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Desinformação

Vacina contra o HPV e a desinformação acerca do início precoce da vida sexual dos jovens

Causou perplexidade em parte da sociedade a informação de que o atual governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) vetou o projeto que ampliaria a vacinação contra o HPV em escolas.

Dado que o câncer do colo do útero, causado por infecção sexualmente adquirida por certos tipos de Human Papiloma Virus (HPV), mata mais de 35 mil mulheres a cada ano nas Américas, a atitude do atual governador levanta a hipótese de que ele estaria colocando suas convicções morais e/ou religiosas acima do bem-estar das pessoas? Eu explico: 

OPOSIÇÃO NASCEU NOS EUA 

O câncer do colo do útero é a doença mais frequentemente relacionada ao HPV, uma vez que dois de seus tipos (16 e 18) causam 70% dos casos. Como ele é transmitido por contato sexual, recomenda-se que as vacinas (que podem reduzir significativamente o risco desse tipo de câncer) sejam ministradas antes da exposição ao HPV, portanto, antes da primeira atividade sexual.  

Por esse motivo, em meados da década de 2000, grupos conservadores estadunidenses transformaram uma recomendação científica numa polêmica. O grupo Family Research Council, um grupo ativista protestante que prometia promover a fé, a família e a liberdade, manifestou oposição à vacinação obrigatória contra o HPV alegando que a vacinação passaria uma mensagem de sexo seguro para crianças:

“Nossa principal preocupação é com a mensagem que seria entregue a crianças de 09 a 12 anos com a administração das vacinas. É preciso ter cuidado para não comunicar que tal intervenção torne todo o sexo seguro” (FORTSON, 2006).

O vice-presidente de política da entidade (à época), Peter Sprigg, reforçou a mensagem, em texto publicado no jornal The Washington Post:

A visão paternalista de que, apenas porque algo é bom para você, o governo deveria forçá-lo a fazê-lo, não é algo que a maioria das famílias americanas gostaria de receber, especialmente quando a transmissão do vírus pode ser evitada apenas por mudanças comportamentais.

O avanço científico que a vacina contra o HPV representa não deve nos distrair da verdade primária de que a abstinência até o casamento e a fidelidade no casamento constituem a melhor fórmula para a saúde sexual. (SPRIGG, 2006

Por conta desse debate, embora estudos demonstrassem que a vacinação contra o HPV não resulta em aumento da atividade sexual, é possível que vários conservadores tenham deixado de vacinar seus filhos e filhas com receio de que a “mensagem da vacina” fosse mais perigosa do que a doença que ela protegia / protege, deixando-os vulneráveis.

A IMPORTÂNCIA DA ESCOLA: UM RELATO

Imagem 1: montagem com captura de tela das matérias sobre a baixa adesão à vacina contra o HPV no jornal local de Campinas. Fonte: Captura 1: Sarah Brito, 14/03/2014, p. A11; Captura 2: Agência Anhanguera, 18/03/2014, p.A07, ambas do jornal Correio Popular, Campinas, SP.

Minha experiência quanto educador

No ano de 2014, atuando como professor do ensino médio numa escola pública de Campinas, SP, motivado pelo noticiário local (Imagem 1, acima), realizei um projeto sobre a vacinação contra o HPV (1), discutindo e problematizando com os estudantes a polêmica instalada e as causas que dificultavam a vacinação: a desinformação acerca do início precoce da vida sexual dos jovens.

Após a leitura de textos informativos sobre o Câncer do Colo do Útero e sobre o vírus HPV, os estudantes fizeram a leitura crítica de um cartaz de uma campanha publicitária produzida pelo Ministério da Saúde e foram desafiados a produzir um texto publicitário direcionado aos colegas daquela escola.

Na culminância do projeto eles apresentaram folderes, cartazes e até vídeos (incluído roteiro) produzidos com a utilização de seus celulares (Imagem 2, abaixo). Dessa forma, puderam refletir sobre o assunto proposto e desmistificar informações distorcidas que circulavam sobre a relação vacina-sexualidade. 

Imagem 2: cartaz publicitário discutido no projeto, banner de apresentação, foto de estudantes criando os cartazes, os cartazes e frame de vídeo sobre o HPV.

O VÍRUS E O CÂNCER

Segundo a Organização Panamericana de Saúde (Opas), o HPV é um grupo de vírus muito comum no mundo. Existem mais de 100 tipos de HPV, dos quais pelo menos 14 são cancerígenos (conhecidos como tipos de alto risco). Também há evidências científicas que relacionam o HPV com cânceres do ânus, vulva, vagina, pênis e orofaringe.

Embora seja uma doença altamente evitável, ela ainda é a principal causa de morte entre mulheres na América Latina e no Caribe, tendo taxas de mortalidade três vezes mais altas do que na América do Norte.

OS NÚMEROS DO CÂNCER DO COLO DO ÚTERO

Ainda segundo a Opas, em 2018, houve 570 mil novos casos de câncer do colo do útero no mundo, matando aproximadamente 311 mil mulheres, sendo que cerca de 90% dessas mortes ocorreram em países de baixa e média renda. No Brasil, segundo o Inca, a doença é o terceiro tipo de câncer mais incidente entre as mulheres: “Para o ano de 2022 foram estimados 16.710 casos novos, o que representa um risco considerado de 15,38 casos a cada 100 mil mulheres” (INCA, 2022).

DE ONDE VEM O VETO DO GOVERNADOR?

O governador justificou, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, que a Secretaria da Saúde já tem “políticas públicas vigentes” sobre o assunto, promove “campanhas de esclarecimento sobre doenças infectocontagiosas e sobre a saúde da mulher” e considerou “dispensável” o plano. 

No entanto, é notório o alinhamento ideológico do atual mandatário do Estado de S. Paulo com o ex-presidente que destruiu o Programa Nacional de Imunização sem nenhuma justificativa plausível. Estaríamos em pleno 2023 tentando importar uma polêmica estadunidense do início do século em detrimento da saúde da maioria da população, principalmente quando se sabe que essa população é de mulheres e de baixa renda?

Espera-se que a Assembleia Legislativa tenha consciência de que tal projeto é um assunto de saúde pública e derrube o veto para podermos diminuir a incidência dessa doença e menos mulheres sejam atingidas fatalmente por um moralismo que não fazia sentido antes e agora faz muito menos.

Para saber mais:

  1. Este relato consta de minha dissertação de mestrado “Letramento midiático e informacional: leitura de desinformação sobre vacinas na escola” (GOMES, 2023).

BIBLIOGRAFIA

FORTSON, Danny. Moral majority take on GSK and Merck over cancer drugs. Londres, The Independent. 11 jun. 2006. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/business/news/moral-majority-take-on-gsk-and-merck-over-cancer-drugs-481844.html . Acesso em 19 set. 2023. 

GOMES, Cesar Augusto. Letramento midiático e informacional: leitura de desinformação sobre vacinas na escola. 2023. 1 recurso online (434 p.) Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/9148. Acesso em: 20 set. 2023. 

INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. Dados e números sobre câncer do colo do útero.  Rio de Janeiro: INCA, 2022. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/dados_e_numeros_colo_22setembro2022.pdf. Acesso em 19 set. 2023

INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. Detecção precoce do câncer. Rio de Janeiro: INCA, 2021. Disponível em: 

https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/deteccao-precoce-do-cancer.pdf. Acesso em 19 set. 2023

SPRIGG, Peter. Pro-Family, Pro-Vaccine – But Keep It Voluntary. Washington D. C. The Washington Post. 15 jul. 2006. Disponível em: 

https://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/07/14/AR2006071401532.htm. Acesso em 19 set. 2023

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