Você sabe conceituar o fenômeno da desinformação? Pois é, os múltiplos conceitos são parte do problema da desinformação!
Uma análise de oito artigos que abordam a questão da desinformação estudados na disciplina Tópicos Especiais em Genética – Divulgação Científica e Saúde (NG110), mostra que ⅓ das definições sobre fake news neles citadas trazem o conceito “intenção de enganar” e apenas uma única citação abordando a ausência de fatos. Num cenário polarizado, em meio a uma guerra pela aprovação do PL 2630 em que o poder econômico das Big Techs tem um peso decisivo, qual o problema de se definir fake news a partir da subjetividade?
Desde que “fake news” foi escolhida a Palavra do Ano pelo dicionário Collins (2017) que o mundo experimenta uma grande dificuldade de encontrar um consenso para conceituar o fenômeno da desinformação que se agravou com a eleição do presidente Trump e do Brexit.
O referido dicionário a define como “informações falsas, muitas vezes sensacionalistas, disseminadas sob o disfarce de notícias”.
No entanto, de lá para cá estruturou-se um Ecossistema da Desinformação que complexificou o problema, deixando atordoados comunicadores governos e até a academia.
Autores e citações
Algumas evidências desse desencontro podem ser observadas em oito artigos, publicados entre 2018 e 2021, estudados na disciplina Tópicos Especiais em Genética – Divulgação Científica e Saúde (NG110). Em geral, os textos trazem citações na introdução, seção em que os autores procuram definir o que entendem por fake news, antes de descrever o método do trabalho.
Foram encontrados cerca de 23 trechos em que se dedicaram a expor o que se diz de fake news e/ou qual sua opção de conceito, mais adequada àquilo que acreditam. Os autores citados e o nº de artigos descrito no quadro abaixo:
Tabela 1: Lista dos autores citados nos artigos selecionados
AUTORES CITADOS | Nº DE ARTIGOS QUE CITARAM |
Allcott e Gentzkow (2017) | 03 |
Bakir V, McStay (2017) | 02 |
Tandoc, Lim e Ling, 2017 | |
Neves e Borges, 2020 | |
Wardle C, Derakhshan H (2017) | |
Recuero R, Gruzd A. (2019) | |
PAHO (2020) | 01 |
Lazer et al. (2018 | |
Guess, Nyhan e Reifler (2018) | |
Aymanns, Foerster e Georg (2017) | |
Bounegru et al., 2017 | |
Albuquerque, 2020a | |
Frias Filho, 2018 | |
Jorge, 2018 | |
Alcantara e Ferreira, 2020 | |
Bernd Carsten Stahl (2006) | |
Zattar, 2017 |
De modo que aparecem 17 autores nos referidos artigos, 06 deles citados em mais de um artigo e outros 11 em apenas 01. É possível que outros campos acadêmicos tenham muitos autores que possam servir de referência para um assunto, no entanto, nenhum tema pode ter quase duas dezenas de autores como referência, a não ser que esse campo ainda esteja buscando uma referência.
E isso pode se tornar um problema, conforme vai se verificar mais adiante neste texto. Do ponto de vista das definições, o quadro abaixo resume a direção que elas tomam.
Tabela 2: Lista classificando os conceitos citados pelos autores dos artigos selecionados
TIPO DE DEFINIÇÃO | Quantidade de Definições |
Intenção deliberada de enganar | 08 |
Simulam o gênero notícia | 04 |
Finalidade lucrativa ou política | 02 |
Ausência de fatos não é óbvia | 01 |
Aquela que viraliza | 01 |
Erro jornalístico | 01 |
TOTAL | 17 |
Fazem distinção entre DISINFORMATION e MISINFORMATION | 04 |
Adotam DESINFORMAÇÃO em lugar de FAKE NEWS | 02 |
Conceitos de fake news: vícios e virtudes
Pelo menos 08 citações definem fake news como sendo publicações que têm a intenção deliberada de enganar, ou seja, ⅓ das definições partem do princípio que os textos não factuais são formulados para enganar. O problema dessa definição é seu teor subjetivo, pois em que medida alguém pode cravar que o autor tinha essa ou aquela intenção?
Evidentemente, quem produz um texto não factual tem a intenção de enganar seus leitores, mas do ponto de vista da análise linguística é muito complicado comprovar esse tipo de intenção, porque muitas vezes pode ser que o autor de fato acredite que aquela história traduz uma verdade e ele tem a intenção de informar o seu público.
Muito mais coerente são as definições em que as fake news são conceituadas como textos que simulam o gênero notícia, isso porque pesquisas como a de Gomes (2023) já demonstraram que existe uma dificuldade maior em identificar as informações não factuais quando elas aparecem simulando esse gênero.
É possível também dizer que as fake news têm uma finalidade política, no entanto, essa é apenas um dos assuntos em que elas são produzidas, de modo que ficariam de fora, por exemplo, as informações não factuais sobre as vacinas, que podem ter finalidade política, mas não apenas.
Outras definições soam absurdas, por exemplo, a de Bounegru et al. (2017), para quem fake news são aquelas que “precisam mobilizar um grande número de públicos – incluindo testemunhas, aliados, reações e partilhas, assim como oponentes para contestar, sinalizar e desmenti-los” (DELMAZO e VALENTE, p.157).
Ora, se não viraliza não é fake news?
Pior é a definição de Jorge (2018); Neves e Borges (2020) para quem “uma notícia falsa poderia ser aquela mal apurada, com algum tipo de erro, como as de ‘primeira mão’ ou de ‘última hora’, que são, quando possíveis, corrigidas considerando os critérios do jornalismo” (SOUZA et al, 2021, p.03).
Além disso, algumas vezes a mesma citação contendo pequenas diferenças, como é o caso de Allcott e Gentzkow (2017) citados por Pasquima et al. (2020, p. 02) definiriam fake news como “notícias intencional e comprovadamente falsas, que poderiam induzir o leitor ao erro”.
Já os mesmos autores e texto, citados por Delmazo e Valente (2018, p. 157) definiram fake news como “artigos noticiosos que são intencionalmente falsos e aptos a serem verificados como tal, e que podem enganar os leitores”.
Quatro das citações – já numa perspectiva de ampliar o entendimento sobre o assunto – fazem referência à diferença entre misinformation (informações falsas ou enganosas) e disinformation (informações falsas que são propositalmente espalhadas para enganar as pessoas).
Além de Wardle e Derakhshan (2017), os mais conhecidos com essa perspectiva, Madacki (2021) cita Bernd Carsten Stahl (2006), que nessa perspectiva histórica seria o introdutor da concepção, quando a discussão sobre desinformação não estava posta nos termos atuais.
A única menção sobre “Desinformação” em lugar do termo fake news aparece no documento da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) para quem “Desinformação é uma informação falsa ou imprecisa cuja intenção deliberada é enganar” (PAHO, 2020, p.02). Essa definição da Opas, ao fim e ao cabo, assemelha-se às definições de fake news que a definem como informações com a intenção de enganar.
Mais sobre isso: Fake News, Desinformação e Infodemia. Qual a diferença?
Se pensarmos na discussão envolvendo o PL 2630, a principal crítica que se faz é sobre quem vai dizer o que é ou não fake news?
Sobre quem iria arbitrar nos casos dúbios. E essa não é uma crítica vazia, como se observa nos 17 autores que aparecem nos artigos estudados, há definições para todos os gostos. E há de fato motivos para se preocupar, uma vez que o próprio PL 2630 não define o que entende por fake news e (ao que fica implícito) essa atribuição será delegada ao Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, cujas funções e composição estão descritas a partir do artigo 25 do referido projeto de lei.
Quais serão os autores que vão referenciar os membros do Conselho? Isso sendo otimista e partindo do pressuposto de que eles vão pautar seus conceitos a partir de autores referência no assunto.
Então chegamos ao cerne do problema que se evidencia com o estudo dos autores dos referidos artigos: qual a concepção de fake news que esses autores trazem?
É preciso dispensar o termo fake news quando se fala em desinformação. Em primeiro lugar, concordo com Wardle e Derakhshan (2017), para quem o termo “fake news” é inadequado, ambíguo e simplista para descrever o fenômeno da produção, difusão e consumo de uma gama variada de informações e não dá conta tanto da natureza quanto da escala do problema.
Além disso, “ O termo também começou a ser apropriado por políticos de todo o mundo para descrever organizações de notícias cuja cobertura eles acham desagradável” (WARDLE E DERAKHSHAN, 2017, p.05). Nos artigos estudados aparecem autores que citam o fato de os atingidos por reportagens desagradáveis reclamarem como sendo um tipo de fake news, como o artigo em que Souza et al. (2021, p. 03) cita autores que utilizam o termo fake news para “desqualificar versões diferentes daquela abraçada por quem o emprega [Frias Filho, 2018, p. 43]” e “fake news pode ser tudo aquilo que ‘me desagrada’ e, assim, ‘o que é fake news para um fanático é verdade cristalina para o fanático da seita oposta’ [Frias Filho, 2018, p. 43]”.
Lista dos artigos utilizados nesta análise
Bibliografia
COLLINS DICTIONARY. Word of the Year. 02 nov. 2017. Disponível em: https://www.collinsdictionary.com/word-lovers-blog/new/collins-2017-word-of-the-year-shortlist,396,HCB.html. Acesso em 04 jan.2019.
Charge de capa pelo chargista Luiz Fernando Cazo