A Autonomia do Banco Central do Brasil

Edifício sede do Banco Central do Brasil, 2015. Fotos produzidas pelo Senado Federal do Brasil.

Por Alexandre Favaro Lucchesi*

O Senado aprovou em 3/11/2020, por 56 votos a 12, projeto para promover a autonomia operacional do Banco Central do Brasil (BACEN), seguiu agora para a Câmara dos Deputados. Votaram contra, além dos seis senadores do PT, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES), Regufe (Pode-DF), Weverton Rocha (PDT-MA), José Serra (PSDB-SP) e Zenaide Rocha (Pros-RN).

O texto foi aprovado na Câmara dos Deputados nesta quarta-feira 10 de fevereiro de 2021, já na pauta do governista Arthur Lira (Progressistas-AL), apoiado por extremistas e moderados.

O “novo” papel do órgão regulador seria agora, segundo o texto proposto, assegurar a estabilidade monetária e também buscar, “na medida de suas possibilidades”, o fomento ao pleno emprego no país, bem como tentar “a suavização das flutuações do nível de atividade econômica”.

A proposta estabelece datas para a nomeação da diretoria colegiada do BACEN, da qual fazem parte o presidente e os oito diretores, com mandatos de quatro anos, sendo admitida uma recondução. No caso do presidente da instituição, o início do mandato ocorreria no dia 1º de janeiro do terceiro ano de governo do presidente da República em exercício. Ao fixar mandatos não coincidentes com o período de poder dos presidentes do país, a ideia seria afastar a instituição de influências políticas indevidas (“governos com viés populista, seja ele de direita ou de esquerda”), segundo o relator Telmário Mota (Pros-RR).

O BACEN tornar-se-ia “Autarquia de natureza especial”, não estando subordinado a nenhum ministério. Na legislação em vigor, embora o BACEN seja Autarquia federal, seu presidente é titular de cargo de ministro de Estado, o que seria incompatível com mandato fixo, pois, de acordo com a Constituição, o ministro de Estado é livremente demissível pelo presidente da República. Como resultado dessa mudança, prevê-se a atribuição à autarquia de relativa autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira.

O Senado também aprovou o PL 3877 possibilitando ao BACEN substituir as Operações Compromissadas pelos Depósitos Voluntários Remunerados das instituições financeiras. A ideia é dar ao BACEN uma ferramenta para controle da moeda que tenha impacto menor sobre a dívida pública. A proposta foi apresentada pelo líder do PT no Senado, Rogério Carvalho (SE), e levada ao presidente do banco, Roberto Campos Neto, que apoiou o texto. O órgão já enxergava essa mudança com bons olhos há algum tempo

I) Quais são os objetivos de política do BACEN?

Via compra e venda de títulos públicos no mercado doméstico, o BACEN procura controlar a taxa de juros de mercado (Selic-mercado) e aproximá-la da Selic-meta anunciada, são as chamadas Operações Compromissadas. Na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF art.34) está vedada a emissão de títulos de dívida pelo BACEN (as Letras do Banco Central, LBC), então se o BACEN estima haver excesso de liquidez, efetua operações de venda com compromisso de recompra e, se estima haver escassez, efetua compra com compromisso de revenda. As operações definitivas de venda ou compra de títulos públicos são realizadas pelo Tesouro Nacional. De acordo com Fernando Nogueira da Costa[1], professor da Unicamp e ex-vice presidente da CEF, Como o BACEN deixou de emitir títulos próprios, ele tem uma carteira de títulos do Tesouro Nacional maior face à usual para a operacionalização da política monetária. Para o professor, o BACEN submete a política monetária à política de administração da dívida pública.

Márcio Pochmann, professor da Unicamp e presidente do Instituto Lula, explica a Luís Nassif[2] que “Mesmo estabelecendo a taxa básica dos juros, o Banco Central não define a taxa final, o que já tem favorecido os grandes bancos. Se já atrelado ao governo federal, o BACEN não promove competição entre os bancos nem favorece a criação de cooperativas de crédito que possam baratear o custo do dinheiro, as possibilidades de crescimento de emprego se tornam mínimas, afetando toda a população”. Para Fernando Haddad[3], “os credores do Estado querem garantir a parcela – de preferência crescente – da receita de impostos destinada ao pagamento de juros da dívida pública. O teto de gastos, portanto, os favorece. Mas, de outro lado – e isso nem sempre é notado –, os bancos querem se proteger da ação reguladora do Estado, exercida particularmente pelo Banco Central”. Segundo Juliane Furno[4], economista, assessora parlamentar da Câmara Federal e militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular, pelo fato de ser o BACEN “quem regula a concorrência interbancária […] e não o CADE […] se o BACEN for capturado pelos interesses do setor financeiro, dificilmente ele operará política de ampliação da concorrência interbancária ou redução dos spreads, por exemplo”.

II) Os Depósitos Voluntários.

De acordo com Fernando Nogueira da Costa, o uso dos depósitos voluntários reduziria a Dívida Bruta da União, porque seriam operações apenas monetárias, restritas ao balanço do BACEN. Operações Compromissadas são, para ele, realizadas na maior parte de forma indireta para atender à preferência pela liquidez dos investidores de Fundos. Essencialmente, cidadãos de alta renda permanecem como carregadores de títulos de dívida pública, inclusive por meio da Administração de Recursos de Terceiros feita pelos bancos. O professor questiona se cidadãos de alta renda aceitarão outro lastro sem risco soberano, uma vez que títulos de dívida direta (“crédito privado”, como debêntures) de grandes corporações passaram a sofrer de desconfiança desses investidores, não só pelo baixo rendimento (em percentual do CDI), como também pela oscilação de seus valores de mercado, levando à marcação-a-mercado dos Fundos – e à perda de capital acumulado.

Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e professor na FGV-RJ explica que “Com os depósitos voluntários, o BACEN não precisará pedir títulos públicos ao Tesouro para poder enxugar liquidez via operações compromissadas, quando isto for necessário”. André Roncaglia, economista e professor da UFABC, entende que “Esta mudança tornará a política monetária mais transparente, pois ela não mais afetará as estatísticas de dívida mobiliária federal quando o Banco Central enxugar a liquidez. É uma boa notícia”, para ele. E Juliane Furno pondera que a criação dos depósitos voluntários ocorre para “enxugar a liquidez de moeda na economia e não permitir que as taxas juros cobradas nos empréstimos interbancários seja menor do que a taxa básica de referência da economia, que é a Selic”. Nas palavras do próprio senador Rogério Carvalho, o PL 3877  “[…] propõe, ao invés de emitir título e aumentar a dívida, remunerar os depósitos voluntários [abre] espaço fiscal que possibilite investimentos, geração de empregos, renda, melhorar o cenário econômico do País”[5].

III) Escolha do comandante deve refletir maioria democrática.

Para Márcio Pochmann, “a autonomia do BACEN consolida uma espécie de feudo dos bancos, constituído na defesa dos seus interesses, independente do país”. Para Luís Nassif, “Com juros altos, uma indústria, por exemplo, não consegue crédito para se expandir e contratar mais funcionários. Uma importadora pode ter prejuízos com o dólar alto e até mesmo o mercado interno ficar desabastecido como vem ocorrendo com a desvalorização do real frente ao dólar, o que acarretou [em meados de 2020] nos preços altos dos alimentos. Quando a moeda norte-americana está muito alta ao ponto de ser prejudicial ao país é o BACEN que entra no mercado para vender ou comprar dólares e estabilizar seus preços”.

Para o vice-presidente da CUT, Vagner Freitas, o discurso de que o objetivo da autonomia do BACEN é blindá-lo de pressões político-partidárias é falsa. “É preciso ter respeito pelo voto do eleitor […] [o BACEN] tem de estar atrelado ao projeto de governo que o povo escolher, e não ser mais um elo do mercado financeiro que só tem vontade fazer o bem a si próprio”. Para Juliana Furno, “não existe nada em política econômica que seja ‘neutro’, puramente ‘técnico’ ou que represente o ‘bem comum’ para todos os brasileiros porque vivemos em uma sociedade capitalista e, portanto, dividida em classes sociais […] não existe espaço vazio na política. Se o BACEN for independente do Estado, ele será dependente de algum outro grupo social, sendo mais facilmente capturado pelos interesses do setor financeiro”

IV) Papel do Estado.

Para Maria de Loures Rollemberg Mollo, professora de Economia Monetária da Universidade de Brasília, o mercado financeiro pode vir a ser favorecido com a autonomia[6], na medida em que refletiria os interesses de diretores nomeados provenientes de empresas e bancos[7]. Mesmo assim, regras fixas impostas pela autonomia podem significar dificuldade para governos, ainda que sejam de orientação “pró-mercado”. A professora assinala que é o papel do Estado a grande questão por trás desse debate. “A visão de autonomia do Banco Central é dominante no mundo, porque as teorias que sustentam o pensamento neoliberal são dominantes. Mas, recentemente, mesmo teóricos neoliberais estão percebendo que é preciso do Estado para estimular a economia. Em momentos de crise, as regras estritas da política monetária e a autonomia do Banco Central dificultam a implementação de políticas anticíclicas. Nesse [sic] momento de pandemia, vencer essa crise pede instrumentos do governo, amplos e fortes, e a política monetária pode ajudar”.

Liberalismo econômico é um movimento de diminuir o poder sob a instituição soberana da sociedade, que é o Estado, e aumentar o poder sob outra instituição soberana, que é o mercado, o espaço comum das trocas. Muito se discute na academia a respeito do que é o Neoliberalismo, movimento que procura reforçar essa distribuição do estado para o mercado agora em nova forma, com novos mecanismos. Como se o mercado merecesse primazia na estrutura da sociedade, mas também devesse acionar, sempre que necessário e de acordo com os interesses dominantes, a intervenção estatal. De acordo com o Professor de Economia Internacional da PUC-SP Carlos Eduardo Ferreira de Carvalho[8], um estado forte e eficaz para executar a política “pró mercado”, ao contrário do Liberalismo clássico que relega papel coadjuvante ao Estado, contrário também ao Estado Social-democrata que alça esse Estado a um protagonismo no sentido de promover políticas de bem estar social. Nesse sentido, oportunamente vale a pena se investigar o papel de bancos centrais politicamente independentes como na Europa[9] para compreender que o Liberalismo e o papel do mercado são movimentos politicamente interessantes a grupos muito fortes de interesse, dominantes ao longo da História do Mundo. O Brasil de hoje deveria, antes de conduzir uma votação crucial como essa, justamente travar esse debate que ronda a sociedade após sua redemocratização.

* Alexandre Favaro Lucchesi é mestre e doutor em economia. Pesquisador do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais (CERI) da Unicamp e professor de economia das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU).


[1]https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2020/11/03/compromissadas-politica-monetaria-e-administracao-da-divida-publica/

[2]https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/entenda-como-a-autonomia-do-bc-aprovada-pelo-senado-vai-afetar-sua-vida/

[3]https://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernando-haddad/2020/10/banco-central.shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=comptw

[4] https://www.brasildefato.com.br/2020/11/06/o-que-significa-um-banco-central-independente-e-depositos-voluntarios-remunerados

[5] https://horanews.net/pl-de-rogerio-carvalho-que-remunera-depositos-voluntarios-e-elogiado-e-defendido-por-ex-ministro-e-economistas/

[6] https://www.cartacapital.com.br/economia/autonomia-do-banco-central-pode-agravar-o-impacto-economico-da-pandemia/

[7] https://twitter.com/GuilhermeBoulos/status/1359176357587124224

[8] https://www.eco.unicamp.br/ceri/centro/146-destaque/578-webinar-america-latina-tempos-confusos-09-12

[9] https://www.eco.unicamp.br/noticias/integracao-financeira-e-a-regulacao-bancaria-na-zona-do-euro-no-periodo-1999-2016

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