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Desinformação

Mercadores da Dúvida – Sim, eles continuam por aqui!

Mercadores da dúvida e o uso de estratégias que buscam semear dúvidas e evitar medidas regulatórias.

Foucault localiza no século XVIII o momento a partir do qual se forja uma situação favorável ao surgimento dos dispositivos que operam, no campo ontológico, pela construção do Outro como não ser. Para ele, localiza-se aí situação que produz e põe em circulação novas tecnologias de poder que, informadas por determinada visão da etnicidade ou racialidade, emergirão como exigências da sociedade de regulamentação.

Sueli Carneiro – Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser Pg. 28

Neste mês de maio, tive a honra de ser convidada a participar como pesquisadora/debatedora do Cinema Científico do Instituto Principia, um projeto de divulgação científica que reúne amantes do cinema e cientistas para debater questões e reflexões científicas sobre um determinada produção cinematográfica, e para a minha participação, foi escolhido o documentário Mercadores da Dúvida.

Mercadores da dúvida (Merchants of Doubt em inglês) é um documentário de 2014, baseado no livro de 2010 de Naomi Oreskese e Erik M. Conway, na qual apresenta, a partir de uma larga pesquisa histórica-científica, o uso de estratégias comunicacionais que visam confundir a opinião pública sobre questões éticas e regulatórias de determinadas industrias e empresas particulares. Conhecidas na comunicação como “indústrias do pecado”, essas industrias lucram com produtos que impactam a saúde, a qualidade de vida, e a sobrevivência da sociedade.

E como apresentado no documentário, sempre que evidências surgem sobre estes impactos, ou a sociedade sente a necessidade de discutir sobre a ética de suas atuações, ou sua regulamentação, há um investimento massivo em campanhas e estratégias comunicacionais de distorção da realidade. Alguns exemplos dessas industrias apresentadas no documentário foram: as indústrias do tabaco, agrotóxicos, substâncias químicas, bebidas alcoólicas e as que contribuem para o aumento dos impactos das mudanças climáticas.

Confira o trailer oficial do documentário

O Cinema Científico tem a duração de 1 hora e reúne pessoas presencialmente e online, e durante esta seção, muitas das perguntas realizadas, sozinhas, já dariam conta do programa inteiro, neste link é possível assistir a apresentação completa.

Sendo assim, separei para este texto, uma das perguntas como um exercício de desenvolvimento do assunto, além de incluir as referências que esqueci de mencionar durante o debate. Vamos a pergunta:

O documentário apresenta brevemente o conteúdo dos documentos vazados, dentre elas, a frase “Você não pode negar a evidência, mas semeiem a dúvida (...) a dúvida é o nosso produto” chamou a atenção por ter influenciando diversas outras áreas em como produzir desinformação, você pode comentar sobre isso?

Primeiro vamos contextualizar

O documentário começa o debate sobre o uso de estratégias que semeiam a dúvida, apresentando aquele que pode ter sido o caso mais emblemático sobre este assunto, a massiva propaganda tabagista, ocorrida de 1950 a 1990.

Na época, ao perceber o vazamento de documentos que comprovavam o conhecimento desta indústria sobre os efeitos nocivos do tabaco a saúde de seus consumidores, os responsáveis tomaram como posicionamento para o enfrentamente de crise, o planejamento e a execução massiva de estratégias de comunicação que distorcessem os fatos.

Dentre elas estão: as constante mudanças de discurso e enfrentamento a opiniões que afirmassem os malefícios do tabaco, negação e omissão de informações, espalhamento de desinformação, constante afirmação da retirada da liberdade de escolha e expressão, e até a culpabilização de outras industrias ou do próprio consumidor.

O documentário assume o tom de denúncia ao demonstrar através de documentos, vídeos da época e depoimentos que este posicionamento da industria do tabaco, não foi precipitado, mas sim, devidamente desenhado por uma empresa de relações-públicas, a partir de um planejamento estratégico que visava à promoção de uma campanha positiva do tabaco.

Este planejamento estratégico incluia o uso da credibilidade da ciência como validador do seu discurso, executados não só por cientistas que negavam o consenso científico ou comprovação científica dos malefícios do tabaco, mas também no uso de peritos que se posicionavam na imprensa e em audiências públicas como cientistas, além da produção de documentos que simulavam relatórios científicos reais. O documentário procura destacar que esses cientistas e peritos escolhidos pelas “industrias do pecado” não eram especialistas e nem realizavam pesquisas nas áreas debatidas.

O documentário também procura demonstrar que a estratégia de semear a dúvida não se limita a produção da informação, mas extrapola para outras instâncias, como a estratégia de infiltrar os peritos nos “Think Tanks”.

think tanks – organizações para análise e consultoria em pesquisas para fomento de políticas públicas (como o Instituto George C. Marshall) – e apoiados por grupos de empresários, lobistas e políticos, esses mal-intencionados cientistas ganharam espaço na mídia, disseminando dúvidas e inventando debates para temas já consolidados. Programas de financiamento de pesquisa de empresas com somas inimagináveis, até mesmo nos dias atuais, também foram usados para estimular pesquisas que corroborassem dúvidas, incertezas e o ceticismo, promovendo uma luta velada da ciência contra a ciência. MERCADORES DA DÚVIDA: CIENTISTAS CONTRA A CIÊNCIA

Esse posicionamento de enfrentamento de crise foi tão bem sucedido que levaram outras “indústrias do pecado” a adotaram, causando um atraso de quase 50 anos para termos algum resultado regulatório.

Outros conteúdos que discutem o assunto

Manipulação não é novidade

É sempre importante lembrar que esta discussão já faz parte dos estudos e pesquisas da comunicação a algum tempo, dentre os muitos trabalhos importantes sobre este assunto, está o de Perseu Abramo, publicado pela primeira vez em 1996, Padrões de Manipulação na Grande Imprensa.

O livro procura demonstrar padrões de manipulação na construção da informação jornalística, em uma época em que a imprensa não era tão influênciada pelas mídias digitais. Os padrões apresentados por Abramo demonstram como este funcionamento pode servir para distorcer a realidade, inviabilizar atores sociais, descontextualizar fatos e esvaziar debates.

Abramo desenvolve em seu livro 5 padrões, são eles: os padrões de ocultação; de fragmentação; de inversão, de indução e o padrão global (TV e Rádio). Em 2018, Rogério Christofoletti revisita a obra de Abramo buscando adaptá-lo a comunicação digital, sendo assim, ele acrescenta mais 3 padrões: o de abrandamento, escamoteamento e de embaralhamento.

Ainda na linha do digital, Cesar Augusto Gomes apresenta os 7 padrões de manipulação na construção de informação para mídias digitais, inspirado na classificação feita por Wardle e Derakhshan (2017), são eles: Manipulação do Conteúdo; Conteúdo Fabricado; Falsa Conexão; Falso Contexto; Conteúdo Enganoso; Sátira ou Paródia e Conteúdo Impostor.

E como fica os mercadores da dúvida na era da internet?

Entre outras instâncias que ficaram de fora do documentário, está no que Shoshana Zuboff chama de capitalismo de vigilância, que se trata da manipulação da informação já na construção das programações das máquinas informatizadas. Isso quer dizer que ao utilizarmos essas ferramentas dotadas de algoritmos em atividades comuns e, muitas vezes, fora do contexto informacional, estamos fornecendo um enorme volume de informações pessoais sem, necessariamente, termos percepção ou a opção de se negar a disponibilizar.

Esses dados coletados são vendidos àqueles que buscam direcionar suas propagandas, ou seja, o capitalismo de vigilância extrai informações, monitora comportamentos e personaliza resultados, e as vende a quem pagar mais por ela, enquanto busca brechas nos sistemas para continuarem atuantes e sem regulamentação.

Um exemplo dos casos emblemáticos sobre a influência desse capitalismo de vigilância na sociedade é o caso Cambridge Analytica condenada em 2019 por utilizar um aplicativo para coletar informações privadas de 87 milhões de usuários sem o conhecimento do usuário na plataforma Facebook em prol da disseminação de prpaganda da campanha Trump a presidência de 2016.

Na época a campanha Trump investiu, entre junho e novembro de 2016, US$ 44 milhões de dólares em peças de divulgação direcionadas, foram 5,9 milhões de versões diferentes de anúncios durante a campanha presidencial. Dentre elas, peças desinformativas contra sua concorrente de Hillary Clinton. 

Mais sobre este assunto: Capitalismo de Vigilância e o Twitter de todo dia, Campanha de Trump diz que foi melhor no Facebook. E FB concorda, Trump é condenado a pagar US$ 1 milhão por processo de má-fé contra Hillary Clinton

Nós vivemos uma era em que a comunicação a sociedade já não se restringe as regras da comunicação de massa, mas sim, coexistem e muitas vezes sucumbem as regras da comunicação digital. A informação produzida e distribuida pela imprensa já não é mais a principal fonte da sociedade.

A partir de uma lógica diferente da comunicação de massa, a comunicação digital possui suas próprias regras, funcionamentos e regulação que privilegia o lucro de seus financiadores, ao mesmo tempo que utiliza um sistema de exploração do conteúdista, o sucumbindo a produzir mais e mais conteúdos.

Dentro dessa lógica, milhões de novos conteúdo surgem, advindos dos mais diversos lugares, condições, pessoas, contextos e formas, sem a devida preocupação com a responsabilidade, checagem e o seu embasamento, e dentre inúmeros problemas advindos dessa lógica imposta pelas BigTechs, contribui para o esvaziamento da credibilidade da informação.

Estes conteúdos, assim como apresentado por Zuboff, são classificados e distribuidos de acordo com o perfil de cada indivíduo, facilitando a perpetuação das estratégias comunicacionais dos Mercadores da Dúvida advindas de 1950. Neste novo funcionamento, as mídias digitais privilegiam a visibilidade de conteudistas que corroboram os interesses de suas industrias pagantes, ao mesmo tempo, que convencem a sociedade que todos podem ser influencers, apresentando números de visibilidade impossíveis de serem verificados.

Falo mais sobre isso: O Influencer como Corpo Dócil

Quem é o influencer que extrapola o algoritmo?

Sueli Carneiro debate em sua obra Dispositivo de Racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser de 2023 o conceito do ontológico.

o ôntico se refere aos entes particulares, ou às determinações do ser, ao passo que o ontológico diz respeito ao ser enquanto tal. Então, raça, cor, cultura, religião e etnia seriam da ordem do ôntico, das particularidades do ser. O ser humano, especificamente, inscreve-se na dimensão ontológica [universal]. Pg 17

O ontológico é um funcionamento que antecede o digital e isso é perceptível no documentário ao observarmos as estratégias que visavam a falsa credibilidade científica.

Ou melhor dizendo…

Quem eram os peritos escalados para se posicionar como cientistas e defenderem os interesses dos mercadores da dúvida, dando a sensação de que os dois profissionais (peritos e cientistas) possuiam as mesmas condições de aprofundamento técnico/científico?

No vídeo é possível conferir o debate sobre mudanças climáticas entre William Sanford “Bill” Nye, cientista e divulgador científico e Marc Morano ex assessor público que promove a negação das mudanças climáticas

Observa-se que o perito ontológico escolhido, propositalmente, respeita o imaginário do cientista universal e portanto de credibilidade, ou seja, um ser humano masculino, de idade mediana (30 a 50 anos), branco e advindo do norte global.

Esse imaginário do cientista ontológico é tão presente, inclusive no Brasil, que de acordo com a pesquisa “O que os jovens brasileiros pensam da ciência e da tecnologia?” realizada em 2021 pelo INCT-CPCT, historicamente, os nomes de cientistas mais lembrados pela população brasileira são: Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Vital Brazil.

Retornando ao funcionamento da comunicação digital observamos a utilização do ontológico a partir da moderação do conteúdo na classificação e distribuição de conteúdo, como apresentado por Zuboff, mas também na moderação mecânica, a partir do que as industrias digitais entendem como adequado, ou seja, o ser universal.

Em 2020, a reportagem do Intercept denunciou o TikTok, por instruir aos seus moderadores a diminuirem o alcance e até esconder produções de conteúdo na plataforma que mostrassem pessoas consideradas “feias”, deficientes e até casas consideradas “pobres”.

Segundo as regras de moderação vazadas, vídeos que “difamam funcionários públicos” ou podem ameaçar a “segurança nacional” são censurados junto com favelas, miséria, barrigas de cerveja (sim, isso está escrito) e sorrisos tortos. Um documento chega a instruir os moderadores a observar paredes descascadas e “decorações de mau gosto” nas casas dos usuários – para, então, punir esses tiktokkers mais pobres derrubando artificialmente suas audiências.

Em outras palavras, o influencer que extrapola o algoritmo é aquele que as industrias pagantes entendem como mais adequados, ou melhor, os ontológicos, validados e credibilizados não só pelos números que as plataformas digitais disponibilizam, e que não podem ser comprovadas, mas também pela comunicação de massa, ao escalarem esses mesmos influencers como peritos de crediblidade, inclusive, científica.

Não esqueçamos que a comunicação é ferramenta do dispositivo

O conceito de dispositivo debatido por Sueli Carneiro, emprestado de Foucault, atua como ferramenta de constituição e organização de sujeitos, se trata de um conjunto heterogêneo que, dentre os seus diversos elementos, engloba leis, discursos, instituições, enunciados científicos, proposições filosóficas e organizações arquitetônicas.

A pesquisadora utiliza desse conceito para debater as diversas práticas pelos quais o racismo e a discriminação racial se manifestam na sociedade, focando seu olhar na educação.

Para a Sueli Carneiro a racialidade é “uma noção produtora de um campo ontológico, um campo epistemológico e um campo de poder conformando, portanto, saberes, poderes e modos de subjetivação cuja articulação constitui um dispositivo de poder

Neste sentido, assim como a educação, a comunicação também se trata de uma ferramenta do dispositivo, por reger práticas que constituem e o organizam os sujeitos, contribuindo para a segração, invizibilização e o epistemicídio, conceito também desenvolvido por Carneiro, que se trata do processo de destituição da racionalidade, da cultura e da civilidade do outro ao longo da modernidade ocidental.

A divulgação científica está lutando uma briga muito desigual?

Sim, a divulgação científica está lutando uma briga desigual. E essa resposta não é novidade para aqueles que estão trabalhando e pesquisando a DC.

O documentário Mercadores da Dúvida traz como fio condutor a indústria tabagista que dá início as estratégias da dúvida em 1950, e apesar da divulgação científica também estar presente na sociedade a bastante tempo, a DC não teve, ao longo do tempo, o mesmo suporte estrutural que essas industrias se propuseram a investir em comunicação.

No livro Manual de sobrevivência para divulgar ciência e saúde e na minha dissertação é possível verificar um pouco da história da DC

E mesmo que seja preciso reconhecer mudanças significativas no investimento da área, ainda hoje, é preciso que a DC se prove constantemente, seja no pedido de financiamento, na conversa de corredores, ou na negociação entre o uso do tempo para a atividade ou na produção do conteúdo para pares.

Ou seja, enquanto o divulgador científico se equilibra entre suas atividades para tornar a DC sustentável, os mercadores da dúvida já entendem e investem massivamente em comunicação a muitas décadas. E isso significa investimento financeiro, de pessoal qualificado, pesquisa e aplicação, tempo para adaptação e correção de estratégias, entre outros.

É urgente que a ciência entenda que produção científica não acaba na comunicação entre pares, mas sim, na comunicação a sociedade, e isso significa, que faz parte da cadeia de produção da ciência, destinar parte do trabalho a levar esse conhecimento para fora dos muros acadêmicos, e um dos caminhos, não o único, é a divulgação científica.

Divulgação científica consiste em inserir a ciência em domínio público, a partir de uma nova produção, a partir do conhecimento científico, que permita à sociedade se interessar, compreender e dialogar sobre a ciência. Por meio de recursos e suportes que saem do ambiente acadêmico e atingem a sociedade como um todo, o divulgador científico deve incluir em seu planejamento não apenas materiais que falem sobre resultados de pesquisas, mas conceitos, etapas e problemas da ciência, contribuindo assim para que o público possa utilizar esse conhecimento científico para suas tomadas de decisão. A Ciência e os Conhecimentos da ‘Cidade Invisível’

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