ENTREVISTA: Marcelo Medeiros – Qual é a contribuição do Estado para o aumento da desigualdade social?

Por Kátia Kishi

Economista da UnB, Marcelo Medeiros. (Imagem: Acervo pessoal)
Economista e sociólogo da UnB, Marcelo Medeiros.
(Imagem: Acervo pessoal)

A desigualdade social ainda é um problema grave no Brasil e é analisado de forma recorrente entre pesquisadores de várias áreas. A importância de mais pesquisas sobre o tema também foi abordado nesta última edição da revista Brazilian Political Science Review (v. 9 n. 2, 2015) com o artigo “State transfers, taxes and income inequality in Brazil” do sociólogo e economista da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Medeiros, e do sociólogo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Pedro Souza.

O estudo teve o objetivo de avaliar a contribuição do fluxo de renda líquido de e para o Estado para o aumento da desigualdade de renda no Brasil e foi realizado com base nos dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a “Pesquisa de Orçamentos Familiares” (POF) de 2008 a 2009.

A análise aponta que o Estado está associado a uma parte grande da desigualdade brasileira, após avaliar três níveis de operação das políticas sociais: 1) a que mantém uma elite trabalhadora no setor público com altos salários e pensões, o que colabora com a concentração de renda; 2) a presença de benefícios de pensão e seguro-desemprego apenas para funcionários formais do setor privado, o que desfavorece os trabalhadores não formais; e 3) o emprego de políticas públicas do Estado, consideradas progressivas, como o programa Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC), um benefício mensal, e incondicional, de um salário mínimo para pessoas pobres com mais de 65 anos ou com deficiências graves. No entanto, segundo os autores, essas políticas interferem pouco para diminuir a desigualdade de renda no Brasil.

Os pesquisadores acreditam que as políticas públicas, por um lado, protegem os pobres, mas, por outro, beneficiam mais os ricos, e o saldo final disso é que o Estado contribui para o aumento da desigualdade social. Segundo os cálculos dos autores, os fluxos diretos de e para o Estado colaboram com um terço de toda a desigualdade de renda.

Só os funcionários com altos salários e pensões do setor público contribuem com um décimo dessa desigualdade. No entanto, segundo os autores, mesmo que as estruturas de salários dos setores privados e públicos fossem as mesmas, eles ainda ocupariam altos estratos porque os trabalhadores do setor público são mais qualificados. Por isso, destacam que se deve ter muito cuidado ao avaliar o aumento da desigualdade social como “bom ou ruim” para o país. “O que temos que entender é que nem todo o aumento da desigualdade é ruim. Aumentar o salário das professoras do ensino primário do Brasil para contratar professoras mais qualificadas é uma coisa desejável. Mas, se fizer isso, a desigualdade brasileira vai crescer. Isso porque as professoras, embora não ganhem muito bem, ganham mais do que a maioria das pessoas que têm uma educação muito baixa. E esse crescimento não é um problema grave”, explica Medeiros.

A seguir, veja os melhores trechos da entrevista com um dos autores do artigo, Marcelo Medeiros, em que explica e comenta outras diferenças e resultados obtidos pelo estudo.

Muitos estudos sobre a desigualdade de renda no Brasil mostram que ela apresentou uma trajetória de queda. Como o artigo de vocês se situa em relação a estas análises?

Nosso estudo não analisa o comportamento da desigualdade ao longo do tempo. Mas o que os estudos recentes baseados nos dados dos impostos de renda mostram é que a desigualdade não cai desde 2006. Seja como for que se meça essa desigualdade: pelo coeficiente de Gini, pela riqueza do 1% mais rico, etc.

Não é possível afirmar que as políticas do Estado brasileiro contribuem para reduzir a desigualdade de renda no Brasil?

Talvez a informação mais importante é que o Estado brasileiro é extremamente importante para a desigualdade. E por que isso?  Porque só 10% das famílias não recebe ou paga alguma coisa para o Estado brasileiro. Praticamente toda a população tem uma relação monetária direta com o Estado. O Estado contribui aproximadamente com um terço da desigualdade total; parte das coisas que ele faz ajuda a reduzir a desigualdade, parte das coisas que ele faz ajuda a aumentar a desigualdade.

 E o que ajuda a aumentar a desigualdade, segundo o estudo que vocês realizaram?

Basicamente são os salários e a previdência que contribuem com a maior parte da desigualdade. A tributação direta ajuda a reduzir a desigualdade. Isto é, o imposto de renda e as contribuições obrigatórias para a previdência promovem igualdade. Os tributos têm um peso muito maior – na ordem de vinte vezes – do que todas as políticas de assistência social juntas. Embora haja rendas que contribuem para aumentar a desigualdade, não se pode julgar isso superficialmente, nem toda contribuição para a desigualdade é intrinsecamente ruim. Por exemplo, quando o Estado contrata médicos, professores, enfermeiros, policiais, contrata pessoas que ganham mais do que os trabalhadores sem qualquer qualificação – que são a maioria da força de trabalho – acaba contribuindo para a desigualdade, mas isso não é intrinsecamente ruim. Veja bem, aumentar o salário das professoras do ensino primário para contratar professoras mais qualificadas é uma coisa desejável. Mas se fizer isso a desigualdade brasileira vai crescer. Isso porque as professoras, embora não ganhem muito bem, ganham mais do que a maioria das pessoas que têm pouca educação. Só que esse crescimento não é um problema grave. Aliás, isso também vale na outra direção, nem toda redução da desigualdade é boa. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, a desigualdade caiu muito nos países da Europa que foram destruídos, mas isso não foi bom, porque ninguém ganhou com isso. Não se pode fazer uma interpretação rasteira do que é bom e o que é ruim no comportamento da desigualdade. A redução da desigualdade é boa quando alguém ganha com isso, quando há redistribuição. Há situações em que aumentar da desigualdade pode ser justificável se os benefícios forem muito superiores aos custos.

Explorando um pouco mais o artigo, você poderia explicar melhor sobre quais são as influências do Estado para aumentar a desigualdade no Brasil?

O principal são os salários dos trabalhadores do setor público, porque esses trabalhadores são mais qualificados que o restante da população. Previsivelmente eles ganham mais. Isso não deve ser interpretado como algo negativo, é simplesmente um fato. Ao pagar por trabalhadores mais qualificados o Estado contribui para aumentar desigualdade. Além disso, há a previdência, na verdade as previdências. O Brasil não tem um regime previdenciário, ele tem pelo menos duas previdências, uma que tem teto, o INSS, destinado aos trabalhadores do setor privado, que paga menos, uma “previdência dos pobres”; e há a “previdência dos ricos”, a previdência dos funcionários públicos, que não tem teto e pode pagar valores muito altos. Isso tem e vai ter impacto na desigualdade durante muito tempo ainda. Mas não é um problema fácil de ser resolvido agora, tinha que ter sido resolvido há tempos. Isso nos traz uma lição muito importante. Nós estamos pagando agora por decisões que foram tomadas há duas, talvez três décadas atrás. Então é bom saber que as decisões que tomamos hoje vão ser pagas por pessoas que vão viver daqui vinte anos, trinta anos. Quando se decide, por exemplo, fazer uma política que não melhora radicalmente o nosso sistema educacional, estamos propagando a nossa situação de desigualdade para os próximos vinte e trinta anos. Decisões como as de reforma do sistema tributário, que tinham que ser tomadas nas circunstâncias bem favoráveis dos anos 2000, não foram tomadas e pagaremos por elas nos próximos dez ou vinte anos.

No artigo de vocês, é mencionado que esse resultado líquido dos fluxos de recursos entre Estado e indivíduos está relacionado à alta desigualdade no Brasil. Mas esse resultado é específico do Brasil ou o mesmo acontece com outros países que também tenham muito investimento no setor público e com previdências altas?

Isso varia muito de país para país. Existem países onde há um sistema um previdenciário muito ruim e países onde o previdenciário é bastante equilibrado. Dentro da Europa, por exemplo, a Alemanha tem um regime totalmente diferente do regime dinamarquês. A regra geral é que quanto maior a proteção social, menor a desigualdade. Mas existem exceções, e não é só no Brasil. Desigualdade maior acontece quando a previdência social é extremamente corporativista. No caso brasileiro ela favorece bastante a elite dos funcionários públicos e foi bem mais rigorosa com os funcionários do setor privado, onde estão os trabalhadores mais pobres.

E quais são os possíveis caminhos que podemos trilhar para minimizar essa desigualdade no Brasil, de uma forma que beneficie as pessoas?

É muito difícil dar uma resposta de como diminuir a desigualdade no Brasil. Tem soluções que podem ter efeito no curto prazo, mas que não funcionarão no longo prazo. Tem soluções que só vão funcionar no longo prazo e, portanto, não vamos conseguir afetar nada do que está acontecendo hoje. Por exemplo, se fala muito em investimento educacional: o resultado do investimento educacional de hoje só vai poder ser observado daqui a vinte ou trinta anos quando as crianças bem educadas forem maioria no mercado de trabalho. Por outro lado, fala-se muito em tributação: você pode ter impactos tributários de curto prazo que são bons, e no longo prazo você pode estar gerando uma série de distorções. Não é fácil dar uma resposta para isso e eu, na verdade, desconfio muito de quem vem com uma fórmula mágica para a redução da desigualdade. Seria, mais ou menos, como perguntar como fazer a economia brasileira crescer a ritmo acelerado sem prejudicar o meio ambiente, a verdade é que não tem resposta fácil para uma pergunta dessa magnitude. Não existe uma fórmula mágica para acabar com a desigualdade do Brasil.

Confira o artigo completo:

Artigo: “State Transfers, Taxes and Income Inequality in Brazil”
Autores:  Marcelo Medeiros e  Pedro H. G. F. Souza (Contato: marcelo.medeiros.cs@gmail.com) 
Revista: Brazilian Political Science Review (vol.9, n.2, 2015)

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