A escola não é uma fábrica de cidadãos

A pintura nos apresenta uma fila de operários, um ao lado do outro, como se estivessem em uma linha de montagem. Seus olhos, fixos em um ponto distante, expressam uma profunda melancolia. As cores são intensas e contrastantes, com tons de cinza e preto predominando, criando uma atmosfera pesada e opressora. Ao fundo, as chaminés das fábricas se elevam como gigantescos dedos acusadores, dominando a paisagem.
Obra “operários” (1933) - Tarsila do Amaral. O quadro retrata a industrialização do estado de São Paulo e a massificação do trabalho.

A escola não é uma fábrica de cidadãos. Primeiro porque não é fábrica e segundo porque não forma cidadãos.

A escola como condição de cidadania

Vamos começar pelo segundo ponto: Se cidadão é aquele que tem direitos (e deveres) em uma sociedade é extremamente elitista condicionar esta posição a passagem pela escola.

A escola pode ser interpretada como uma instituição que distribui alguns conhecimentos considerados válidos dentro da cultura hegemônica, isto é, para poder ser ensinado na escola, o conteúdo precisa ser considerado “valoroso” pela cultura dominante da nossa sociedade. Vamos chamar estes conhecimentos validados de capital cultural.

O capital cultural não tem seu valor definido pela sua finitude, visto que não se perde capital cultural ao distribuí-lo. Seu valor vem da escassez. É valioso pois é posse de poucos, é valioso porque o outro não o tem. E olhe que conveniente: quem define o que é culturalmente valioso é a elite econômica, política e social, que passa por consequência a ser também elite cultural.

A escola como reprodutora da sociedade

Uma escola pensada de forma acrítica, nestes moldes que diz formar cidadãos, é uma reprodutora da sociedade atual e do status quo ao distribuir o capital cultural de forma desigual. 

Veja que quanto mais tempo uma pessoa passa no sistema formal de ensino, provavelmente maior é sua posição social. Diagnóstico disso é que entramos no ensino infantil aprendendo a obedecer, pedimos permissão até mesmo para ir ao banheiro e conforme continuamos no processo educacional, vamos ganhando cada vez mais autonomia, sendo estimulados a fazer questionamentos e impor nosso ponto de vista.

Perceba que esta correlação traz uma promessa da escola como um local que permite ascensão social. Entretanto, quanto menos inserido na cultura dominante, mais o sujeito é rejeitado pelo sistema de ensino que privilegia aqueles que nascem dentro da cultura e já possuem alguns destes valores, como por exemplo, o apreço pela leitura.

Dado todo este contexto, ser cidadão é fazer parte da elite cultural? Alguém com mais tempo de formação escolar é mais merecedor de direitos? A cultura hegemônica é mais valiosa que outras culturas inseridas em nossa sociedade?

Se a resposta para qualquer destes questionamento é “não”, então segue meu ponto: a escola não forma cidadãos.

A escola como fábrica

Quanto ao primeiro ponto, isto é, da escola não ser fábrica, é preciso retomar o contexto histórico onde este pensamento foi defendido.

O sucesso das linhas de produção e do taylorismo dentro da lógica do modo de produção capitalista as transformou em sinônimo de eficiência e isto afetou diretamente o ensino.

Alguns educadores, como Ralph Tyler, inspirados neste cenário, propõem que elaborar o currículo escolar é, de forma resumida: 

  • Escolher quais os conhecimentos técnicos que devem ser ensinados, definindo assim, objetivos.
  • Determinar o processo mais eficiente para atingir os objetivos educacionais.
  • Propor avaliações para medir se os objetivos estão sendo alcançados.

Isto é, de certa forma, inserir a escola dentro de um modelo fabril. Existem diversas críticas a este modelo, mas vou me concentrar em duas.

Um grande problema desta ideia é a generalização do processo. Sabemos desde trabalhos como o de Piaget (biólogo, muito estudado no campo da psicologia da educação) que as pessoas respondem de forma diferente às mesmas experiências pedagógicas.

Isto implica que uma mesma aula pode ser muito efetiva para um aluno e para outro não ter muito significado. Ou seja, não há um método universal de ensino, muito menos o método “mais eficiente”. Além disso, voltando ao ponto anterior, a escolha de métodos generalistas normalmente vai privilegiar os estudantes vindos da elite cultural.

A escola como linha de produção

Um segundo problema é importado diretamente do modelo taylorista: os proponentes do currículo agem como “gerentes” de uma fábrica, tratando os professores como pessoas que passivamente irão adotar as ideias propostas pelo currículo formal e executá-las conforme dito, uma espécie de alienação do trabalho. Esta ideia não faz sentido algum, o professor é ator principal dentro da sala de aula. Durante a implementação das políticas educacionais, os documentos oficiais são interpretados e reinterpretados pela comunidade escolar que os compreendem e os contestam de diferentes maneiras e ao colocá-los em prática se tornam novos autores do currículo, o que Stephen Ball chamaria de contexto da prática.

O contexto da prática é uma das fases do ciclo de políticas. Conforme descrito por Ball, as políticas educacionais normalmente surgem a partir do contexto de influência, em que diferentes atores e grupos sociais disputam para influenciar uma política e legitimam o discurso base para esta política. Passa-se então ao contexto da produção de texto, em que este discurso precisa ser representado em documento oficial que vai ser resultado de disputas e acordos entre diversos atores políticos, podemos entender desta forma o fazer político como uma intervenção textual. Finalmente no contexto da prática que é o momento em que as políticas podem produzir efeitos práticos. Este contexto está sujeito a interpretação dos textos e a sua recriação,  não é simplesmente, um momento de implementação cega.

Perceba que os contextos do ciclo de políticas não possuem hierarquia de importância. Eles se influenciam mutuamente e podem ocorrer de maneira não ordenada e cronológica. E nisto o modelo fabril falha, ao não enxergar a importância do contexto da prática.

Assim entendo eu que não há sentido em tentar enxergar a escola como fábrica em qualquer sentido.

A escola não é uma fábrica de cidadãos. 

Para Saber Mais

APPLE, Michael W (2006) Ideologia e currículo. Porto Alegre : Artmed.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude (2023) A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis : Vozes.

MAINARDES, Jefferson (2006) Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, v. 27, p. 47-69, 2006.

TADEU, Tomaz (2023) Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte : Autêntica

Sobre Eduardo Sato 1 Artigo
Eduardo é bacharel (2014) e mestre (2016) em física e atualmente é doutorando em ensino de ciências do grupo PEmCie, além de coordenador de divulgação científica do Instituto Principia. Tem como principal interesse a divulgação científica, atuando tanto na pesquisa quanto na prática. Também é um dos organizadores do Encontro Brasileiro de Divulgadores de Ciências.

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