O que andei vendo no Netflix em janeiro

A vida do último homem a pisar na Lua ao lado dos capitães que nos levaram onde nenhum homem jamais esteve; os conflitos africanos que ameaçam os gorilas-das-montanhas e criam maratonistas; os mestres da levitação que usam guinchos ou truques mágicos. Os paralelismos deste mês são inevitáveis.


The Last Man on the Moon (96 min., 2014) — Ele é um senhor típico do interior dos Estados Unidos: diverte-se em rodeios, cavalgadas e pescarias, faz churrasco com os amigos, gosta de bater papo ao redor de uma fogueira. No entanto, não se deixe enganar: esse mesmo velhinho ainda viaja ao redor do mundo e pilota um bimotor sempre que pode. Desde o princípio, Eugene “Gene” Cernan foi marcado por essa duplicidade entre o rural e o universal. Nascido em Chicago, Cernan vivia no sítio dos avós no interior do Winsconsin, onde não havia nem eletricidade nem tratores. Mesmo assim, aos 20 e poucos anos, tornou-se piloto de aviação naval no porta-aviões USS Shangri-La. Pego de surpresa com o início dos voos espaciais tripulados, Gene entrou para a NASA após uma ligação secreta e uma reunião digna de filme de espionagem. Depois de treinamentos de sobrevivência na selva e no deserto, estudos de astrodinâmica e geologia, ele estava pronto para voar ao espaço — mas ficou relegado como backup da Gemini 9. Entretanto, ele acabou no espaço graças a um trágico acidente com seus colegas e fez uma estressante caminhada espacial de duas horas. Como todos os astronautas da época, ele lutava para ser o primeiro a ir à Lua. Com a Apollo X, ele até foi à Lua, mas não desceu. Outras reviravoltas do destino acabaram por fazer de Cernan o último homem a pisar em nosso satélite natural, durante a Apollo XVII, em 1972. Dirigido por Mark Craig e com base em sua autobiografia de mesmo nome, este documentário retrata a vida de Cernan por meio de ricas imagens de arquivo — Gene sempre fez muitos filmes caseiros — acompanhadas de músicas dos anos 1960. Cernan compartilha suas recordações durante visitas a lugares que marcaram sua vida, como San Diego, sua casa na época de astronauta, as instalações do projeto Apollo, museus e seu rancho no Texas. Com entrevistas com sua esposa, Barbara, uma ex-aeromoça, e colegas de trabalho como um ex-piloto naval, Jim Lovell (Apollos VIII e XIII), Dick Gordon e Alan Bean (Apollo XII), Tom Stafford (Gemini 9 e Apollo X) e Christopher Kraft, ex-comandante do programa espacial americano este filme foca mais em sua vida profissional que pessoal — o que é compreensível, dado que Gene sempre teve que colocar a carreira acima da família. No entanto, faltam algumas coisas: não se explica como o menino de fazenda virou piloto de caça em porta-aviões e apenas a sua filha mais velha, Tracy, participa do documentário. Incansável, Eugene Cernan jamais sossegou — após seus voos espaciais, passou a vida fazendo viagens e palestras de divulgação astronáutica — e faleceu há praticamente um ano, aos 82 anos de idade.

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The Captains (96 min., 2011) — Enquanto os verdadeiros astronautas chegavam à Lua para abandoná-la logo em seguida, os primeiros astronautas da TV ousavam ir onde nenhum homem jamais esteve. Apresentado, roteirizado e dirigido por William Shatner, este documentário nos apresenta um pouco da vida e da obra dos atores que deram vida ao Capitão da Frota Estelar em Star Trek (ST). O próprio Shatner foi o primeiro, atuando na série original de Jornada nas Estrelas (1966-69) como James T. Kirk, e busca entender como foram escolhidos seus sucessores e que impacto eles tiveram sobre esse papel (e esse papel sobre eles). Para descobrir isso, Shatner conversa com o shakesperiano Sir Patrick Stewart, que deu vida ao Cap. Jean-Luc Picard em ST: The Next Generation; o músico de jazz Avery Brooks foi o Cap. Benjamin Sisko em ST: Deep Space Nine; a Cap. Kathryn Janeway de ST: Voyager foi interpretada pela disciplinada Kate Mulgrew; Scott Bakula deu vida ao Cap. Jonathan Archer em ST: Enterprise e Chris Pine é a versão mais jovem de Kirk no filme de 2009. Em meio a viagens entre os EUA e a Europa para fazer as entrevistas, Shatner também fala de sua própria carreira e de como obteve o papel que o tornaria mundialmente famoso. Além dos capitães, também há entrevistas com fãs e com outros membros dos diversos elencos de ST. Carismático e brincalhão, Shatner garante muitos momentos divertidos ao longo de sua produção, mas não deixa de lado a discussão de situações sérias, como as longas jornadas de filmagens da franquia e o impacto negativo disso na vida familiar dos atores. Por fim, o ex-capitão Kirk procura saber como cada um de seus colegas vê a morte e admite algo que sempre escondeu: ele passou muitos anos envergonhado por ser reconhecido por seu papel no Star Trek original. Mais do que uma comemoração da longevidade da série, Shatner produziu esse documentário justamente para acertar suas contas com Kirk.

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Virunga (100 min., 2014) — Astronautas e atores que fazem papel de astronautas podem ter um trabalho difícil, mas não tanto quanto o dos funcionários do Parque Nacional de Virunga, no leste do Congo. Mundialmente conhecido por ser o lar dos últimos gorilas-das-montanhas, Virunga já foi cenário de diversos documentários, mas essa produção original da Netflix é diferente. Dirigido por Orlando von Einsiedel, este filme abre com uma procissão fúnebre e uma rápida contextualização histórica do Congo, país rico em recursos minerais mas que justamente por isso tem sido palco de sangrentos conflitos desde que foi praticamente privatizado pela Bélgica em 1885. Embora apresente a história e a recuperação de quatro gorilas-das-montanhas órfãos, o foco deste documentário está nas pessoas — tanto nas que buscam protegê-los, como os funcionários do parque quanto as que os ameaçam de extinção, como caçadores ilegais, grupos paramilitares e principalmente os apoiadores da SOCO, uma petroleira britânica disposta a fazer de tudo para explorar as supostas reservas de petróleo que teriam sido descobertas no parque. Apesar do sucesso da recuperação do parque após a mais recente guerra civil do país e do crescente apoio da população local, que começa a compreender os benefícios da preservação ambiental e do turismo, o governo congolês pouco se importa: concede quase todo a área do parque à exploração da SOCO. Enquanto isso, homens ligados à petroleira buscam sabotar o parque, distribuindo propinas e fazendo negócios escusos com o M23, um dos grupos paramilitares que infestam a região. São condições de trabalho desesperadoras, mas Emmanuel de Merode, diretor do parque, o guarda-florestal Rodrigue Katembo e o cuidador André Bauma mantêm a cabeça no lugar e buscam proteger o parque e seus habitantes — além dos gorilas, elefantes, leões e outros ícones da fauna africana, há milhares de pessoas, como pescadores e refugiados dos conflitos étnicos da vizinha Ruanda. Com recursos limitados, Merode busca documentar a corrupção que o cerca e para isso lança mão de entrevistas com câmeras escondidas feitas por Rodrigue. Fora do parque, o mesmo método é usado por Mélanie Gouby, uma jovem jornalista francesa que veio para educar as mulheres da comunidade, mas ficou para registrar o crescente conflito causado pelo avanço do M23 e a chegada da SOCO — e ela descobre indícios de ligações perigosas entre funcionários da petroleira, paramilitares e autoridades do governo congolês. Um desses funcionários chega a dizer que seria melhor para todo mundo se o Congo fosse recolonizado; outro duvida do comprometimento dos ambientalistas que protegem os macacos e diz que só se interessaria por eles se “cagassem diamantes e mijassem minério de ferro”. De fato, quando o conflito estoura ao redor do parque, as ações da SOCO sobem enquanto dezenas de pessoas são baleadas, mutiladas e mortas. O cenário é tão estressante que até um dos gorilas órfãos mantidos pelo parque acaba morrendo. De uma maneira ou de outra, não faltam mortes em Virunga, onde 140 guardas-florestais já foram mortos nos últimos anos e 9 gorilas foram massacrados em 2007. Após denunciar as ameaças e os esquemas de corrupção em Virunga, Rodrigue é preso e torturado por 17 dias; Merode sofre um atentado mas sobrevive após ser baleado diversas vezes. Nem tudo é violência, porém: o filme, indicado ao Oscar em 2015, também mostra as relações de afeto entre os gorilas e seus cuidadores e entre esses funcionários e seus familiares — o sonho de Rodrigue é fazer do filho um cientista.

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Gun Runners (89 min., 2015) — A violência armada também persiste em outro país africano, o Quênia. E no entanto é de lá que vêm alguns dos melhores velocistas e maratonistas do mundo. Como pode? Para descobrir como isso é possível, basta assistir esse documentário co-produzido pelo Canadá e o Quênia. Dirigido e roteirizado por Anjali Nayar, esse filme acompanha as trajetórias de Julius Arile e Robert Matanda, dois amigos de infância e ex-ladrões de gado. Depois de uma juventude marcada por uma vida de crime e esconderijos improvisados no mato, Arile e Matanda entregam suas armas em troca de anistia e… tênis de corrida. Pode parecer um mau negócio, mas esse programa de desarmamento — apoiado por Tegla Loroupe, primeira africana a vencer a maratona de Nova York — funciona ao ressocializar os ex-criminosos como atletas. Ou quase. Arile se dá bem no começo da nova carreira e depois de ganhar uma prova de província, representa sua comunidade numa corrida de ativistas anti-armamentistas em Nova York. Encantado com a perspectiva de uma carreira internacional e sonhando com uma vitória na maratona nova-iorquina, Arile abandona a família para viver entre centros de treinamento cuja maior qualidade é ter água e esgoto e tentativas de ganhar dinheiro em competições no exterior. Matanda, por sua vez, segue um rumo diferente. Apesar de acostumado a correr muito quando ladrão, ele não consegue manter o nível que se exige de atletas e, aos poucos, vai passando de ativista para líder comunitário e acaba se lançando em outro tipo de corrida, a eleitoral. Embora não sejam inteiramente bem-sucedidos em suas novas carreiras (o que gera críticas e desconfiança de seus familiares), Matanda e Arile certamente conseguem uma vida melhor e mais estável do que a que tinham quando viviam armando emboscadas no meio do mato. Longe de ser aquele documentário cheio de clichês inspiradores, Gun Runners mostra que a ressocialização pode ser ao mesmo tempo mais simples e mais complicada do que se imagina: trocar armas por tênis ajuda, mas às vezes falta algo mais. No caso de Arile, falta-lhe estabilidade tanto física quanto emocional enquanto Matanda carece talvez de educação e ceticismo — ao atuar como cabo eleitoral, tem certeza que será feito ministro após as eleições. Com boas reconstruções dramáticas, este filme também conta com entrevistas com Joshua Chesire, treinador; Jeroeen Deen, fisioterapeuta; Zane Branson, agente e empresário, além dos familiares de Matanda e Arile. Participações especiais de Tegla Loroupe e Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU.

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Reality-shows

Towies (2016 | 1 temporada) — É verdade que já recomendei programas desse tipo, que mostram a rotina de trabalho dos motoristas de caminhões-guincho e reboques. Mas dessa vez é diferente. A principal diferença está no cenário, pois Towies se passa na Austrália (o título é “rebocador” em “australianês”). Se operações de resgate e transporte de destroços de veículos acidentados do Canadá (vide Highway thru Hell, por exemplo) já nos chamam a atenção pelo clima que nos é exótico e hostil, o trabalho dos australianos pode nos parecer mais familiar. Como aqui, lá boa parte dos acidentes deve-se mais à imprudência do que ao mau tempo. Os obstáculos também são mais parecidos com os nossos: o calor escaldante do verão, capaz de sobreaquecer os veículos de resgate, e as areias fofas das praias, que podem gerar situações insólitas como um guincho encalhado ao tentar rebocar um barco também encalhado. Sim, porque além de virar caminhões tombados e tirar carros que caíram nas valas à beira das pistas, os towies também têm que lidar com veículos marinhos acidentados ou automóveis afogados num canal. Talvez por isso, Towies tem um ritmo mais frenético: os 10 episódios são curtos mas alternam-se entre dois ou até três acidentes em aproximadamente 20 minutos. Diferente das outras séries do tipo que já recomendamos, esta se concentra apenas numa única empresa familiar de guinchos, o que abre espaço para o lado mais pessoal e humano dos funcionários e funcionárias — embora geralmente trabalhem no escritório, às vezes as moças australianas põem a mão na massa e fazem serviços muitas vezes desprezados pelos homens.


Penn & Teller: Fool Us (2015 | 2 temporadas) — Shows de calouros voltaram à moda nos últimos anos, mas agora são mais específicos: em The Voice e The Voice Kids, mantém-se o mesmo modelo de cantores que aspiram à fama, mas o modo de julgar (ou jogar) é novo; em Master Chef e similares, mestre-cucas caseiros são desafiados semanalmente por cozinheiros profissionais. Como seria, então, um espetáculo de calouros que tem a mágica como tema? Quem quiser descobrir pode assistir esse programa apresentado por Jonathan Ross, onde o famoso duo de ilusionistas/céticos Penn & Teller deve ser enganado pelos três ou quatro concorrentes de cada episódio (~40 min. cada, exceto o piloto, que tem mais de 1 hora). Após uma breve perfil pré-gravado, cada mágico, ilusionista ou con artist (homens e mulheres de todas as idades, profissionais ou não) tem o direito de apresentar um número que consideram capaz de embasbacar Penn & Teller. Eles podem contar com o auxílio de Ross, de alguém da plateia ou, em alguns casos, dos próprios julgadores. O julgamento é feito de modo simultaneamente simples e enigmático: Penn faz comentários com referências óbvias ao profissionais mas obscuras ao público ou Teller faz um desenho esquemático que apresenta ao convidado (mas não ao público) antes de destruí-lo (o desenho, não o convidado – se bem que isso seria divertido de se ver). Quem engana os dois mestres no palco ganha o direito de se apresentar com o grandalhão Penn e o mudo Teller por uma noite em Las Vegas, além de levar pra casa um singelo troféu. Por fim, a dupla dinâmica também apresenta um número, geralmente de forma bem-humorada e às vezes revelando o segredo por trás de seus truques.

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