“Quantos tem de morrer para justificar o investimento? Cem pessoas? Mil? Dê-nos um número para só incomodá-los quando o dinheiro gasto em processos tornar mais rentável salvar vidas que matá-las”
Dr. Don Francis.
Sabe o que o filme “And the band played on” tem em comum com o momento que estamos vivendo? TUDO!
O Filme
Dirigido por Roger Spottiswoode e lançado em 1993 pelo canal de TV HBO, o longa americano And the band played on ou adaptado para o Brasil ‘E a vida continua’ traz um enredo baseado na história do livro de não-ficção mais vendido de 1987: And the Band Played On: Politics, People, and the AIDS Epidemic de Randy Shilts
O filme, que retrata o surgimento da AIDS nos Estados Unidos entre o fim dos anos 1970 e o começo da década de 1980, traz os desafios da ciência para enfrentar a doença até então desconhecida e identificar a nova ameaça – o vírus HIV.
O cenário é de muito sofrimento, mas também de preconceito, ativismo homossexual e interesses políticos e pessoais, que acabam sendo uma enorme pedra no sapato do avanço científico.
Esse contexto te parecer familiar?
Embora o enredo traga diversos atores envolvidos no cenário da nova epidemia entre cientistas, médicos, políticos, empresários, ativistas e pacientes, alguns se destacam, como o Dr. Don Francis.
Médico epidemiologista do CDC (Centro de Controle de Doenças), ele luta incansavelmente com os poucos recursos que têm e o apoio de colegas, como a Dra. Mary Guinan, na busca pela causa da doença e a forma de contágio.
Também merecem destaque Bill Kraus, homossexual ativista, e o Dr. Robert Gallo que é retratado no filme como um pesquisador sem ética que busca, a qualquer custo, receber os créditos pelo novo vírus.
A Cena da foto acima vemos Dr. Don Francis à direita e seus colegas do CDC, incluindo a Dra. Mary Guinan e o Dr. James Curran, que mesmo apoiando os esforços de Don, deixava claro que não conseguiria os financiamentos para a pesquisa e que nem tudo deveria ser divulgado para o público.
O método científico no filme
Ao longo do filme é possível observar uma equipe de pesquisadores franceses que empregam o método científico na tentativa de isolar o agente causador da AIDS.
Eles colhem material linfático de um paciente e analisam esse material, fazendo testes, errando, repensando, modificando a hipótese e refazendo os testes até obterem claras evidências científicas do novo vírus. Nesse momento, a equipe se dá conta de que é importante que uma agência independente analise e consiga replicar seus resultados.
Esse é um claro exemplo do Ceticismo Organizado, um dos Imperativos Institucionais da Ciência propostos pelo sociólogo Robert Merton em 1942. Esse imperativo destaca que na ciência deve haver uma predisposição constante à dúvida e ao debate junto aos colegas cientistas. Então, essa busca pela replicação dos resultados por outros cientistas mostra uma temporária ‘suspensão de juízo’ até que se disponha de todos os dados relevantes e uma análise crítica de outros colegas.
Ainda sobre o método científico, mesmo sem dinheiro para realizar testes, Don usa sua criatividade e imaginação com base em evidências indiretas que tem em mãos e propõe a hipótese de que a nova doença destrói as células de defesa do organismo ao observar um colega jogando o famoso Pac Man. Em seguida, propõe que a nova doença seria uma combinação entre outra duas doenças conhecidas.
“Tudo se encaixa. Esta doença parece com uma combinação entre leucemia felina e hepatite B. Não estaremos à procura de um novo vírus, Max? Como o retrovírus da leucemia felina?”
personagem Dr. Don Francis
Don estava partindo daquilo que já conhecia para tentar compreender o desconhecido. Isso está de acordo com as ideias do renomado filósofo da ciência Thomas Kuhn, que coloca o cientista como um ‘solucionador de quebra-cabeças’ imerso no paradigma vigente e não como um ‘descobridor de fatos’, desprovido de convicções e crenças.
Interesses, preconceito, mídia e divulgação científica
Como a doença inicialmente acometeu homens gays, o preconceito aflorou, especialmente numa época em que os homossexuais começavam a lutar por seus direitos, como vemos no ativismo representado no filme.
É nesse cenário que fica tão difícil para Don e seus colegas conseguirem financiamento para pesquisas sobre a nova doença – e por isso ele não tem dinheiro para os testes.
O governo não queria financiar pesquisas sobre a ‘imunodeficiência gay’, como nomeada pela mídia de forma pejorativa. Esse é um exemplo de que outro Imperativo proposto por Merton, o Desinteresse – que define a busca pelo conhecimento científico como desinteressada e sem influências externas – não ocorre na prática. Nem sempre a autonomia científica é, de fato, mantida.
O filme retrata que a ciência também esbarrava nos interesses da própria comunidade gay, que era resistente à recomendação dos cientistas de fechar as saunas, símbolos de liberdade sexual dos gays, para reduzir o contágio.
Outro desafio da ciência abordado no longa, que também não deixa de se relacionar a isso, foi o interesse dos empresários. Manter as saunas abertas pela rentabilidade que garantiam era mais forte do que proteger a vida das pessoas que as visitavam.
“Eu ganho quando as pessoas entram e vocês, médicos, ganham quando elas saem”
personagem Eddie Papasano, dono de uma sauna.
E os interesses dos empresários não pararam por aí.
Mesmo com algumas evidências de que o novo vírus poderia ser transmitido pelo sangue, os representantes da indústria dos bancos de sangue se recusavam a gastar dinheiro para realizar o exame de hepatite B nos doadores, proposto por Don para identificar pessoas contaminadas pela AIDS com 88% de eficácia. Apenas quando as mortes de hemofílicos que receberam transfusão aumentaram é que as empresas começam a ceder.
“Quantos hemofílicos mortos precisam? Quantos tem de morrer para justificar o investimento? Cem pessoas? Mil? Dê-nos um número para só incomodá-los quando o dinheiro gasto em processos tornar mais rentável salvar vidas que mata-las”
personagem Dr. Don Francis
Além disso, as distorções da mídia sobre a nova doença e o pânico instaurado nas pessoas em consequência é evidente no longa. Num primeiro momento, os principais veículos de informação simplesmente ignoraram a ‘doença gay’.
“Para a mídia não há interesse. Um jornalista me disse que a morte de gays só interessa aos gays e a aqueles que os querem mortos”
personagem Bill Kraus
Conforme ficou evidente que a AIDS também acomete heterossexuais, mulheres e até recém-nascidos, a mídia passou a divulgar os fatos científicos. Mas isso foi feito de forma distorcida, minimizando ou sensasionalizando o problema, gerando assim desinformação para a sociedade.
Mesmo um dos cientistas, o Dr. James Curran – porta voz do CDC, acredita que o público não deveria ser informado em detalhes sobre os fatos tanto para evitar pânico, quanto por questões de interesses políticos e financeiros – o que novamente, e de forma ainda mais evidente, mostra como o Imperativo do Desinteresse de Merton não é respeitado na prática.
James: Pensa que eu gosto do que faço?
Don: Não sei, você gosta?
James: Tenho que evitar que toda a nação entre em pânico, está bem?
Don: Isso seria pior que uma epidemia?
James: Não vou fazer inimigos entre os nossos potenciais patrocinadores. Lido com muitos fatores: políticos, burocráticos…
Don: E a ciência? E a medicina?
Esse trecho do diálogo com Don logo após o discurso de James em público não apenas exemplifica os problemas com o Desinteresse, mas também com outro Imperativo de Merton – o Comunalismo, que define os resultados da ciência como produtos de uma colaboração social que precisam ser divulgados publicamente.
Se a sociedade não sabe onde a ciência chegou, como poderá se posicionar perante as questões políticas que afetam diretamente a população?
Ciência, tecnologia, política e sociedade não podem ser desvinculados…
A controvérsia…
Uma disputa científica pelos créditos da descoberta do novo vírus também é apresentada no longa, indicando como nem sempre a ética acompanha a ciência.
Quando a equipe de pesquisadores franceses consegue isolar e fotografar o novo vírus com apoio de Don, mostrando que ele é diferente do vírus previamente proposto pelo Dr. Gallo como causador da AIDS, os problemas começam…
Gallo, que era famoso por seus trabalhos com retrovírus humano e que já havia até imaginado como seria reconhecido pela descoberta do vírus causador da AIDS, inicia uma busca desenfreada e antiética (de acordo com o filme) pelos créditos da nova descoberta e de sua patente.
Lá se vai o Imperativo Institucional do Desinteresse de Merton mais uma vez!
No contexto do filme: Enquanto publicamente ele discursava aparentando humildade, dizendo que seu único objetivo era ajudar as pessoas e salvar vidas, por outro lado iniciava essa controvérsia científica com a equipe francesa na busca pela credibilidade que, na realidade, ele não tinha. Sabendo que a disputa poderia levar anos nos tribunais e que seria a população quem sofreria as consequências disso, Don confronta Gallo.
Gallo: Meu nome está em todos os livros sobre retrovírus humano. Por que você prefere os franceses?
Don: É você contra os franceses? Pensei que eram todos contra o vírus. Se você for aos tribunais agora, todos perdemos. Você, aqueles que vão morrer enquanto você luta pela fama…
Gallo: Está bem. O que você quer?
Don: Quero que pare de transformar o holocausto num maldito concurso.
Gallo: Quer que [os franceses] fiquem com todo o crédito?
Don: Eu falo com eles. Aceitam discutir em particular. Temos de estar unidos. Não pode haver confusão entre cientistas perante o público.
Esse trecho do diálogo entre eles enfatiza como Gallo só se importava em receber os créditos pela nova descoberta.
E o que dizer sobre o problema de transparecer a falta de consenso científico entre pesquisadores, mencionado por Don, para uma população já terrivelmente amedrontada, mal informada pela mídia e que ainda estigmatizava a nova doença?
Claramente foram enormes os desafios enfrentados pela ciência no surgimento da AIDS, inclusive dentro da própria ciência!
É importante destacar que esta análise se refere ao que foi apresentado no filme And the band played on e não aos fatos ou pessoas reais.
Referências:
A função do dogma na investigação científica. Kuhn, T. E. [Salles (org.), J. D. Deus (trad.)]. Curitiba: UFPR, 2012, 69 pp.
Artefatos têm política? Winner, L. [F. Manso (trad.)]. The University of Chicago Press: EUA, 1986, 21 pp.
O Golem: o que você deveria saber sobre ciência. Collins, H.; Pinch, T. [L. C. B. de Oliveira (trad.)]. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010, 286 pp.
Os imperativos institucionais da ciência. Merton, R.K. In: J.D. Deus (org.), A Crítica da Ciência. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, pp. 37-52.