Nação e unidade nacional

O presidente Jair Bolsonaro dá posse à equipe ministerial no Palácio do Planalto. Foto: Roque de Sá/Agência Senado.

Nação. O termo tem ganhado os holofotes novamente. Desde a ascendência do neoliberalismo nos anos 1980 (em nosso caso, mais tardio, 1990), os Estados nacionais perderam prestígio no interior das ideias econômicas predominantes, embora isto não ocorresse, necessariamente, nas práticas econômicas. Seguindo um binarismo segundo o qual mais Estado significa menos mercado e segundo o qual não há uma relação entre Estado e mercado no âmbito econômico, teoricamente entendia-se que os mercados haviam superado as amarras do Estado.

Contudo, a realidade nos mostra que os Estados continuaram a ter considerável protagonismo e que, portanto, a expansão da sociedade de mercado continuou abraçada à existência de Estados nacionais. Afora o binarismo ingênuo ou desleal, mesmo autores filiados à tradição do liberalismo econômico reconhecem a importância do Estado para a expansão da economia de mercado. O Estado deve criar o quadro institucional apropriado à expansão dos negócios. Este quadro institucional pode ter significados concretos distintos, a depender do momento histórico. Por exemplo, o Estado deve ser responsável por criar mecanismos de financiamento e construção dos fios que formam a teia de relações comerciais, seja internamente ou com outros países. Se o Estado o fará através da criação de empresas públicas ou se o fará dando incentivos para as empresas privadas já existentes, dependerá da conjuntura histórica.

Seja como for, desde a Revolução Francesa, o Estado precisa justificar, ao menos no plano das ideias, a pertinência da política perpetrada. E aqui entra a nação. O Estado pode argumentar, à moda do império inglês sob Disraeli, que a expansão sobre outros povos mostra a pujança daquele que domina, seu espírito esclarecido ou, para usar termo mais atual, sua capacidade inovadora. Neste sentido, qualquer indivíduo genuinamente representante da nacionalidade merece receber os frutos do domínio comercial de “seu” Estado. E, assim, o ideal de pertencimento segundo a nacionalidade supera clivagens internas como, por exemplo, entre ricos e pobres.

Acontece que, no caso de Estados menos poderosos, a capacidade de expansão de seus domínios comerciais é mais restrita, dependendo ou de sua força para enfrentar Estados poderosos ou de sua habilidade para galgar posições no guarda-chuva do Estado hegemônico da vez. Para estes Estados menos poderosos, coloca-se o dilema da nação ou da unidade nacional. Embora as falas sempre remetam ao termo “nação”, a distinção é importante para entendermos a posição ideológica do atual poder executivo federal no Brasil.

Em nosso país, a nação, tal como pensada nos anos 1950, reporta-se ao ideal de homogeneidade social: a superação da segregação social que vem desde a estratificação escravista. Nos anos 1920-30, no entanto, a nação foi utilizada, por autores que passaram distantes da semana de arte moderna, como subterfúgio para defender a unidade nacional: o tema central não era a superação da segregação social, mas a reconciliação entre as elites. A tarefa de decidir o que era melhor para o povo caberia à elite, uma vez que: considerava-se que havia incapacidade cívica da população; argumentava-se que o convívio entre os dois países, o dos pobres e o dos ricos, era pacífico graças aos ensinamentos civilizatórios da família patriarcal.

Chegando aos tempos mais recentes, cabe-nos assinalar que a luta do povo pela homogeneidade social emergiu, de fato, através das reivindicações de distintos movimentos, como, por exemplo, daqueles que representam a valorização do legado da afro-diáspora; do movimento LGBT e do movimento feminista. Embora isto não signifique, necessariamente, consenso diante de todas as pautas, as forças demandam redução das desigualdades econômicas, igualdade legal e respeito à diversidade.

Contra isto foi erigida novamente a ideia de “nação” como unidade nacional. O discurso do novo presidente durante a posse do Ministro da Defesa deixa claro: “o povo, em sua grande maioria, quer hierarquia, quer respeito, quer ordem e quer progresso”. Por fim, ficou manifesto que esta manutenção da unidade nacional, o retorno da família (patriarcal) como agente civilizatório, está diretamente relacionada às novas exigências para a expansão da economia de mercado, como fica visível nas falas do Ministro das Relações Exteriores: “Menos Estado e mais nação”; “A nação ainda é o único lugar onde a economia livre e a sociedade aberta podem se juntar”; “Se não há nação, família, cultura, história, heróis ou tradição, a economia não pode ganhar o coração das pessoas”. Que tradição é esta senão a escravista? Que família é esta senão a patriarcal? Que economia livre é esta, senão aquela que garante um dos mais vexatórios padrões de concentração da riqueza?

Nestas terras periféricas, a plasticidade da elite para modernizar seus padrões de consumo caminha de par com a sedimentada segregação social. Desta maneira, mínimos questionamentos a esta tradicional ordem social são considerados perturbadores; e toda demanda social, em vez de ser acolhida pelo espaço público, deve esperar a benevolência da elite no âmbito da “tradição” e da “família”. Mantém-se a unidade nacional, a identidade entre as elites distantes do povo, e a nação segue fraturada.

 

Ulisses Rubio Urbano da Silva, Graduado em Ciências Econômicas pela UNESP. Mestre e Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da UNICAMP, enfatizando estudos em História Econômica. Pesquisas em Pensamento Econômico Brasileiro. Atualmente leciona Economia e disciplinas da área de gestão no IFSP campus São João da Boa Vista.

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