O colonialismo em Star Trek e a invenção do “Outro” do primeiro contato

O fundo da imagem é a foto de divulgação do Star Trek, com a equipe principal dos filmes históricos. à frente está escrito: O colonialismo em Star Trek e a invenção do “Outro” do primeiro contato- Como podemos pensar sobre conceitos de nação, cultura e colonialidade em histórias de ficção científica interplanetária? um texto de Layla Oliveira de Moraes
Texto de Layla Oliveira de Moraes

Vocês já pararam para pensar sobre as relações entre diferentes populações e espécies de filmes da ficção científica e como elas coabitam, tendo diferentes costumes, tradições e tecnologias? Em geral, há uma série de embates em torno de dominações, estabelecimento de democracias, repúblicas ou políticas autoritárias interplanetárias que envolvem estes filmes. Hoje nós gostaríamos de falar um pouco sobre essas relações, a partir de um debate sobre decolonialidade, em Star Trek…

Star Trek e a Frota Estelar

Foto com recortes verticais das personagens do primeiro elenco de Star Trek
Imagem de divulgação do elenco original da saga Star Trek

Star Trek (nome original) ou Jornada nas Estrelas (versão brasileira do nome) é uma série estadunidense dos anos de 1966 de ficção científica, sobre viagens interestelares em um futuro longínquo (o distante ano de 2063). Sendo que as viagens espaciais são feitas em naves que ultrapassam a velocidade da luz. Isto permite a exploração de lugares inimagináveis do nosso universo. Uma das consequências dessas viagens é o contato com novas formas de vida, novos povos, novas civilizações, novas culturas.

Essas naves fazem parte da Frota Estelar. A frota se configura como a instituição militar responsável pela defesa dos planetas filiados à Federação dos Planetas Unidos (organização política interestelar). Além disso, também é e pela exploração do espaço, realizando ações diplomáticas, o desenvolvimento científico e tecnológico, além do conhecimento sobre galáxias e seus residentes (FANDOM, 2024). Nos filmes e séries de Star Trek, portanto, a Frota Estelar é composta por integrantes das diversas nações que fazem parte da Federação (maneira como é chamada a Federação dos Planetas Unidos).

Nação: um conceito em questão

Entendemos aqui como “nação” as diferentes espécies de seres organizadas, de alguma maneira, como povos, população, ampliando a noção de Nação-Estado (país) para Nação-Cultura. Isto é, seres que compartilham um mesmo modo de vida. Assim como a percepção de seu mundo e suas interações com este mundo, interpretação de signos produzindo sentidos para eles, utilizando esse sistema de significação para 

definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permi­tem interpretar  significativamente as ações alheias. Tomados em seu conjunto, eles constituem nossas “culturas”.  Contribuem para assegurar que toda ação so­cial é “cultural”, que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um sig­nificado e, neste sentido, são práticas de significação. (HALL, 2017, p.16) 

Cultura e nação

Segundo a antropóloga argentina Rita Segato (2021, p. 207) “a cultura nada mais é do que a decantação da experiência histórica acumulada por uma coletividade, e o mito e os costumes, uma forma de condensação e simbolização desse processo histórico”. Utilizando a noção de Nação-Cultura construída anteriormente para os diversos povos humanos, mesmo pertencentes à mesma espécie, pode-se ter diferentes sistemas de significação distintos. Ou seja, uma mesma espécie pode constituir-se de culturas diferentes, construídas e alteradas historicamente por suas formas de perceber o mundo, vivenciá-lo e [inter]agir. Neste momento, vislumbramos, por exemplo, a Nação-Cultura Africana, a Afrodiaspórica, a Branca e as Nações-Cultura Indígenas[1]

Podemos entender então, que cada povo ou Nação-Cultura possui um conjunto de experiências e costumes, práticas sociais, que a individualiza como coletividade cultural. Neste sentido, propicia-se a construção de uma identidade aos seus integrantes e senso de pertencimento, além de sua identificação como um povo. Neste ponto, ao olharmos para as Nações-Cultura citadas no parágrafo anterior, conseguimos elencar práticas sociais que as distinguem, para além de características físicas racializantes (fenotípicas).

Mas, como os diferentes povos [inter]agem em Star Trek?

No que diz respeito à Frota Estelar, a interação com novas Nações-Cultura é regulada por diretrizes rígidas sobre o “primeiro contato” (apesar de nem sempre elas serem seguidas). A 1º diretriz da Frota Estelar diz que 

Considerando que o direito de cada espécie consciente de viver de acordo com a sua evolução cultural normal é sagrado na narrativa de Star Trek, nenhum membro da Frota Estelar pode interferir com o desenvolvimento normal e saudável da vida e da cultura de uma espécie alienígena.  Essa interferência inclui a introdução de conhecimentos, força ou tecnologia superiores num mundo cujo a sociedade é ainda incapaz de lidar com essas vantagens sabiamente. (LANDMAN, 2024). 

Dessa diretriz de Star Trek, podemos discutir três pontos relevantes. O primeiro é a preocupação na manutenção da subjetividade da coletividade a se conhecer e de um desenvolvimento sem perturbações externas, evitando, assim, o enfraquecimento e destruição das capacidades das nações de definirem “seus próprios modos de vida e ritmo e a direção de seu desenvolvimento” (HALL, 2017, p.19). Isso evitaria influências culturais e possíveis dominações de uma cultura sobre a outra.

No entanto, utiliza o mecanismo de inferiorização das demais coletividades que não compartilham da mesma cultura. Isto é, parte de seus pressupostos para valorar (incutir valores morais próprios) as culturas com as quais tem contato. Este acontecimento, ao longo dos filmes de Star Trek, é indicado pela suposta superioridade tecnológica, que é colocada como vantagem. Neste momento, identificamos a construção do “Outro”, do “não ser”. Este sujeito e/ou nação que necessita ser tutelado por essa entidade superior, a Federação, representada pela Frota Estelar, evidenciado pela “espécie alienígena”. 

Alienígena?

A palavra “alienígena” significa, segundo o dicionário online Oxford Language: “1. que ou quem é natural de outro país; estrangeiro, forasteiro; 2. FIGURADO: que ou o que pertence a outros mundos.”. Em um primeiro momento a palavra faz todo sentido, mas em uma época multiplanetária, quem não é estrangeiro? Quem não pertence a outro mundo? Ninguém! Todos são alienígenas a depender do referencial. Do ponto de vista de uma Nação-Cultura a outra é alienígena.  

Ainda podemos observar um viés colonial na narrativa de Star Trek, por mais que não se explore os povos como mão-de-obra, se explora o potencial natural dos planetas, sua flora, fauna e minerais, busca-se tecnologias e novos conhecimentos a fim de promover o desenvolvimento da Federação. Portanto, esse contato não é tão inofensivo quanto parece, pelo contrário, proporciona o acúmulo de riqueza material, mas também imaterial, por meio da apropriação de conhecimento.

Fazendo um paralelo entre a ficção e a realidade, percebemos que várias são as semelhanças, mas também as diferenças.

O processo de [inter]ação entre o povo branco com os povos africanos e indígenas não respeitou suas subjetividades, impondo sua cultura e sua percepção do mundo em detrimento da cosmopercepção desses povos. Interferindo diretamente em seus modos de vida, a Nação-Cultura Branca classificou a humanidade a partir de suas características físicas, racializando e hierarquizando os corpos e destituindo-os de humanidade (PINHEIRO, 2023). Assim, colonizou o continente africano e americano, explorando seus povos, suas terras, seus conhecimentos como se nada ali existisse antes de sua invasão, desqualificando as culturas e as organizações sociais pré-existentes de forma imperialista. 

Conhecimentos estes que foram e continuam sendo usurpados, numa constante Pilhagem Epistêmica, em que 

“um dos principais vetores de “produção oficial do conhecimento” beneficiando sempre os projetos e grupos econômicos, artísticos, raciais socialmente privilegiados, calcado na apropriação indevida de saberes indígenas, africanos e negro-brasileiros para o desenvolvimento de diversos campos, ao mesmo tempo em que há o apagamento do protagonismo dessas minorias, a ausência de qualquer retorno em benefício para suas fontes, bem como o extermínio simbólico e literal desses corpos colocados à margem da sociedade brasileira.” (FREITAS, 2022, p. 306)

De maneira devastadora, utilizando-se de uma superioridade auto-declarada, subalternizaram Indígenas e Negros, escravizando-os e impondo sua religião, num processo de demonização e apagamento das culturas individuais desses povos, afim de garantir o desenvolvimento econômico e se tornar a Nação-Cultura hegemônica. Conforme a educadora, filósofa e química brasileira Bárbara Carine Pinheiro (2023, p.17), ao diminuir o outro, se produz os meios de dominá-lo, inaugurando um novo modelo de produção baseado na acumulação primitiva de capital.

Foi sob a égide da negação do outro que a colonialidade foi erguida, produzindo “um padrão subjetivo de subalternidade do sul global perante o norte global, uma subalternidade para além da dimensão territorial. Ela também está relacionada à construção de um padrão ético, estético, epistêmico,(…) religioso (…)” (PINHEIRO, 2023, p. 107), que perdura mesmo após o fim da escravidão, fundando, segundo a filosofa brasileira Sueli Carneiro (2023, p.19), “novas formas de assujeitamento racial”. A esse “apagamento das particularidades e diferenças locais”, o sociólogo jamaicano Stuart Hall (2017, p.18) deu o nome de “homogeneização cultural”. 

Entretanto, o problema das Nações-Cultura Africana, Afrodiaspórica e Indígenas não se encontra na conservação da cultura, como aponta Rita Segato (2021, p. 205), mas, no “fazer a desintrusão de sua história, que foi interrompida pela irrupção autoritária do colonizador, seja este o enviado das metrópoles europeias ou a elite eurocêntrica autóctone que construiu e administra” o Estado planetário.

Finalizando

A parte final da Primeira Diretriz da Frota Estelar [2] em Star Trek diz que ela não pode ser violada, exceto para corrigir uma violação ou contaminação realizada anteriormente desta diretriz. Mesmo possuindo atos classificáveis de colonialismo, a Frota Estelar entende que interferir em uma Nação-Cultura é uma violação grave, em que a introdução de uma ínfima quantidade de  patógeno pode contaminar e alterar, até destruir, outras Nações-Cultura.

Diferentemente, a colonialidade não pretende corrigir suas violações, tampouco os efeitos provocados por elas. Pelo contrário, há uma luta permanente da branquitude pela manutenção de seus privilégios alcançados e acumulados em detrimento das violações cometidas contra os povos Negros e Indígenas, haja visto a contrariedade às Leis de Cotas e o Marco Temporal sobre a demarcação de Terras Indígenas. As reparações e correções de distorções ocorreram, ocorrem e continuarão ocorrendo devido aos movimentos de resistência desses povos, desde o primeiro contato, para preservar sua cultura e sua identidade, sua Nação-Cultura mesmo, muitas vezes, não estando em seus territórios ancestrais.

Observações

  1. Separamos Nação-Cultura Africana e Afrodispórica, pois apesar de igualmente Negras e atingidas pelo colonialismo e o holocausto Negro, as populações em África conhecem o lugar de onde vieram e tem acesso a sua Ancestralidade de alguma forma, enquanto a população Afrodiaspórica se encontra em um “não lugar”, não pertencendo ao lugar que nasceu e não tendo para onde voltar, já que lhe foi usurpada a dignidade de conhecer sua Ancestralidade.
  2. Em Star Trek, os membros da Frota Estelar não podem violar a Primeira Diretriz, mesmo para salvar as suas vidas e/ou a sua nave, a não ser que eles estejam a corrigir uma anterior violação ou contaminação desta diretriz. Esta diretriz têm precedência sobre todas as outras considerações, e carrega consigo a maior obrigação moral.
  3. Sim, gostamos de Star Trek! Fazer uma análise de conceitos, como parte de exercícios teóricos, tanto quanto parte de um olhar crítico aos mesmos filmes que crescemos apreciando, faz parte da vida acadêmica e adulta.

Para saber mais

CARNEIRO, Sueli (2023) Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zaar, 431p.

FANDOM (s/d) Frota Estelar – Star Trek Unlimited.

FREITAS, Henrique (2022) Pilhagem epistêmica, In: Doris Cristina Vicente da Silva Matos e Cristiane Maria Campelo Lopes Landulfo de Sousa (Org.) Suleando conceitos e linguagens: decolonialidades e epistemologias outras, Campinas, SP: Pontes Editores, p305-312.

HALL, Stuart (2017) A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo, Educação & Realidade, v22, n2.

LANDMAN, Mdaniel (2024) Diretrizes da Frota Estelar.

Pesquisa Google (2024) Alienígena.

PINHEIRO,  Bárbara Carine Soares (2023) Como ser um educador antirracista, São Paulo: Planeta do Brasil, 160p.

SEGATO, Rita (2021) Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda, Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 345p.

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A autora

Layla Oliveira de Moraes é Mestranda PPG Multiunidades em Ensino de Ciência e Matemática (PECIM) – Unicamp, integrante do Grupo de Pesquisa PEmCie, Técnica em Assuntos Educacionais – Unifesp, onde integra a Câmara Técnica de Equidade Racial. Graduada em Ciências Biológicas – Unesp/Bauru e pós-graduada em Ensino de Ciências – UTFPR. Atuou na educação básica, como docente no ensino fundamental II – Ciência e como coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena – NEABI – IFMS-AQ.

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