Thomas Britton, o carvoeiro erudito

 

Thomas Britton, o carvoeiro musical (gravura de autor desconhecido, 1777)
Thomas Britton, o carvoeiro musical (gravura de autor desconhecido, 1777)

Pouco se sabe da vida deste curioso personagem que apareceu em Londres na virada do séc. XVII para o séc. XVIII. O que se sabe é que nasceu em Northamptonshire e, logo que pode, mudou-se para Londres, onde estabeleceu-se como vendedor de carvão — primeiro como empregado e mais tarde como autônomo. Também não se sabe se teve alguma educação formal, mas tudo indica que foi um autodidata, especialmente dedicado ao estudo da música, de livros antigos e talvez até de química.

Henry Wilson e James Caulfield contam a história de Thomas Britton em The Book of Wonderful Characters [O Livro dos Personagens Maravilhosos, do qual também extraímos e traduzimos as demais aspas e citações]:

Qual circunstância particular atraiu a atenção de Britton para assuntos completamente distintos de sua ocupação nos é desconhecida. Mas é provável que isso tenha começado logo após seu estabelecimento nas condições supra-mencionadas [isto é, como carvoeiro em Londres], pois seu vizinho, Dr. Garanciers [sic], levou-o ao estudo da química. Ele não apenas tornou-se proficiente naquela ciência, mas ainda conseguiu reunir um laboratório móvel, que foi universalmente admirado pelos profissionais que o conheceram. E um gentleman de Gales foi tão convencido a ponto de levar Britton para seu país para que lhe construísse outro semelhante.

O vizinho citado era o apotecário francês Theophilus de Garancières (1610-1680?), exilado na Inglaterra por razões religiosas e que traduziu Nostradamus para o inglês em 1672. O carvoeiro e o apotecário exilado se conheceram por volta de 1674. Daí para os estudos musicais e bibliográficos deve ter sido um pulo. Logo Britton, apesar de sua condição modesta, passou a oferecer saraus e concertos em sua humilde residência. Sua casa era um antigo estábulo, cujo porão fora transformado em depósito de carvão e, de acordo com a obra citada,

sobre este ficava a sala de concertos, que era bem longa e estreita, e tinha um teto tão baixo que um homem alto mal conseguiria manter-se de pé. Os degraus para esta sala ficavam do lado de fora da casa, e eram tão íngremes que era preciso quase escalar para subi-los. A própria casa era muito velha e também tinha um teto baixo e em todo respeito era tão modesta que só poderia ser adequada à habitação de um velho homem pobre.

Ainda assim, além do laboratório portátil, parecia haver espaço para uma “biblioteca muito bonita, que ele pôs à disposição do público”. A mesma fonte ainda nos conta que “Britton encontrou instrumentos e a subscrição para seu concerto era de dez xelins por ano, com café a um penny por xícara.” Talvez esse modesto café-concerto fosse, portanto, um complemento à renda do pobre carvoeiro.

De algum modo este curioso estabelecimento chamou a atenção de alguns nobres e mesmo de músicos famosos, como Pepusch (1667-1752), Händel (1685-1759) e o jovem Dubourg (1707-1767), que estreou na cada de Britton. “Tem sido questionado por alguns se Britton teve alguma habilidade musical ou não, mas é certo que ele podia tocar uma espineta e frequentemente tocava uma viola de gamba em seu próprio concerto.” Mesmo com o sucesso de seus concertos e saraus, Britton nunca deixaria de vender carvão.

Casal Elegante (Um Interlúdio Musical), Jan Verkolje, c.1674. Exceto pelas roupas elegantes, a casa de Thomas Britton não deve ter sido muito diferente dessa pintura, onde vemos uma viola da gamba baixo, uma espineta e uma cítara (na mão da mulher). [imagem via Wikipédia]

Entre os contatos nobres de Britton estariam Aubrey de Vere, (1627-1703) 20º. e último conde de Oxford; Thomas Herbert (1656-1733), 8º. conde de Pembroke; Robert Spencer (1641-1702), 2º. conde de Sunderland; e William Cavendish (1640-1707), 1º. Duque de Devonshire.

Aos sábados, eles se reuniam para caçar seus livros antigos pelas livrarias londrinas. Depois de dar as buscas pela manhã, eles se encontravam por volta do meio-dia na livraria de Christopher Bateman, em Paternoster Row. “Britton, que àquela altura já havia terminado sua ronda [apregoando o carvão] chegava com seu roupão azul e, lançando seu saco de carvão em um nicho sob uma janela da loja de Mr. Bateman, entrava e juntava-se a eles”. As atividades múltiplas de Britton não puderam deixar de levantar suspeitas.

Alguns pensavam que sua assembleia musical era apenas um disfarce para reuniões sediciosas; outros, para propósitos mágicos. E o próprio Britton foi tomado por ateu, presbiteriano e jesuíta. Estas, entretanto, eram conjunturas infundadas, pois ele era um homem simples, honesto, perfeitamente inofensivo e altamente estimado por todos que o conheceram. E, apesar da miséria de sua ocupação, era sempre tratado por Mr. Britton.

A morte de Thomas Britton não foi menos curiosa que sua vida. Ele morreu de susto — literalmente. Acontece que um oficial de justiça chamado Robe, que frequentemente apresentava-se nos concertos de Britton, e um ferreiro conhecido apenas como Honeyman quiseram lhe pregar uma peça. Nas horas vagas, Honeyman era um ventríloquo e, dizem, tão habilidoso era em disfarçar sua fala que sua voz parecia até vir de outro cômodo. Como relatam Wilson e Caulfield, concluindo o perfil deste personagem pitoresco:

Honeyman, sem mover seus lábios ou parecer falar, anunciou, de certa distância, que o pobre Britton morreria em poucas horas e implorava que a única maneira dele evitar sua perdição seria cair de joelhos imediatamente e rezar o Pai-nosso. O pobre homem fez o que lhe pediram, foi pra casa e meteu-se na cama, onde morreu em poucos dias.

Ao falecer, nos fins de setembro de 1714, o carvoeiro mais culto de Londres tinha pouco mais de sessenta anos. Era casado, mas parece que não deixou filhos. Seus livros, suas partituras e seus instrumentos musicais foram leiloados após sua morte.

Referências

Texto
WILSON, Henry e CAULFIELD, James. The Book of Wonderful Characters: Memoirs and Anedoctes of Remarkable and Eccentric Persons in All Ages and Countries [O Livro dos Personagens Maravilhosos: Memórias e Anedotas de Pessoas Notáveis e Excêntricas de Todas as Eras e Países], 1869

Gravura
NATIONAL PORTRAIT GALLERY. Thomas Britton after Unknown artist. Line engraving, published 1777. 6 7/8 in. x 3 3/4 in. (176 mm x 95 mm) paper size. Given by the daughter of compiler William Fleming MD, Mary Elizabeth Stopford, 1931. NPG D27354
chevron_left
chevron_right

Leave a comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Comment
Name
Email
Website