Como estruturar projetos de divulgação científica usando o LIDE?
Produzir e manter um projeto de divulgação científica vai muito além do “abrir um canal e sair falando sobre ciência”. E se você já visitou esse canal antes, sabe que o planejamento, organização e estruturação de um projeto em divulgação científica precisa ter diversos elementos adicionais a nossa vontade de falar sobre ciência em uma rede social da qual gostamos.
Estruturar projetos de divulgação científica com responsabilidade ética e social, perpassa pela definição de objetivos claros e de públicos-alvo, além do desenvolvimento de estratégias de engajamento e impacto social.
Por isso mesmo, o primeiro passo é ter muito bem definido o conceito de divulgação científica. Essa temática é e continua sendo debatida durante todo o meu trabalho e a definição do conceito que cheguei e utilizo é esta:
Divulgação científica consiste em
inserir a ciência em domínio público, a partir de uma nova produção, a partir do conhecimento científico, que permita à sociedade se interessar, compreender e dialogar sobre a ciência. Por meio de recursos e suportes que saem do ambiente acadêmico e atingem a sociedade como um todo, o divulgador científico deve incluir em seu planejamento não apenas materiais que falem sobre resultados de pesquisas, mas conceitos, etapas e problemas da ciência, contribuindo assim para que o público possa utilizar esse conhecimento científico para suas tomadas de decisão.
A Ciência e os Conhecimentos da ‘Cidade Invisível’
Com a definição do conceito de divulgação científica clara (para você e todos os integrantes de sua equipe), é hora de organizar e estruturar o projeto de divulgação cientifica, e para essa tarefa existem diversos modelos prontos que podem ser utilizados. Dentre elas destaco:
- Fiocruz – Apresentação de propostas para projetos de divulgação científica no campo da saúde
- Fapesp – Propostas de Bolsas de Jornalismo Científico do Programa Mídia Ciência – Essa bolsa é destinada ao jornalismo científico, mas possui uma estruturação que também pode ser aplicada a projetos de divulgação científica, em especial o item “Documentos necessários”.
- Manuais de Comunicação – Aqui está uma lista de Manuais de Comunicação que mantenho atualizado e também pode ser útil para a estruturação do seu projeto de divulgação cientifica
Mas, por aqui, vou propor o exercício de estruturar projetos de divulgação científica a partir da ideia do termo jornalístico LIDE.
Cabeça da Notícia, Lide ou do inglês LEAD se trata da
Abertura da notícia. Concentra o maior número de informações para facilitar uma leitura rápida. O jornalista procura responder a maior parte das seis perguntas básicas: O quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê? Após o lead, seguem informações complementares da notícia.
Glossário de Termos Jornalísticos – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
O Lide, no jornalismo, se trata da parte introdutória da notícia, normalmente localizado no primeiro parágrafo, seguindo a ideia da pirâmide invertida, em que procura sintetizar o conteúdo completo, logo no início, de forma que o leitor obtenha as informações básicas do assunto.
Pirâmide invertida é um jargão jornalístico para identificar um formato de textos em que a parte mais importante da notícia ou da informação é colocada logo no primeiro parágrafo. A pirâmide da informação seria invertida porque, ao contrário das pirâmides físicas, o mais importante estaria no alto, ou seja no início do texto. O formato tornou-se quase uma unanimidade na imprensa porque poupa tempo do leitor e permite que o texto seja cortado para adequar-se ao espaço editorial disponível, sem comprometer a qualidade da notícia ou da informação.
Para que serve a pirâmide invertida?
Na comunicação de massa, era também utilizado como forma de corte de informação, sem que se perdesse a fundamentação, em caso de falta de espaço. Já na comunicação digital, o lide também é utilizado como chamariz na abertura de suas produções digitais.
Nesta proposta de estruturação de projetos de divulgação científica vou propor outro olhar para o LIDE, usando sua estrutura de construção da notícia para pensar o projeto de Divulgação Científica como um todo.
O QUE
O primeiro item “O QUE” se refere ao conteúdo que o veículo jornalístico está noticiando. Nesta proposta de estrutura vamos trata o item como a essência do nosso trabalho, respondendo a pergunta: O que estamos divulgando? Ou seja, o conceito de divulgação científica que já foi definida no início desse texto.
Outro texto para pensar o que:
Quem
Ao nos propor a fazer divulgação científica pretendemos levar o conhecimento científico as pessoas, que não se trata de uma massa homogênea, única, geral e totalitária. Sendo assim, ter uma noção de quem queremos falar direciona o restante da estruturação do seu projeto. Não dá mais para pressupor que vamos atingir a sociedade toda, ou o famoso, falar com o público geral.
Por isso mesmo, a estruturação a partir do LIDE começa com o item QUEM:
Conheça o seu público! Mesmo que você não tenha um público ainda, na hora que você vai construir um podcast, vai tirar ele do papel, você tem que ter em mente: quem é que você quer alcançar. (…) Não existe público geral! Não tem uma forma de se falar com um público que é amorfo!.
Marina Monteiro Mendonça – Livro e Palestra no IEBDC – Encontro Brasileiro de Divulgadores de Ciência
Uma boa forma de dar início ao planejamento deste público pretendido é listar características dele, uma técnica conhecida na comunicação como persona. O importante desta listagem é não se restringir a gênero e idade, dados estes, que são normalmente entregues pelos analytics das redes sociais, por exemplo. Busque definir conhecimentos, gostos, estilos, interesses, objetivos e até uma rotina diária.
Pensar em alguém que já existe facilita a criação desta lista e na possibilidade de ajustes, uma vez que podemos “testar” o conteúdo com esta pessoa.
Público alvo se refere a um grupo de pessoas que se encaixam dentro do mesmo padrão. Por exemplo: Mulheres, de 30 a 40 anos, com filhos em idade escolar no fundamental 1 e 2, separadas, com formação superior e de classe média. Persona se refere a uma pessoa real ou fictícia que possui as características do seu público ideal. Por exemplo: Cristina, 38 anos, mora com a mãe de 70 anos e dois filhos de 12 e 14 anos, trabalha como vendedora de produtos farmacêuticos, de classe média, moradora de São Paulo, utiliza de transporte público, gosta de restaurantes e museus…
Como divulgar meu conteúdo de Divulgação Científica?
Usaremos, a partir de agora, como exemplo a persona citada acima:
- Nome: Cristina de Souza
- Idade: 38 anos
- Dependentes: mora com a mãe de 70 anos e dois filhos de 12 e 14 anos
- Ocupação: trabalha como vendedora de produtos farmacêuticos
- Classe Social: média
- Local: São Paulo
- Interesses e gostos: utiliza de transporte público, frequenta de restaurantes e museus.
A imagem acima é um conteúdo gerado por IA do acervo gratuito da Clorofreela
Outros textos para pensar o quem:
- Como divulgar meu conteúdo de divulgação científica nas mídias sociais?
- Público alvo, furar bolhas e outras coisas mais da Divulgação Científica nas redes
- A série do Percy Jackson flopou? Um exemplo do que é público
Onde
No material jornalístico o “onde” refere-se ao local em que ocorreu o fato noticiado, mas nesta proposta de estruturação do projeto de divulgação científica, o ONDE passará a significar o veículo de comunicação na qual sua informação científica será veiculada.
Ao entendermos que a divulgação científica deve “sair do ambiente acadêmico e atingir a sociedade como um todo”, fica evidente que a informação deve ser veiculada em veículos de comunicação onde seu público pretendido está e acessa e não no veículo que o divulgador de ciência gosta e prefere.
Mas não só isso, entender como funciona os gostos e a rotina do seu público trará elementos adicionais e úteis para a estruturação do projeto, como formato, dia e horário em que a informação deve ser veiculada, por exemplo. Deixo bem demarcado que recomendo, fortemente, que essa escolha não se restrinja a veículos digitais.
Utilizando o nosso exemplo:
A Cristina declarou ao nosso projeto de divulgação científica que utiliza o Instagram e o WhatsApp, mas que também gosta de se informar por outros veículos, como os podcasts e materiais impressos, que não exigem internet e não a “obriga” a estar com o celular na mão o tempo todo. Uma vez que, na maioria das vezes, o melhor momento para acompanhar as informações é no trajeto do trabalho e nas salas de visita de seus clientes enquanto espera para ser atendida.
Também não podemos ignorar que a Cristina mora com a mãe de 70 anos e os dois filhos adolescentes, sendo assim, as informações que circulam em sua vida não advém somente dos veículos de comunicação que ela acessa, mas da sua família. Sendo assim, também é válido pensar em estratégias que cheguem a família da Cristina.
Outros textos para pensar o onde:
- Não existe lugar certo para divulgar ciência
- Plataformas digitais, usuários de redes sociais e escolhas de conteúdos
Como
Depois de definido os dois itens acima, é preciso estudar COMO se dá o acesso ao veículo de comunicação que seu projeto escolheu. E para cada veículo de comunicação é preciso que se faça um planejamento estratégico diferente.
Utilizando o nosso exemplo:
Vamos pensar de forma bem resumida, cada um dos veículos de comunicação que a Cristina apontou:
Podcast – A Cristina mora em São Paulo e é de classe média, portanto podemos supor que ela possui um aparelho celular com acesso a internet de qualidade e memória suficiente para audios longos e possíveis de serem ouvidos offline.
Instagram – Esta plataforma priviliegia o imagético, sendo assim, conteúdos com uma boa qualidade visual é fundamental.
WhatsApp – Já esta plataforma privilegia a conversa rápida e com poucos caracteres e duração, conteúdos produzidos de forma resumida são melhores, mas não possiblita o aprofundamento do assunto, opte por coneteúdos de fácil acesso e que evite o download.
Veículos impressos – Possuem formatos e quantidade de espaço diferentes para cada veículo, são mais custosos, mas possiblitam a imersão do assunto sem a necessidade de internet, que já foi apontado como problemática pela Cristina, uma vez que está sempre em trânsito ou em locais que não há garantia de wifi.
Obs: Se o projeto considerar incluir os veículos de comunicação que a família da Cristina acessa, este mesmo planejamente deverá ser feito com cada um dos 3 familiares.
Sendo assim, para cada um dos veículos que o projeto escolheu adotar será preciso estudar e compreender como ele funciona para que o seu planejamento estrutural seja montado:
- Qual é o formato que a informação será veiculada?
- Por quanto tempo?
- Quanto tempo e custo será preciso para organizar, produzir, implementar e divulgar o conteúdo neste veículo?
- Para além do tempo e financeiros quais outros os recursos são necessários? Estrutura, de conhecimento, de pessoal.
- Etc.
Mas também será preciso entender como o seu publico pretendido acessa cada um desses veículos:
- Meu público prefere qual linguagem, qual formato?
- Em que momento do dia ele está mais interessado no meu tipo de conteúdo?
- Quanto tempo o meu público dispõe neste veículo de comunicação?
- Essa atenção é total ou fragmentada?
- Etc…
Outros textos para pensar o como:
- De qual internet falamos quando planejamos a Divulgação Científica?
- Capitalismo de Vigilância e o Twitter de todo dia
Quando
No material jornalístico o QUANDO se refereao momento em que o fato ocorreu, já neste exercício de estruturar projetos de divulgação científica vamos dividir este item do planejamento em duas frentes:
1 – Organizar a divulgação do conteúdo nos momentos potenciais de foco do meu público pretendido
Utilizando o nosso exemplo:
Cristina apontou 3 momentos do seu dia que ela está predisposta a consumir conteúdo informacional.
- Nos momentos em família
- Ao utilizar o transporte público
- Na sala de espera para ser atendida pelo cliente
Se o veículo de comunicação que seu projeto escolheu é impresso, o quando neste caso, não irá se referir ao tempo, mas ao formato, ou seja, materiais leves e de tamanhos que cabem na bolsa e são fáceis de serem transportados, são mais atrativos a Cristina.
Mas se o veículo de comunicação que seu projeto escolheu é digital, conteúdos que podem ser feitos download e com alertas em horários que a Cristina está no transporte funcionam melhor. Neste sentido, o projeto precisará organizar seus conteúdos para serem postados e/ou enviarem alertas nos horários mais comuns que a Cristina utiliza esse transporte.
Já ao considerar os momentos em família o projeto precisará incluir os familiares da Cristina nesta estrutura.
2 – Organizar a atividade de divulgar ciência dentro da que é possível ser feito na vida do divulgador científico
Neste ponto da estruturação o projeto já consegue vislumbrar um cronograma, mesmo que inicial, das atividades que deverão ser executadas, incluindo não só prazos e responsáveis por cada atividade, mas com a adequação a vida de cada um da equipe.
É claro que a cobrança pela visibilidade irá permear todo o projeto, mesmo assim, reforço que respeitar esse cronograma que dá o ritmo do projeto garantirá sua longevidade. E quanto mais detalhado e respeitoso esse cronograma for com a vida de cada um da equipe mais chances desse projeto não ser abandonado.
Falo mais sobre isso no texto: Então… O que é engajamento para você?
Por que
O POR QUE nesta estruturação acompanha o QUANDO e propõe a adequação de 4 itens na construção da informação:
- As particularidades de cada veículo de comunicação
- O que o seu público se interessa
- O conteúdo científico que o seu projeto pretende divulgar
- O assunto que está em alta na mídia
Claro que no dia a dia da atividade, a união desses 4 itens é quase utópico, uma vez que ele possui muito pontencial de visibilidade. Neste sentido é inevitável que o divulgador científico acabe por buscar esse conteúdo perfeito, ao mesmo tempo que precisa garantir a qualidade, a credibilidade e veracidade da informação científica. Esse movimento é o que França (2006) chama de servilismo à instância da recepção.
Isto é, ao escolher e construir a informação, o divulgador científico precisará se preocupar com a credibilidade e os preceitos éticos, mas sem deixar de atender a cobrança e a influência dos interesses da sociedade. Nesta prática, há uma eterna busca de equilíbrio entre as duas forças, uma vez que o emissor não pode permitir que a urgência do interesse do público o impeça a necessária checagem e verificação da informação, ao mesmo tempo que perder o timing desse interesse pode levar a invisibilidade da informação.
Para encerrar
Observe que o exercício proposto de estruturação do projeto de divulgação científica tem como base a manutenção do conhecimento de seu público, de início os analytics podem dar respostas uteis, mas com o tempo é fundamental que o projeto crie mecanismos de diálogo com este público.
Também é importante, que ao longo da execução do projeto, a equipe separe momentos de revisão e redirecionamento das estratégias estabelecidas. Neste texto eu faço um passo a passo sobre planejamento estratégico em divulgação científica que pode ajudar nesta etapa.
Referências
Na categoria “Comunicação para Divulgadores Científicos” deste canal existem outros textos que podem ser úteis para a organização e estruturação do seu projeto de divulgação cientifica.
CARNEIRO, Erica Mariosa Moreira; SOSA, Maria Clara Rodriguez; ARNT, Ana de Medeiros. A Ciência e os Conhecimentos da ‘Cidade Invisível’. Educação & Realidade, v. 48, p. e124635, 2023.
I Encontro Brasileiro de Divulgadores de Ciência: Debates e experiências coletivas / organizadores Ana de Medeiros Arnt … [et al.]. – São Paulo, Instituto Principia, 2023.
FRANÇA, Vera. Sujeito da comunicação, Sujeitos em comunicação. Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, p. 61-88, 2006.