No dia 19/03/2020 começaram a surgir notícias em diversos veículos de comunicação sugerindo a descoberta de um remédio para a cura da COVID-19. A droga hidroxicloroquina – usada para tratar malária – seria eficiente, também, para o tratamento de pessoas infectadas com o novo coronavírus. Essa informação foi anunciada pelo presidente Trump (EUA) em coletiva de imprensa, nesta quinta-feira (19/03), e se baseia num artigo de pesquisadores chineses publicado ontem (18/03) na Revista Cell Discovery. Apesar destas fontes serem confiáveis – ou seja, de não se tratar de uma “fake news” – e da notícia ser animadora diante do caos que estamos vivendo, vou explicar o porquê da gente precisar ter bastante cautela na hora de consumir esse tipo de informação.
Primeiro, precisamos pensar em que contexto se produzem essas notícias. Num momento de urgência de pandemia, o jornalismo – já acelerado – acaba entrando na onda de publicar o maior número de notícias o mais rápido possível, muitas vezes sem pesar o que elas podem gerar. É verdade, também, que alguns veículos de comunicação estão mais preocupados com o clickbait, ou seja, com a quantidade de pessoas que clica naquela manchete do que com as consequências que ela pode ter em termos de saúde pública. Mesmo que as informações sejam minuciosamente checadas e que o repórter tenha o cuidado de relativizar a descoberta científica (com expressões como “droga pode ser eficaz”, “pesquisa sugere”), as chances de uma informação ser mal interpretada pelos leitores é grande em tempos pandêmicos.
Manchetes como “EUA dizem que encontraram remédio que pode tratar coronavírus” podem fazer com que as pessoas se sintam mais “relaxadas” e descuidem dos cuidados básicos de prevenção – que são extremamente importantes no atual estágio da pandemia para evitarmos a proliferação do vírus no Brasil. Afinal, se a cura da doença está logo ali na esquina, por que adotar todas essas medidas restritivas de não sair de casa, não é mesmo? Só que não. O remédio ainda não está batendo nas nossas portas, acreditem.
Segundo podemos ver no artigo dos pesquisadores chineses publicado na Nature, a droga hidroxicloroquina foi eficiente em inibir a SARS-Cov-2 in vitro. Como assim? Este termo “in vitro” é fundamental no contexto que estamos. Assim, isto quer dizer, : o experimento foi realizado de forma controlada em laboratório, sem nenhum teste em organismos vivos.
E agora?
Esse é apenas o primeiro passo desta pesquisa, ou seja, muitas outras etapas precisam ser realizadas. Para afirmar que essa droga pode combater o coronavírus, é preciso realizar testes clínicos. Só assim os pesquisadores vão saber como a hidroxicloroquina se comporta no corpo humano no combate ao vírus. No artigo, os pesquisadores são prudentes em dizer a droga “tem potencial para combater a doença”, mas ainda se precisa uma “confirmação de testes clínicos”. Acontece que essa etapa ainda está em fase inicial. Segundo os pesquisadores do artigo, a China registrou sete testes clínicos para a hidroxicloroquina desde fevereiro de 2020, mas ainda não há evidências experimentais que provem que a droga realmente funciona.
Podemos aplicar essa lógica de divulgação antecipada sem provas a qualquer estudo sobre coronavírus que esteja sendo divulgado pela imprensa nos últimos dias. Ainda que os pesquisadores de várias partes do mundo estejam trabalhando de forma veloz para descobrir uma vacina ou testar medicamentos para curar pessoas infectadas pelo vírus – e que estejamos torcendo por eles -, a ciência precisa de tempo para provar experimentalmente que essas soluções funcionam. Depois, são mais alguns meses para que as vacinas e medicamentos estejam de fato disponíveis para a população. Compartilhar esse tipo de informação – sem os devidos “poréms”, à essa altura do campeonato, pode gerar falsas expectativas.
Por fim, ainda há um estudo que testou em pacientes doentes e em um grupo controle um tratamento similar, Hidroxicloroquina e azithromicina. Houve, sim, resultados significativos. Mas ainda assim é cedo para afirmar que o resultado é positivo, pois envolveram menos de 40 pessoas, sendo que apenas 16 fizeram o tratamento até o final com a combinação dos medicamentos. Se você não compreendeu isso ainda, volte ao início deste post e leia tudo até entender que: os testes têm sido feitos com MUITO POUCAS PESSOAS. Isto quer dizer que não se sabe efeitos a longo prazo, não se têm perspectiva se pode ser usado em qualquer condição (interação com outras patologias, medicações de uso comum para outros tratamentos), ou a quantidade ministrada, intervalo e outros detalhes específicos.
Com tudo isso, queremos dizer que: NÃO COMPRE MEDICAMENTOS NA FARMÁCIA COM BASE EM UMA REPORTAGEM DE JORNAL. Não faça estoques de produtos sem saber se isso será realmente importante. Mantenham a calma.
Algumas dicas que podemos compartilhar:
* Cuidado com notícias que afetam a sua forma de agir/ se prevenir em relação ao COVID-19.
* Ser equilibrado na hora da interpretação das matérias jornalísticas. Isto é, cuide com os dizeres: “Pode ser eficiente” ou “sugere que é eficiente” é diferente de “é eficiente” e “foi testado”.
* Ter responsabilidade na hora de compartilhar informação. Elas podem trazer esperança, mas também gerar falsas promessas.
* Hidratem-se, lavem as mãos, sejam gentis, cuidem uns dos outros, sem esgotar produtos a cada reportagem. Não se apavorem.
* Confiram a lista de links confiáveis que o Blogs de Ciência da Unicamp preparou para vocês;
Manchetes que vem circulando por aí e merecem cautela:
- “Pessoas com sangue tipo A podem ser mais vulneráveis ao coronavírus, diz estudo preliminar na China”. (Época Negócios)
- Estudo europeu aponta possível eficácia de remédio contra malária no tratamento do COVID-19 (Bahia Notícias)
- EUA dizem que encontraram remédio que pode tratar coronavírus (Exame)
- Coronavírus: remédio contra asma pode ser eficaz contra o novo contágio (Agência Brasil)
Para saber mais:
Liu, J, Cao, R., Xu, M et al. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro Cell Discov 6, 16 (2020) https://doi.org/10.1038/s41421-020-0156-0
Gautret et al. (2020) Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID‐19: results of an open‐label non‐randomized clinical trial. International Journal of Antimicrobial Agents – In Press 17 March 2020 – DOI:10.1016/j.ijantimicag.2020.105949