A frase título deste texto não é nenhuma surpresa para quem pesquisa e/ou trabalha com divulgação científica no século XXI. Vivemos a era digital, momento histórico no qual a comunicação é quase, em sua totalidade, instrumentalizada pelo digital.
Também não é surpresa para os que perpassam pelos meus conteúdos a minha militância quanto a divulgação científica offline e a defesa da recuperação das possibilidades perdidas ao fixarmos nosso olhar, na divulgação científica, apenas para o conteúdo que advém das mídias sociais. Assim, esse texto é mais uma tentativa de debate sobre a pergunta:
Nós precisamos movimentar todo o nosso esforço na divulgação científica para viralizar?
O que é conteúdo viral?
Para o dicionário – Que se espalha rapidamente pela internet;
Para a Wikipédia – O termo viral é utilizado para descrever um vídeo, imagem ou conteúdo escrito que se dissemina rapidamente entre os usuários da Internet;
Para o Meta – Um conteúdo pode se tornar viral e ser visto por muitas pessoas em um período muito curto de tempo.
Quem tem acesso ao viral?
No texto De qual internet falamos quando planejamos a Divulgação Científica pontuo como a ideia de que todos têm acesso à internet está bem longe da verdade. Os dados apresentados naquela discussão são de 2021, assim acho relevante para este debate atualizá-los:
Segundo o PNAD de 2022 e publicado em 2023, no Brasil 91,5% dos domicílios tinham acesso à internet.
Dos 91,5% dos domicílios que possuem acesso a internet:
- 62,1% são pessoas próximas aos 60 anos e 87,2% são de pessoas próximas aos 10 anos;
- 96,6% são pessoas da Centro-Oeste do país, do Norte são 82,4% e do Nordeste 83,2%;
- 72,7% são da área rural do país;
- 98,4% são estudantes da rede privada e 89,4% são estudantes da rede pública;
- Dos estudantes: 8,9% dos usuários acessaram a internet por conexão gratuita pública em escolas, universidades ou bibliotecas públicas. 26,7% são da rede pública de ensino.
Observe que quando falamos sobre acesso à internet em um país continental como o Brasil, não é possível afirmar que viralizar é sinônimo de que TODOS têm acesso ao conteúdo públicado nas mídias sociais.
As Bolhas digitais
Já aconteceu com você de todos a sua volta estarem comentando sobre um assunto ou um influencer, mas você não fazia ideia do que se tratava?
É claro que já passávamos por isso antes da internet, contudo, com a era digital, o fenômeno de bolha tem se intensificado, justamente pela lógica do funcionamento das redes sociais.
Bolhas: Lógica ditada pelos algoritmos da internet/redes sociais que criam filtros e classificações de postagens conforme os seus interesses, (apresentados como curtidas, comentários ou tempo de visualização, por exemplo) ou sobre conteúdos, mais acessados que outros. Esses filtros limitam o seu acesso às informações dispostas na internet, afetando assim a sua possibilidade de conhecimento, discernimento, tomada de decisão, e por consequência, o modo como agimos, pensamos e/ou aprendemos.
Por que liberdade de expressão não é desculpa para falar o que quiser na internet?
Quero deixar dermarcado que para além do funcionamento das bolhas comentadas acima, também fiz outro debate no texto “Quem é o influencer que extrapola o algoritmo?”, que vale a pena conferir como complemento.
E é nesse ponto que convido, você, divulgador de ciência, a pensar comigo!
O viral que você busca não se trata de ‘todo mundo’
Rita Segato não debate as questões da era digital em seu livro Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda, mesmo assim, tornou-se inevitável não pensar no funcionamento das mídias sociais ao passar pelos capítulos.
Uma promessa de existência social racional, como promessa de liberdade, equidade, solidariedade e melhoria contínua das condições materiais dessa existência social. pg. 69
A citação acima de Quijano, coletada por Segato, exemplifica este funcionamento comercial da ideia de espaço possível, gratuito e aberto a todos, que as big techs vem comunicando desde a expansão da internet, mas que, na prática, não acontece.
Ao longo de seu livro podemos fazer uma relação entre o debate da colonialidade com a obediência e fidelidade que nos submetemos a um sistema digital criado, gerenciado e mantido por empresas do norte global.
Essa obediência e fidelidade é camuflada pela promessa de resultados que é conseguida, dentre muitas estratégias, através da disciplinização do produtor de conteúdo e a insana inserção de conteúdos, mas que sabemos se tratar de uma forma de capitalização dos dados/informações de seus usuários.
A partir dessa organização eurocêntrica da produção e da subjetividade, por um lado, os próprios saberes passam a reger-se por uma escala de prestígio, e, por outro lado, o saber disciplinar sobre a sociedade estrutura-se, muito especialmente, a partir da relação hierárquica do observador soberano. pg 62
Dentre as problemáticas resultantes desses sistemas digitais regido por algoritmos que intensificam bolhas está, também, a diminuição do multiculturalismo ao impor regras, funcionamentos, lógicas e regulamentação que privilegiam os interesses dessas big techs, em detrimento ao regional.
O eurocentrismo é entendido, no contexto da perspectiva da colonialidade do poder, como um modo distorcido e que distorce a produção de sentido, a explicação e o conhecimento. pg. 58
Ao nos retirar a possibilidade do “espelho” retira-se toda a possibilidade de reconhecimento da própria realidade, de debates sobre as problemáticas regionais, luta por direitos, enfrentamentos e reação ao que consideramos errado ou injusto em nossa sociedade, se trata de
poder ver no espelho – raça, corporalidade, paisagem que nos habita – quem somos, de onde viemos, que linhagens podemos recuperar, que histórias interceptadas e censuradas podemos suturar com o presente de forma a lhes proporcionar futuro. pg 37 e 38
E aqui eu quero enfatizar que a imposição do funcionamento digital advindo das big techs não se limitam as mídias sociais, mas convence toda a estrutura civilizatória, de que só dessa forma funciona, portanto, outras formas são dispensáveis.
E como isso funciona na comunicação?
Incentivando o desmonte de outras formas de comunicação já pré-existentes:
- Segundo o PNAD em 2022 o número de domicílios do país com TV é de 71,5 milhões e de rádio 42,6 milhões;
- A TV é o principal meio de informação para 40% da população e o rádio para 7%, segundo pesquisa do PoderData 2021;
- Já a pesquisa do Instituto Ranking Pesquisa (2021) mostra que 55.8% da população aponta que a TV é o meio de comunicação mais confiável do país, já o rádio é a preferência de 50,9%.
Já a Pesquisa Percepção pública da C&T de 2023 aponta que
Observamos nas pesquisas acima que os meios de comunicação tradicionais continuam sendo uma importante e confiável forma de envio de informação a população, principalmente quando observamos os dados de acesso à internet apresentados no início desse texto.
Mesmo assim, vemos, conforme aponta o Atlas de Notícia de 2020 e publicada em 2021, uma redução significativa dos veículos de conteúdo jornalísticos regionais.
Figura 2: Distribuição do jornalismo local no Brasil — Atlas da Notícia
A pesquisa demonstra que o Brasil possuía, em 2021, 3.280 ‘desertos de notícias’
Desertos de notícias são regiões do país que não possuem nenhum tipo de veículo de comunicação jornalístico local. Isso significa que nesses locais, as informações não retratam problemáticas locais, como informações sobre onde se vacinar, por exemplo.
Outros dados importantes que esta pesquisa aponta e merece destaque em nosso debate:
- Em 2020, o país possuía 4.403 veículos via rádio, 4.221 veículos online, 3.229 veículos impressos e 1.239 veículos via televisão;
- Nos ultimos 30 anos, 602 veículos de jornalismo foram encerrados, sendo que 395 eram veículos impressos, 173 online, 25 via rádio e 09 via televisão.
O surgimento de pequenas iniciativas digitais no Brasil nos últimos anos ajudou a preencher espaços carentes de presença de jornalismo local, os chamados desertos de notícia, à medida que o número de veículos impressos encolheu significativamente. Observatório da Imprensa
As iniciativas digitais mencionadas na pesquisa como forma de preenchimento dos espaços carentes do jornalismo local representam um esforço significativo, que Segato chama de contraponto necessário ao eurocentrismo a partir da constituição de uma identidade, contudo a lógica de funcionamento do digital que propagandeia a ideia do espaço possível, gratuito e aberto a todos acaba por minar este esforço e o faz de forma velada.
Então do que se trata o ‘viralizar’ na divulgação científica?
O viralizar que defendo na divulgação científica não se trata de corresponder a uma lógica que privilegia quem paga mais, aliás, a própria ideia de que a divulgação científica PRECISA viralizar vem desse controle eurocêntrico do sistema que tem sua raiz na forma de exploração do trabalho.
O fato é que já desde o começo da América, os futuros europeus associavam o trabalho não pago ou não assalariado com as raças dominadas, porque eram raças inferiores […] A inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário. […] E o menor salário das raças inferiores pelo mesmo trabalho dos brancos, nos atuais centros capitalistas, não poderiam ser, tampouco, explicado sem recorrer-se à classificação social racista da população do mundo. […] tal articulação foi constitutivamente colonial, pois se baseou, primeiro, na adscrição de todas as formas de trabalho não remunerados às raças colonizadas. pg. 59
E para finalizar esse texto deixo algumas perguntas que acredito que a divulgação científica brasileira precisa se fazer com urgência:
- Afinal o que é mais importante no trabalho de divulgar a ciência a sociedade?
- Devemos continuar buscando o viralizar imposto pelas big techs ou devemos nos dedicar a falar com um público ‘reduzido’ mas que possibilite o diálogo?
- A divulgação científica deve continuar sendo pautada em números das mídias sociais?
- Faz sentido se colocar em situações insalubres como o hateamento, em prol do furar bolhas?
- Esses números inflados das mídias sociais servem para quem e para que?
- Quais foram os motivos que levaram você, divulgador científico, a dedicar seu tempo, sua vida e seu conhecimento adquirido a falar sobre ciência para a sociedade?
Precisamos nos perguntar, assim como Janelle Monáe faz na música Cold War:
Do you know what you’re fighting for? – Você sabe pelo que está lutando?
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Que artigo maravilhoso, encontrei os blogs da Unicamp recentemente, uma verdadeira mina de ouro para quem gosta de leitura e conhecimento. Eu estou estudando Marketing digital, posso usar o texto como referência em meu trabalho?