amigos ou inimigos…

AMIGOS OU INIMIGOS

papel da microbiota nas doenças inflamatórias intestinais

Existe uma classe de doenças que são denominadas Doenças Inflamatórias Intestinais (DII – ou IBDs, do inglês Inflammatory Bowel Diseases), que são marcadas por quadros de melhoras (remissões) e pioras (recidivas) e que, apesar de serem conhecidas e estudadas há bastante tempo, ainda possuem dúvidas a cerca de sua origem. As duas formas de DII são a Doença de Crohn e a Colite Ulcerativa – que apresentam muitas similaridades, mas ao mesmo tempo muitas diferenças (não só de intensidade e local das lesões, mas também na fisiologia da inflamação). Existe, inclusive, algumas hipóteses que propõem que o Crohn e a Colite não seriam doenças distintas, mas estágios diferentes de uma mesma doença.

 

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Figura 1: Aspectos observados da Doença de Crohn (preto) e na colite ulcerativa (verde). Em azul estão pontos de semelhanças entre as duas doenças.

 

A grande questão aqui, é que apesar de não sabermos a etiologia (o que causa, desencadeia) essas doenças, temos fortes evidências de fatores de contribuem para a cronificação desses quadros patológicos. De forma bastante simplificada, podemos dizer que as DII derivam de uma resposta desregulada do sistema imunológico do paciente contra componentes da microbiota intestinal, contando ainda com fatores predisponentes do hospedeiro (susceptibilidade genética) e do ambiente (alimentação, hipótese da higiene).

 

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Figura 2: Diversos fatores influenciam a cronificação das IBDs.

 

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Figura 3: Dstribuição mundial da incidência de colite ulcerativa. Observe: a) os maiores índices estão nos países desenvolvidos e ocidentais (América do Norte e Europa Ocidental). Atribui-se a isso dois principais fatores. O primeiro seria a dieta ocidental, muito rica em gordura e pobre em fibras. O segundo seria a hipótese da higiene, que propõe que o excesso de higiene na infância contribuiria para uma má maturação do sistema imunológico da criança, que tenderia a desenvolver doenças imunológicas no futuro, como asma e as doenças inflamatórias intestinais. b) os baixos indices apontados no Brasil, acreditamos que se deve ao fato de os casos serem subnotificados.

 

Durante o mestrado trabalhei com colite ulcerativa, com o propósito de propor uma terapia com a utilização de um microrganismo para reduzir o quadro inflamatório observado nos momentos de recidiva da doença.

Mas como assim!? Um microrganismo pra reduzir uma inflamação!?

Sim, é isso, mesmo… E não é uma ideia tão estranha quanto parece… Acompanha o raciocínio.

Não existe cura para as DII, os tratamentos envolvem terapias anti-inflamatórias. Essas drogas, porém, possuem efeitos sistêmicos, e muitas vezes os pacientes desenvolvem resistência. Além disso, o uso de antibióticos em quadros graves mostra eficácia na melhora do quadro (esse é um dos fatores que justificam uma participação da microbiota na origem e agravamento das DII). Considerando o que falei e o fato de que nos últimos anos existe uma tentativa crescente no incentivo ao uso de micro-organismos probióticos (como lactobacilos e bifidobactérias) para tratarem desordens intestinais, dentre eles quadros de infeção e inflamação, não é de se estranhar a proposta do meu projeto.

E como é possível que isso aconteça?!

Para isso temos que entender um pouquinho da fisiologia e da imunologia da mucosa intestinal.

Se esticados completamente, os intestinos humanos possuem uma área de aproximadamente 100-300mˆ2. Isso só é possível pois eles apresentam uma série de estruturas (dobras, viosidades e microvilosidades) que ampliam a superfície para a absorção dos nutrientes. As células epiteliais que delimitam essa área, estão fortemente unidas entre si e formam uma barreira física, que impede o fluxo aleatório de molécula ou de microrganismos do lúmen intestinal.

Associada a essa superfície, existe um muco que é secretado, formando proximalmente uma camada estéril, e externamente uma camada mais frouxa que é habitada por microrganismos mucolíticos. Esse muco não só protege as células da mucosa contra danos mecânicos do processo de digestão, como tem papel dificultando a chegada de microrganismos patogênicos..

Além disso, existe um sistema imune associado a essa mucosa, que é muito bem regulado de forma a interagir com uma gama gigantesca de moléculas exógenas e ao mesmo tempo não desencadear resposta contra elas. Como isso acontece ainda não se sabe completamente, mas essa tolerância e a supressão ativa são extremamente importantes para uma resposta rápida em quadros de necessidade.

Nos pacientes com colite ulcerativa, a susceptibilidade genética pode influenciar tanto na regulação do sistema imunolégico, quando na camada de muco, quando das junções das células da mucosa… Ou seja: nos três pontos de barreira contra a invasão de patógenos. O que acontece no final das contas é que, assim, a microbiota acaba entrando em contado com a mucosa e, assim, há uma forte resposta imunológica e um quadro inflamatório crônico se instala. Ocorre a liberação de anticorpos e moléculas antimicrobianas e ocorre alteração no perfil da microbiota intestinal.

Probióticos por sua vez atuam por meio de diferentes mecanismos:

  1. como barreira, colonizando o epitelio e atuando como barreira (por inibição competitiva por nichos) impedindo a colonização por patógenos
  2. promovem o aumento da produção e alteram a consistência da camada de muco, protegendo o hospedeiro contra bactérias invasivas
  3. Induzem uma maior secreção, no hospedeiro, de defensinas (moléculas antimicrobianas) e imunoglobulinas (anticorpos)
  4. produzem eles mesmos substâncias inibitórias como ácidos orgânicos e bacteriocinas
  5. regulam funções do sistema imune de mucosa, tornando-o mais anti-inflamatório e menos pró-inflamatório, por meio de estimulação de células específicas do sistema imune

A lista mostra os mecanismos de ação de diferentes probióticos. Cada um age de uma forma distinta, inclusive linhagens diferentes de uma mesma espécie podem ter ações opostas. Dois probióticos já são bastante utilizados no tratamento da colite. Um é a Escherichia coli linhagem Nissle 1917 e o outro é o VSL#3, uma preparação que contem 8 espécies de probióticos.

Só pra finalizar, por motivos obvios (os dados não foram publicados ainda) não vou falar dos meus resultados aqui além do fato de que tivemos dados muito interessantes.

3 thoughts on “amigos ou inimigos…

  • 18 de julho de 2013 em 16:23
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    Olá
    Minha noiva, de 28 anos, foi diagnosticada a pouco tempo com colite ulcerativa.
    Faz uns 2 meses que foi diagnosticada e os remédios parecem não fazer efeito no momento (nem corticóide nem qualquer outro). O que mais ajuda é dieta, discanso e não sei pq (meu médico de infancia não especialista que receitou) alguns antioxidantes.

    Entrei aqui por acaso.. (no tédio sempre abro o ScienceBlog e vejo o que tem de bom). Acho sempre legal ler coisas novas e fiquei feliz de ver um post sobre colite, ainda mais declarando uma luta contra essa doença, o que nos dá esperança, e por si só, é uma grande ajuda para quem sofre disso.

    Bem, imagino que tenha um pouco de genética mesmo (minha sogra tem), fatores aí biológicos que não manjo nada (só você) e stress (as recaídas dela são sempre em fases de stress). Higiene exagerada acho que não, já que ela nasceu em sítio tirando leite da vaca. A desesperança, desespero e stress é uma coisa realmente horrível na Colite, ainda mais que ela já sofria de ansiedade (por conta de um trauma recente). Imagino que um sintoma discreto mas bastante destruidor, mais do que a diarréia, é a falta de esperança e conhecimento. Daí, saber que existe gente estuadando a doenã, é , por si só, já parte do remédio e da cura.

    O chato é agora ela viver com uma alimentação bastante restritra (e eu por tabela rsrs). E infelizmente, tudo que é restrito é mais difícil de achar, é mais caro, mais diíficil de preparar e basicamente se faz só em casa...

    Outro grande problema é o preconceito que as pessoas tem. Acham que é frescura. Até mesmo os 4 (sim, 4 médicos de plano particular) que ela passou acharam que era frescura de algum modo; Até ser diagnosticada por um quinta e único médico competente de um PS do SUS do HU da USP (fica a dica).
    Isso claro, depois dela ter perdido 10kg em 3 meses e ter desmaiado após vomitar na enfermeira na triagem.

    Até ser diagnosticada os médicos mandaram ela se benzer, ir para terapia, fazer apenas dieta, tomar a cada semana uma injeção com antibióticos diferentes a esmo - sem teste ou biópsia nenhuma - fazer aculputura, tomar mais antibiótico (em pó, em pílula, líquido, o que tivesse a mão). E isso médicos. Imagina os outros, como chefe, professores e família?

    Obrigado, de verdade, por compartilhar informação e cultura (não a de fungos nem a de bactérias).

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    • 18 de julho de 2013 em 17:57
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      Oi Lucas,

      é sempre bom ouvir relatos pessoais, eu também tive um caso desses na família. O meu avô além colite ulcerativa, tinha câncer... Eu falava muito isso com minha amiga que desenvolveu um projeto semelhante ao meu no mestrado dela. É o que a gente fala: nós que estamos fazendo pesquisa de bancada ficamos muito longe da realidade das pessoas que estão no leito (sejam médicos e pacientes), e a recíproca é verdadeira. Muitos artigos citam esse dilema se as pesquisas devem partir do leito para a bancada X da bancada para o leito.

      vamos lembrar que: a gente está lidando com sistemas biológicos, que exibem variação. Sobre questão do stress, li alguns papers que não detectaram inflencia dele na colite (agora não lembro se era nos periodos de recidiva ou na intensidade dessas recidivas)... Não estou falando que você esteja errado na sua observação, só queria contrapor/problematizar essa questão.

      Um outro ponto, quando sito a questão da hipótese da higiene, a gente vê claramente essa questão quando analisamos a incidencia dessa doença em diferentes locais: países desenvolvidos X subdesenvolvidos e áreas urbanas X ruais. as taxas nos paises desenvolvidos e nas áreas urbanas são maiores. O que não significa que nos países subdesenvolvidos e áreas rurais não ocorram casos de colite - eles ocorre. E essas taxa coicidem com uma série de outras doenças de carater imunologico, como a asma, por exemplo. A questão da hipótese da higiene, é algo que vem ficando cada dia mais evidente na comunidade científica. A questão é que ela é *um dos fatores* que contribuem para o aumento da incidência, e não necessariamente a causa da colite. Conseguir exclarecer esse ponto!?

      Quando vc fala da questão dos médicos, isso é algo que a gente já tinha detectado por conversas. Os médicos não estão preparados pra detectarem isso, geralmente os melhores resultados são nos HCs mesmo... Inclusive aqui no HC da UFMG tem uma linha de pesquisa com IBDs.

      Mas infelizmente, é uma doença que não tem cura... a gente tenta fazer nossa parte pesquisando e tentando entender como essa doença funciona para tentar melhorar o quadro dos pacientes. AInda temos muitas duvidas e infelizmente (ou felizmente, dependendo do ponto de vista), as pesquisas não podem ser todas feitas em seres humanos. No meu caso, minha pesquisa era feita com camundongos e a colite induzida por métodos químicos, os sinais observados não são exatamente iguais aos observados em humanos... mas são muito parecidos, o que nos permite tentar uma transposição. A gente espera que sim...

      Obrigado pelo comentário,
      Tudo de bom pra você e sua noiva!

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  • 21 de julho de 2013 em 14:20
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    Grande texto, Samir.

    Eu acho mesmo que essa - um tipo de "medicina ecológica" (argh!) - será a saída no futuro. Matar os bichos não está funcionando bem, hehe.

    Quando a dificuldade dos médicos em diagnosticar esta e outras doenças algo raras é geral. Este é o tipo de doença que não dá para fazer diagnóstico com 15 minutos de consulta. Em hospitais universitários, por serem referência para casos mais difícieis, a coisa anda um pouco melhor.

    Obrigado

    PS. O HU-USP é 10 hehe. 😉

    Resposta

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