dinâmicas básicas e que se torna necessária a realização conjunta de pesquisa empírica e recodificação conceitual. Com esse novo arcabouço intelectual, as expulsões tornam-se um processo de seleção selvagem que ocorre em todo o mundo.

Sassen explica que as distinções políticas e geográficas deixaram de ser eficazes para compreenderem as dinâmicas sistêmicas e profundas que atuam nas expulsões. Essa transformação ocorreu após 1980, marco histórico em que o sistema capitalista realizou duas grandes mudanças: as terceirizações globais passaram a operar em cidades globais com funções econômicas avançadas; e a ascensão do setor financeiro na rede de cidades globais, criando as redes de serviços globais.

Assim, após 1980 foram reinventados os métodos de acumulação primitiva de capital. Por meio destas constatações, a autora defende a tese de que estão sendo criadas formações predatórias – não apenas elites predatórias – que concentram riqueza e criam o fenômeno das expulsões. Seus principais exemplos evidenciam como as finanças globais podem criar expulsões ao atuarem no mercado de terras, na criação de novos ativos financeiros e na mineração.

Considerações finais: crises conexas do capitalismo e estado de guerra

O objetivo deste artigo foi apresentar diferentes referências contemporâneas que tratam das crises econômicas, sociais, políticas e ambientais existentes atualmente. Assim, na primeira seção apresentamos as características da dinâmica de acumulação de capital no século XXI. Na segunda seção focamos na crise do capitalismo democrático e em suas consequências sociais e políticas. Por fim, na terceira seção, apontamos para as relações entre capitalismo, narcisismo e tragédia ambiental.

As obras apresentadas neste artigo possuem como referências principais K. Marx, S. Freud e M. Foucault. Com tais autores apreendemos diferentes facetas do modo de produção capitalista, quais sejam, as contradições de seu funcionamento ao produzir mercadorias, a psique narcísica e doentia de seu indivíduo e, por fim, a governamentalidade que naturalizou as regras do mercado.

As referências apresentadas ao longo do artigo também mostram diferentes aspectos de um mundo que funciona sob a crise do progresso. Assim como Paulo Arantes [11] afirmou, vivemos em um período em que existem expectativas decrescentes em relação ao futuro, fato que cria um estado de guerra permanente [12]. Logo, por mais que o indivíduo tente se desviar desse estado de guerra, de alguma forma, direta ou indiretamente, ele será afetado pelo conjunto de crises estruturais que se desenvolvem.

Como afirmamos na introdução, este artigo apresenta algumas referências sobre as crises conexas do capitalismo contemporâneo [13]. Não é uma síntese exaustiva deste campo de estudo, mas sim uma teia em construção cujo objetivo inicial é compreender as crises atuais da contemporaneidade, relacioná-las e hierarquizá-las para, em um segundo momento, fornecer meios para refletirmos sobre as possíveis formas de superação da crise.

Créditos da imagem: Guernica de Picasso – Wikipédia.

Notas

[1] MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

[2] CHESNAIS, François. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo, 2005. Uma resenha desse livro pode ser lida aqui.

[3] SMITH, Murray E. G.; BUTOVSKY, Jonah; WATTERTON, Josh. Twilight capitalism: Karl Marx and the decay of the profit system. Halifax & Winnipeg: Fernwood Publishing, 2021. Uma resenha desse livro pode ser lida aqui.

[4] SOTIROPOULOS, Dimitris P.; MILIOS, John; LAPATSIORAS, Spyros. A political economy of contemporary capitalism and its crises: demystifying finance. London: Routledge, 2013. Uma resenha desse livro pode ser lida aqui.

[5] STREEK, Wolfgang. As crises do capitalismo global. Novos Estudos CEBRAP, v. 92, p. 35-56, mar. 2012. Uma resenha do livro Tempo comprado pode ser lida aqui.

[6] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019. Uma resenha desse livro pode ser lida aqui.

[7] CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu Editora, 2020. Uma resenha desse livro pode ser lida aqui.

[8] JAPPE, Anselm. A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. São Paulo: Elefante, 2021. Uma resenha desse livro pode ser lida aqui.

[9] BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para uma crítica das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2018. Uma resenha de um livro mais recente do autor, que está relacionado com O capital na estufa, pode ser lida aqui.

[10] SASSEN, Saskia. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2016. Uma resenha desse livro pode ser lida aqui.

[11] ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros ensaios sobre a era da emergência. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014. Uma resenha desse livro pode ser lida aqui.

[12] Sobre esse tema, ver: ALLIEZ, Éric; MAURIZZIO, Lazzarato. Guerras e capital. 1. ed. São Paulo: Ubu Editora, 2021; KURZ, Robert. A guerra de ordenamento mundial: o fim da soberania e as metamorfoses do imperialismo na era da globalização. 1. ed. Lisboa: [s. n.], 2019. Uma resenha do livro Guerras e capital pode ser lida aqui. Uma resenha do livro A guerra de ordenamento mundial pode ser lida aqui.

[13] Sobre esse tema, ver: SAFATLE, Vladimir. Alfabeto das colisões: filosofia prática em modo crônico. São Paulo: Ubu Editora, 2024.

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