Por: Leonardo Dias Nunes
O objetivo deste artigo é apresentar ao leitor do blog Sobre economia o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) e seus argumentos relacionados à transformação de realidades subdesenvolvidas1. Assim, buscamos criar a memória histórica de um período em que a superação do subdesenvolvimento era entendida como possível e destacar o papel do conhecimento científico para a transformação dessa realidade social.
Na segunda metade do século XX, período em que Álvaro Vieira Pinto publicou intensamente, existiam expectativas positivas em relação à possibilidade futura de superação do subdesenvolvimento no Brasil. Este tema já foi tratado no artigo Dimensões do progresso em Juscelino Kubitschek.
De acordo com Rodrigo Gonzatto e Luiz Merkle (2016) 2, no artigo Vida e obra de Álvaro Vieira Pinto: um levantamento biobibliográfico, foi nessa conjuntura histórica que Álvaro Vieira Pinto forjou suas ideias. As obras do autor que auxiliam no entendimento das possibilidades de transformação criadas durante o chamado período desenvolvimentista brasileiro são Consciência e realidade nacional, publicada em 1960, e Ciência e existência, publicada em 1969. Essas obras foram escritas quando o autor foi integrante do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) 3 e, após 1964, quando esteve exilado (p. 287).
À época, era recorrente no debate econômico brasileiro o uso dos conceitos subdesenvolvimento e desenvolvimento. A possibilidade de superar a realidade apreendida pelo primeiro conceito e a expectativa de alcançar a realidade definida pelo segundo expressavam as tensões existentes no desenvolvimento capitalista no Brasil.
Diante dessas tensões, economistas, sociólogos e filósofos latino-americanos contribuíram com reflexões que buscavam intervir no debate sobre a superação do subdesenvolvimento. Álvaro Vieira Pinto foi um desses pensadores e, dentre tantos outros temas, o autor buscou refletir sobre a relevância do conhecimento científico para a transformação de realidades subdesenvolvidas e são estes argumentos que este artigo apresentará de forma introdutória e breve.
O artigo está dividido em duas partes e assim será publicado. Nessa primeira parte, focaremos na apresentação dos principais dados biográficos e bibliográficos de Álvaro Vieira Pinto. Na segunda parte, apresentaremos os principais argumentos do autor sobre produção do conhecimento científico necessário para a transformação das realidades subdesenvolvidas.
Álvaro Vieira Pinto no Brasil do Século XX
De acordo com Rodrigo Gonzatto e Luiz Merkle (2016), Álvaro Vieira Pinto é um autor conhecido devido a sua participação no ISEB. Sua obra, entretanto, não está apenas ligada à temática desenvolvimentista desse instituto, mas, também, a outros temas no campo da educação e na análise do conceito de tecnologia.
Álvaro Vieira Pinto foi um homem de vasta formação, poliglota, violinista amador, filósofo, professor, cientista, tradutor. Suas obras foram escritas entre 1928 e 1975 (p. 287) e as pesquisas sobre ele datam de 1980 até 2014.
Atualmente, os principais livros de Álvaro Vieira Pinto publicados no Brasil são Ideologia e desenvolvimento nacional (1956), Consciência e realidade nacional (1960), A questão da universidade (1962), Por que os ricos não fazem greve? (1962), Indicações metodológicas para o conceito de subdesenvolvimento (1963), Ciência e existência (1969), Sete lições sobre educação de adultos (1982), O conceito de tecnologia (2005) e A sociologia dos países subdesenvolvidos (2008).4 Ressaltamos que as duas últimas obras foram publicadas postumamente. Logo, apenas há catorze anos, passados trinta e cinco anos da morte do autor, pesquisadores podem ter em mãos as obras que, no passado, nunca estiveram simultaneamente ao acesso de outros pesquisadores da obra de Álvaro Vieira Pinto.
Gonzatto e Merkle dividem a análise da obra de Álvaro Vieira Pinto em quatro partes. A primeira, os anos de formação até a década de 1950. A segunda, atuação profissional e política do autor no início da década de 1960. A terceira, o período do exílio. A quarta, as décadas de 1970 e a de 1980. Essas partes serão sintetizadas abaixo.
Até os anos 1950: período de formação
Álvaro Borges Vieira Pinto nasceu em Campos do Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, em 11 de novembro de 1909. Estudou no Rio de Janeiro no colégio jesuíta Santo Inácio. Após terminar seus estudos, morou por um ano em São Paulo com sua família, momento em que se dedicou aos estudos de filosofia e literatura. Provavelmente, no ano de 1926, relacionou-se com intelectuais que viveram a agitação da Semana de Arte Moderna. Retornou ao Rio de Janeiro para realizar o curso de medicina entre 1927 e 1932. Durante o quinto e o sexto ano do curso lecionou filosofia e física em um colégio de freiras para auxiliar nas finanças familiares. Recém-formado em medicina, o jovem médico tentou atuar em precárias condições na cidade de Aparecida, interior de São Paulo. Sem sucesso, voltou para o Rio de Janeiro. Em meados da década de 1930 começou a trabalhar na Fundação Gaffré e Guinle, no Rio de Janeiro e, no ano de 1934, ingressou na Ação Integralista Brasileira (AIB) devido ao interesse na questão social a partir da temática da identidade nacional (p. 291). Devido aos trabalhos de pesquisa que realizava na Fundação Gaffré e Guinle, Álvaro Vieira Pinto se matriculou nos cursos de física e matemática da Universidade do Distrito Federal e no ano de 1939 tornou-se professor adjunto de filosofia da Universidade do Brasil.
Dez anos depois, em 1949, Álvaro Vieira Pinto viajou a Paris e, na Universidade de Sorbonne, concebeu o tema de sua tese sobre a cosmologia em Platão. Após seu retorno ao Brasil, a tese foi apresentada e defendida em 1950. Em 1951, participou da Missão Cultural Brasileira na cidade de Assunção, Paraguai. E, em 1954, assumiu por dois anos a direção do Instituto de Cultura Boliviano-Brasileiro em La Paz, Bolívia.
Início da década de 1960: Instituto Superior de Estudos Brasileiros
O Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB foi criado em 1955 e Álvaro Vieira Pinto, então integrante do conselho consultivo da instituição, assumiu a coordenação do Departamento de Filosofia. No ISEB, o autor torna sua orientação intelectual mais crítica e, em 1956, realiza a aula inaugural do curso regular cuja transcrição foi publicada no livro Ideologia e desenvolvimento nacional. Os dois tomos de Consciência e realidade nacional foram publicados pelo ISEB, respectivamente, em 1960 e 1961. Nesse último ano, em uma conjuntura de grande tensão política no Brasil, o autor se tornou o diretor do instituto. Nessa condição, foi o autor de obras críticas da realidade brasileira, implicando a ele a difamação da imprensa. De acordo com Gonzatto e Merkle,
O começo dos anos 1960, além de ser exemplar para a produção bibliográfica de Vieira Pinto, também é um período de revisão do seu posicionamento político e intelectual. É durante a atuação no ISEB que Vieira Pinto rompe com princípios católicos e integralistas, se posiciona politicamente à esquerda e desenvolve sua leitura terceiro-mundista da realidade brasileira, do existencialismo e do marxismo (p. 294).
Décadas de 1960 e 1970: ditadura e exílio
Após o golpe militar de 1964, no dia 13 de abril, foi decretada a extinção do ISEB. Álvaro Vieira Pinto, diretor da instituição, foi perseguido e em setembro de 1964, na companhia de sua esposa, viajou para asilar-se na Iugoslávia. Após a sugestão de Paulo Freire, o autor mudou-se para Santiago do Chile e durante a sua passagem por esse país, em 1968, terminou a redação do livro El pensamiento crítico en demografia, editado pelo Centro Latino-Americano de Demografia (CELADE), em 1973. Nesse mesmo período foi escrito o livro Ciência e existência, publicado no Brasil em 1969. Em 1968 retornou ao Brasil e continuou a escrever, mas estava proibido de publicar suas obras. Por essa razão que parte delas foram publicadas apenas postumamente.
Final da década de 1970 e a década de 1980: manuscritos e traduções
Diante das proibições que aceitou para retornar ao Brasil, Álvaro Vieira Pinto recolheu-se, juntamente com sua esposa, em seu apartamento no bairro de Copacabana. Durante este período, adquiriu pseudônimos para realizar traduções e escreveu manuscritos. Em 1973, terminou a última revisão do livro O conceito de tecnologia que viria a ser publicado postumamente, em 2005, e, em janeiro de 1975, terminou o manuscrito do livro A sociologia dos países subdesenvolvidos, também publicado postumamente.
Como ressaltam Gonzatto e Merkle, a obra de Álvaro Vieira Pinto permite “compreender melhor não apenas a trajetória das ideias deste pensador, mas também os contornos e caminhos de uma pequena parte da história do Brasil e da América Latina, em parte não reconhecida, como muitas outras” (p. 299). Este artigo busca contribuir para trazer à luz, parte desta história. O faz, por um lado, ao criar memória histórica sobre um período que ainda possui muitas passagens e personagens encobertas. Por outro, o artigo enfatiza que as proposições do autor elucidam um tempo histórico específico da história nacional.
Ao concluir essa parte, a relacionamos com o artigo Dimensões do progresso em Juscelino Kubitschek. Nesse artigo, afirmamos, de acordo com o historiador Reinhart Koselleck (2006), que o conceito de progresso foi o que melhor apreendeu a tensão distanciadora existente na modernidade, a tensão existente entre os conceitos de espaço de experiência e o horizonte de expectativa. Partimos da hipótese de que, no Brasil, essa mesma tensão pode ser apreendida na busca pela transição das realidades caracterizadas pelos conceitos subdesenvolvimento e desenvolvimento. Com essa hipótese em mente, na segunda parte deste artigo, enfatizaremos o papel do conhecimento científico na transição do subdesenvolvimento para o desenvolvimento de acordo com o autor em estudo.
Referências
BRASIL. DECRETO No 37.608, DE 14 DE JULHO DE 1955. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-37608-14-julho-1955-336008-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 6 fev. 2022.
GONZATTO, R. F.; MERKLE, L. E. Vida e obra de Álvaro Vieira Pinto: um levantamento biobibliográfico. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 69, p. 286–310, set. 2016.
KOSELLECK, R. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias históricas. In: Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2006. p. 305–327.
NUNES, Leonardo Dias. Ciência para a superação do subdesenvolvimento em Álvaro Vieira Pinto. In: VII Congresso Latino-Americano de História Econômica. 2022, Lima.
1 Este artigo é uma versão modificada e reduzida do artigo apresentado no VII Congresso Latino-americano de História Econômica (CLADHE), em março de 2022, que foi organizado pela Associação Peruana de História Econômica.
2 Esta parte do artigo foi escrita com base nas informações contidas no artigo de Gonzatto e Merkle (2016) e as páginas nela citadas fazem referência a esse artigo. Para informações adicionais sobre a biografia do autor, ver a introdução da obra: PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. 15. ed. – São Paulo, Cortez, 2007. Informações adicionais podem ser encontradas no site http://www.alvarovieirapinto.org/.
3 Instituído em 14 de julho de 1955 pelo presidente Café Filho, através do Decreto N° 37.608, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) estava ligado ao Ministério da Educação e Cultura e sua finalidade era estudar, ensinar e divulgar as ciências sociais com o objetivo específico de aplicar os dados e as categorias das “ciências à análise e à compreensão crítica da realidade brasileira, visando à elaboração de instrumentos teóricos que permitam o incentivo e a promoção do desenvolvimento nacional” (BRASIL, 1955). Foi extinto após o golpe de 1964 e seus integrantes foram exilados.
4 Sugerimos a página da internet http://www.alvarovieirapinto.org/obras/ para os leitores com interesse em conhecer a totalidade da obra de Álvaro Vieira Pinto.
Grande Vieira Pinto. Falar em tecnologia e conhecimento e não tecer comentários de Vieira Pinto, deixa uma lacuna e de tratar de um viés muito importante que é o da ciência atrelada ao poder hegemônico.